Nem mesmo durante a adolescência e o começo da idade adulta, fui uma "ave nocturna". Nessa altura a "desculpa" era a prática desportiva, pouco compatível com a "borga".
Mesmo assim, durante pelo menos três anos (1984 a 1986), era frequente andar pela noite dentro às quintas-feiras (evitando as confusões de sexta e sábado...), com três ou quatro amigos. Fazia-o em nome da amizade e também pelo prazer da descoberta e da curiosidade, dentro de uma noite entre o castiço e o vicioso. Na época nenhum de nós tinha carro o que nos fazia esperar pela primeira barca que nos levava para o outro lado do rio (quase às seis da manhã). E como a partir das quatro da manhã só se encontravam abertos dois tipos de bares na noite lisboeta, frequentados por uma clientela específica, de um lado as prostitutas e os seus "donos", em lugares normalmente decadentes, noutro os homossexuais, em lugares diferentes do usual. Sem nos apercebermos, percorremos geografias humanas extremamente ricas, pelo menos para quem gosta de palavras e de histórias...
Como de costume, começo a escrever, vou buscar memórias, e afasto-me do tema principal, o desaparecimento de Manuel Reis, um antiquário moderno, que conseguiu cultivar a diferença da noite lisboeta, primeiro com o "Frágil" no Bairro Alto e depois com o "Lux" em Santa Apolónia. Se no primeiro entrei, umas três vezes, no segundo, nenhuma.
Estive com Manuel Reis uma única vez, por um mero acaso, sem saber quem era aquele homem, diferente. Estava num café com um amigo escultor e ele chegou e depois de trocar algumas palavras, ficou na nossa mesa, a convite do António. Isto aconteceu no começo da década de noventa e recordo que, entre outras coisas, falámos do movimento modernista, porque aquele café onde nos encontrávamos, apesar de muito menos badalado que "A Brasileira", era poiso habitual daquela gente "louca", mal vestida e mal lavada, quase sempre com pouco dinheiro nesses longínquos anos vinte.
O mais curioso, foi ele ter-nos oferecido alguns pontos de vista completamente diferentes dos nossos, sobre a arte e alguns artistas desses gloriosos tempos, o que nos fez sorrir.
Só depois dele se despedir de nós, é que soube quem era o homem do chapéu... que agora partiu e provavelmente continua com vontade de abrir espaços "revolucionários" e bonitos noutras latitudes...
(Óleo de Amadeo Souza-Cardozo)