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segunda-feira, outubro 14, 2024

Esta Lisboa, que está cada vez mais presa ao mapa das "cidades-cinema" e das cidades-museu"...


Ontem, quando regressava a casa, de cacilheiro, pensei que Lisboa era cada vez mais, uma das várias "cidades-cinema" europeias,  vocacionadas para se fazerem filmes, tirarem fotografias, enquanto se saboreia um pastel de nata, tudo coisas que fazem as maravilhas dos asiáticos, dos americanos, e claro, também dos europeus, de várias latitudes. 

A Europa está cheia de cidades apetecíveis para estes "realizadores" e fotógrafos" amadores, como Paris, Roma, Barcelona, Veneza, Florença, Berlim ou Londres. Mas estes lugares (se excluirmos Veneza e Florença...) além de estarem organizados para  continuarem a receber turistas, esforçam-se por ter vida própria, com os seus habitantes a quererem ser muito mais que meros figurantes, como estão a querer transformar os lisboetas, não deixam de estar em perigo.

É perigoso deixarmo-nos "prender" pelos nossos passados, por muito gloriosos que eles sejam, fazer com que as nossas vidas fiquem cada vez mais dependentes das "cidades-museu", o lado A das "cidades-cinema"...

E entretanto chegámos a Cacilhas.

(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


terça-feira, março 12, 2024

O primeiro episódio das "conversas que se dizem quase ao ouvido"


Talvez por eu não o tratar como um maluquinho, muito menos me preocupar muito onde começava e acabava a ficção que se misturava com as suas memórias, ele não parou de me contar as suas inquietações.

Não sei porquê, mas fixei-me nessa palavra bonita que é a liberdade, enquanto ele me falava das suas duas "casas" na Capital:

«Sei que devo estar a sonhar ou a imaginar coisas, mas penso muitas vezes que a barraca que construi e fui viver depois de casar, e onde nasceu o meu primeiro filho, era melhor que esta casa de cimento.

Esqueço-me do frio, do calor, da falta de luz eléctrica e de água canalizada, e de tantas outras coisas, que eram tão más e feias, que apaguei-as mesmo da minha cabeça.

A única coisa que me ficou foi a sensação de liberdade que existia. Acho que por não ser uma casa a sério, tornava tudo mais fácil. E também sabia que era difícil viver pior. E sorria com isso... É por isso que às vezes penso que devo estar a amalucar.»

Expliquei-me que não. Provavelmente ele foi feliz naquela barraca, mesmo que fosse tudo demasiado pobre e miserável. E só se lembrava dessa sensação, que há distância de 40 e muitos anos, lhe parecia uma outra coisa...

Nota: Vou chamar a estas conversas, "Coisas que se dizem quase ao ouvido", que nascem do diálogo que tenho com algumas pessoas que gostam de falar sem "travões" e nos contam toda a história da sua vida, mesmo sem lhe pedirmos...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sexta-feira, outubro 13, 2023

Bairros com pessoas "embrulhados em jornais"...


Raramente compro um jornal coisa que fazia mais que uma vez por semana, antes da pandemia.

O "ter de ficar fechado em casa" habituou-me ao digital e... Quando o mundo tentou voltar ao normal, ainda comprei um ou outro jornal, mas não era a mesma coisa. Até porque eles tinham diminuído de tamanho (alguns pareciam ter metade das páginas...).

Mas não é sobre jornais que quero falar, embora tenha comprado hoje o "Público" (aliás eu comprei o "Ípsilon", o jornal veio atrás...). Comprei este diário porque a capa do suplemento tinha como título, "Sara Correia, o fado dela é o povo, é do bairro".

Ao começar a ler a reportagem sobre a fadista, senti que ela estava ali a falar do seu novo disco e também a lutar contra o estigma social que está colado a Chelas, o bairro das suas raízes lisboetas.

Cresci num bairro e nunca senti qualquer estigma, mesmo que não fosse uma "zona chique" das Caldas. Aliás, as ruas eram conhecidas por números (eu morava na "Rua 26"...). Provavelmente por ser um bairro de uma cidade de província ou por ser o lugar onde tive os meus primeiros amigos e onde se vivia normalmente.

Mas os bairros não são todos iguais, muito menos as cidades...

Aliás, nas cidades grandes há o hábito de despejar as pessoas "menos interessantes" (para cantos onde também parece não haver "nada de interessante"... que são normalmente feios. Deve ter sido um engano do caraças a construção do Bairro do Picapau Amarelo na Margem Sul, com aquela vista para o Tejo, que até causou "inveja" à presidente do Município...).

É por isso que compreendo a Sara. 

Eu que durante muitos anos só conhecia a expressão "pareces o comboio de Chelas" (para designar algo feio e estranho, sim havia raparigas que, segundo os entendidos, as suas caras pareciam o "comboio de chelas", vá-se lá saber porquê...), sem saber sequer onde ficava este bairro lisboeta...

(Fotografia de Luís Eme - Monte da Caparica)


domingo, maio 29, 2022

Um Olhar de "Peão" em Lisboa...


Talvez por ter "pouco mundo" acho Lisboa a cidade mais agradável para se circular a pé, apesar das suas colinas. Sou capaz de caminhar mais de duas horas pelas ruas lisboetas, sem sentir qualquer desconforto. Isso acontece porque descubro sempre coisas diferentes nos lugares e nas pessoas com quem me cruzo.

Por não gostar de andar em filas, quase que só passo de carro por Lisboa ao largo (quando vou às Caldas ou a outro lugar...). E é também por isso que acho ridículo querer colocar mais "limites de velocidade" na Capital (o que só contribui para o aumenta ainda mais das filas e à confusão no trânsito...).

Também não concordo com a proibição de circulação na Avenida da Liberdade de viaturas aos fins de semana. Acho que se deve limitar, sim, diariamente, a circulação a carros particulares (o que já se fala há anos, mas que se fica pelas ameaças...) pelo chamado centro da Capital. Até porque os transportes públicos já foram muito piores...

Do que eu não ouço ninguém falar é dos "limites", que deviam ser feitos às trotinetes (talvez o maior perigo para os peões em Lisboa, graças à "loucura adolescente" de quem as conduz (mesmo que tenham 40 anos...). Limite na velocidade e também do número de existências. 

Claro que em benefício do "turismo" vale tudo, até continuar a "desequilibrar" a cidade, ao ponto de qualquer dia não existir um lisboeta a residir no centro histórico da Capital...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


domingo, março 29, 2020

"O Espectáculo da Rua"...


José Gomes Ferreira tinha uma rubrica cheia de interesse na "Seara Nova", nos idos anos 1940, que se chamava "O Espectáculo da Rua", onde escrevia o seu "olhar" sobre a Lisboa desse tempo. Achei curioso um seu texto e até fiz um "paralelo" com os dias de hoje, embora em vez de "adormecidas", as pessoas estejam ausentes, involuntariamente...

«[...] Não havia dúvida! Dormia tudo, à minha volta: homens, mulheres, crianças, burros, carroças, eléctricos, carecas, cabeludos, Teatro Nacional, tabuletas, pedras, estátuas e até o céu azul estendido como uma mulher de preguiça. Dormia tudo, sombriamente, pesadamente, a andar - um dois, um dois... - como eu naquela famosa tarde de andróide hipnotizado. Dormia tudo a sono solto. [...]»

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

quarta-feira, outubro 09, 2019

Estão Mesmo a "Roubar-nos" Lisboa...


Ontem estive a beber café com uma amiga, que mora num dos bairros históricos da Capital (que nem sequer fica nas imediações da Baixa...), e que se queixou de tudo, inclusive da "invasão silenciosa", que se vai fazendo, com alguns investidores a comprarem tudo o que pode ser comprado (no bairro dela os franceses são os reis do investimento...).

Já lhe fizeram uma proposta milionária para comprarem a sua casa. O problema é que ela não só gosta da sua casa, como do bairro onde vive há décadas. Embora cada vez tenha mais dificuldade em apanhar autocarros ou eléctricos, vai resistindo...

Mas muitos não resistem, principalmente ao poder do dinheiro. Houve quem comprasse o seu apartamento ao senhorio por 20.000 euros e agora surgem-lhe as imobiliárias a acenar-lhe com meio milhão... E quem já está quase na idade da reforma, vende mesmo. Aluga uma casa nos subúrbios e sonha voltar, um dia destes, às suas origens, porque Lisboa deixou de ser para lisboetas, está transformar-se num "pesadelo diário" para quem lá vive e trabalha...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

terça-feira, maio 14, 2019

Quando os "Passarões" da Rua da Cristina Foram Parar à "Gaiola"...


A história era simples, o Rui, o Jorge e o Zeca, os falsos "heróis" da Rua da Cristina tinham sido apanhados, em flagrante, por um casal de polícias que usara o disfarce de turistas, dos apetecíveis, com boas máquinas fotográficas, computadores e notas de euros com três algarismos, para os levar à certa.

"Pinóquio", o maior contador de histórias das redondezas, esqueceu por momentos as suas patranhas e resolveu usar os seus exemplos para aconselhar a rapaziada mais nova, a não tentar "voar alto demais".

Quem não conhecesse a história de vida das três "aves de arribação" - como era o meu caso -, que tinham sido engaioladas, por andarem demasiado descontraídos pelas ruas, esquecidos que nas profissões de risco  "a distracção é quase sempre a morte do artista"... não conseguia deixar de sorrir pela arte do "Pinóquio", que à medida que ia falando, ia arranjando um lugar no "cinema", para aqueles três rapazolas que adoravam dar nas vistas, quase sempre pelos piores motivos.

Nunca os tratou pelo nome próprio, mas sim pelos "nomes de guerra", que curiosamente também foram uma invenção sua. 

Só alguém com a sua imaginação era capaz de baptizar o Jorge de "Canário", que além de falar pelos três, adorava dar música aos "camones", aliás, às "camones". O Rui ficou o "Corvo", por ser o mais misterioso e também o mestre dos silêncios. E o Zeca só podia ser o "Melro", o finório e espertalhaço do trio, sempre cheio de ideias mirabolantes, roubadas das séries e dos filmes.

O mais curioso, foi perceber que a rapaziada jovem tinha percebido a lição do "Pinóquio", sem perder o sorriso...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

segunda-feira, julho 03, 2017

Quase o Melhor Prédio do Mundo...


Quatro casas alugadas depois, sente que conseguiu o equilíbrio necessário entre um bom espaço físico e uma paisagem humana secundária, cumpridora da frase feita, "vive e deixa viver".

Quando lhe dizem que mora no "prédio dos velhinhos", sorri, mas o que lhe apetece dizer é que mora quase no melhor edifício do mundo.

Lembra-se vagamente de cães a ladrarem, de criancinhas a chorarem, mas sobretudo da gente bruta que entrava no prédio depois da uma da manhã quase aos gritos, e que quando entravam em casa, não dispensavam o bater com a porta, como se o eco desta fosse um "despertador" para a vizinhança.

Uma vez chamou a atenção ao casal de trintões que morava à sua frente. Responderam-lhe com maus modos e olharam-no de alto a baixo com olhares quase assassinos, oferecendo-lhe outra frase batida, "quem está mal muda-se". E ele assim que pôde, mudou-se mesmo. 

É por isso que em apenas dois anos já vai na quarta casa (bateu o recorde de permanência nesta última, sete meses), mas tudo indica que é para continuar, até por gostar das vistas, do bocadinho de Tejo que consegue ver se se colocar em cima de um escadote na janela da sala.  

(Fotografia de Luís Eme)

segunda-feira, junho 26, 2017

A Nova "Lisboa Pombalina"...

Ontem ao fim da tarde fiquei parado a olhar para Lisboa, na companhia de uma amiga especial.

Não foi difícil de percebermos que éramos os únicos portugueses sentados numa das esplanadas ribeirinhas. Conspirámos um pouco, dissemos entre outras coisas, que talvez as pessoas estejam fartas de toda esta gente que gosta de fazer perguntas em inglês e que quer levar além da resposta, um sorriso português.

Depois batemos palmas ao Costa e ao Medina por terem feito um belo trabalho nas margens do Tejo. Além de  terem aproximado o rio das pessoas, deram espaço para toda esta febre turística que aproveita da melhor maneira toda esta nova "centralidade" que se ganhou. 

Exagerámos um pouco, mas depois de fazermos contas, concluímos que quase que se pode caminhar a pé do Terreiro do Paço até Belém, rente ao rio...

O "caos" acontece mais em Alfama, que tem agora "santos populares" quase diariamente...

(Fotografia de Luís Eme)

terça-feira, outubro 11, 2016

Macário e o Manuel, Quase Personagens de Romance...


Descobri o Macário por um mero acaso. Mas foi uma boa descoberta, em apenas meia hora descobri uma personagem lisboeta que cabe num daqueles romances que se podiam escrever sobre uma Lisboa, povoada de cenas dignas do tão apaixonante realismo mágico.

A exuberância com que entrou na tasca onde almoçávamos, com o seu corpo trabalhado no ginásio do Ruca quase a dançar e a fazer saltitar o fio grosso de pechisbeque de cor dourada, não deixou ninguém indiferente. Parou na nossa mesa para dar um beijo ao padrinho. O Manel perguntou-lhe se já tinha almoçado, ele disse que não, acrescentando que ainda lhe faltava o pequeno almoço, com uma piscadela de olho e foi ao balcão comprar um maço de tabaco. E depois partiu como chegou com a mesma dança no corpo, com umas calças brancas apertadas e uma camisa colorida, que poderiam colocá-lo numa lista de suspeitos que se amanhavam com a "paneleiragem", como quase nos segredou o Vitor, à espera da reacção do dito padrinho...

O Manel sorriu e disse que o Macário não rejeitava carga, desde que lhe pagassem uns trocados para continuar com a sua vida boa. Mas preferia mulheres, "camones", que ensinava a dançar nas pistas dos clubes nocturnos e nos quartos de hotel.

E depois ofereceu-nos a sua biografia de mão beijada: «Quando um puto cresce no mesmo prédio que acolhe uma pensão de prostitutas e uma casa de jogo clandestino, habitua-se a adormecer a ouvir gemidos falsos tapados por tangos lentos com bons ares. Quando chega e vai para a escola cruza-se com raparigas de mini saia que lhe piscam o olho e homens de camisas garridas que fazem argolas com o fumo dos cigarros, que fingem não reparar nele, pode ter tudo menos uma vida normal.
Não gostava de estudar, mas mesmo assim prometeu a ele próprio fazer tudo para escapar do destino traçado para os filhos das mulheres que passam a vida a esfregar escadas e dos homens que batem chapas de carros batidos. E conseguiu-o. Preferiu ser um "gabiru" ou "moinante", como a mãe ainda hoje lhe chama, quando a visita, a um simples operário. Eu sou o tio que lhe foi aparando as pontas, e passou a fazer a ponte com os pais quando resolveu sair de casa aos dezasseis anos.
Nunca soube muito bem o que ele fazia e faz. Sei apenas que onde quer que entre, toda a gente pára para o olhar, como se fosse uma gaja boa. Gaba-se de dançar e foder como ninguém. talvez seja esta a chave do seu sucesso. Embora seja um daqueles fulanos em que só devemos acreditar em metade do que nos diz, há muita mulher por aí que gosta destas duas coisas e não têm quem as deixe felizes, nos bailes e nas camas.»

Para acabar ainda melhor, Manel acrescentou: «o meu sobrinho tem ainda uma grande vantagem, cresceu naquele prédio cheio de manchas, mas não é filho de nenhuma puta nem de nenhum batoteiro. Isso faz toda a diferença, ele além de ser um sedutor, é um gajo porreiro, incapaz de roubar fios de ouro ou carteiras a quem quer que seja. Toda a gente gosta dele, desde a mulher que já dançou com ele ao dono do bar do fado vadio onde ele canta e encanta, sempre que pode.»

O que mais nos surpreendeu, nem foi o bom do Macário, foi sim o orgulho desmedido que o Manel tem por aquele "doidivanas" que, segundo o seu olhar,  preferiu em boa hora ser "cigarra" e nunca "formiga"...

(Óleo de Pike Koch)

sexta-feira, março 11, 2016

O Sonho não Enche Barriga (e diz-se que é no aproveitar que está o ganho)...

Ontem andei "perdido" por Lisboa e a meio do caminho escrevi:

Quase que deixámos de "existir".
É como se tivéssemos vendido
a Cidade a todos estes turistas
de várias idades, cores,
palavras e nacionalidades.

Trespassamos lojas, restaurantes
museus, entre outras lugares errantes...
Fizemos de cada lisboeta um guia,
mas o seu sorriso aberto é diferente,
foi vendido a este "reino da fantasia".

Até as almas sonhantes
dos bairros do antigamente
se renderam-ao poder do dinheiro,
alugaram as suas casinhas
e estão a viver no "galinheiro"...

Claro que há algum exagero nas minhas palavras, mas foi o que saiu... E resolvi não retirar as vírgulas.

(Fotografia de Luís Eme)

quinta-feira, novembro 14, 2013

Os Cães Vadios do Bairro


A avó da Rita aproveitou a minha presença para falar da sua dor mais forte: ter sido forçada a abandonar o Bairro Alto, lugar onde viveu quase cinquenta anos e onde nasceram e cresceram os seus filhos.

Confessou que nem nos piores tempos das "meninas" e dos seus "diabos protectores", se viveu com tanta insegurança nas ruas. Lamentou ainda a existência de tanto "cão vadio", capazes de mijar em todos os cantos, tornando o ar matinal irrespirável.

Mais perigoso que o cheiro daquele "urinol a céu aberto", só os vestígios de "batalhas campais", deixados nos passeios. Tanto vidro partido, acabou com as poucas crianças que se viam nas ruas...

Ela sabia que os comerciantes e empresários pagavam mais impostos que os moradores à Câmara, mas interrogava-se: «será que os autarcas não percebem que estão a "matar" o Bairro, cada vez mais despovoado, como grande parte dos lugares históricos e típicos de Lisboa?»

Foi ainda mais longe: «as cidades não podem viver apenas à noite, não podem ser habitadas apenas por "zombies".»

domingo, agosto 11, 2013

A Miúda Gira e a Linha do Eléctrico


Nunca esqueceu Diana, a miúda gira de olhos verdes e cabelos claros, que desafiou todos os perigos e se deixou enrolar pelo vício mais cruel.

Foi com ela que percebeu pela primeira vez que as mulheres e os homens bonitos também tinham dramas, também andavam perdidos, à frente e atrás da vida.

Cobarde, nunca a conseguiu resgatar das ruas escuras, limitava-se a apanhar boleia do eléctrico que passava nas ruas que frequentava e a acenar-lhe, como se se estivesse sempre a despedir...

Ela oferecia-lhe o melhor sorriso e piscava-lhe o olho, deixando-o bastante embaraçado e sem saber o que fazer.

Acabou por lhe perder o rasto, de vez, quando a linha do eléctrico foi substituída por um autocarro muito menos contemplativo e lisboeta...

O óleo é de Jean François le Saint 

sábado, julho 09, 2011

A Tua Janela


Embora nunca quisesse ser menino do coro, sempre tive dificuldades em virar costas à realidade. Acho que o medo, esse gigante, também me deu uma ajuda na fuga de alguns lugares, assim como a trocar as voltas à curiosidade.

Ao passar por uma rua lisboeta, onde não passava há anos, lembrei-me de uma rapariga que me olhava do lado de dentro da janela de um rés de chão alto. O mais curioso é que não nos falávamos, embora nos olhássemos de alto a baixo e de vez em quanto fossemos capazes de trocar um sorriso.

Sabia que uns metros mais à frente deveria encontrar o parapeito que nos ajudou a soltar a língua, numa noite diferente de todas as outras. Quando passei estavas sentada e demasiado alegre (devia dizer pedrada...), deve ter sido por isso que me chamaste. Vinha do cinema e sentei-me a teu lado, a escutar a história que tinhas para me contar da tua vida. Até fiquei a saber o nome que me quiseste oferecer (Diana), que até tinha a ver contigo.

Pediste-me um cigarro e eu nem sequer tinha lume. Foi por isso que descemos o parapeito e entrámos num café nas proximidades onde bebemos uma cerveja ao balcão e compraste um maço de tabaco.

Passeámos de mão dada e prometemos coisas que não tivemos tempo de cumprir, porque nunca mais apareceste à janela (e as vezes que eu passei pela tua rua...).

Nunca percebi muito bem o que perdi ou o que ganhei.

O óleo é de Scott Waddel.

segunda-feira, junho 13, 2011

Cruzou por Mim, Veio Ter Comigo, Numa Rua da Baixa

[...]

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

[...]

Alvaro de Campos

O óleo é de J.B. Durão.

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Profissionais do Olhar

Sei que nas grandes cidades há o mau hábito de não olharmos o outro, corremos atrás da indiferença, empurramos, levamos encontrões, raramente recebemos ou pedimos desculpa.

É por estas e outras coisas que continuo a achar que sou um "provinciano". Olho para as pessoas, peço desculpa pela pisadela ou encontrão que dou, enfim, parvoíces, que não são normais nas "capitais do mundo"...

Mas para tudo há uma explicação. Uma das razões para não se olhar o outro, é a miséria alheia estar muito mais presente em Lisboa (quase em todas as ruas...), que numa simples cidade de província.

Hoje, no coração da Capital, dei por mim, várias vezes, a desviar os olhos dos "profissionais do olhar", que se espalham por toda a parte. Espertos (eles e elas), oferecem-nos a expressão mais pungente que conhecem, na tentativa de nos "fazer doer", a ver se nos "espremem" e conseguem fazer cair uma moeda, ou até nota...

Fiquei a pensar que se não fosse "provinciano", se não tivesse a mania de olhar o outro, escapava a este jogo quase de "pantomina"...
O óleo é de Jean Paul Tibbles.

terça-feira, junho 01, 2010

Têm Toda a Razão...

Só posso dizer que têm toda a razão: trocar a passagem do octagésimo aniversário de Dinis Machado pelo futebol, não lembra a ninguém...

Um dia depois, só posso fazer uma coisa, transcrever uma parte do pequeno caderno que escrevi, de tiragem limitadíssima, construído a partir de um "post", publicado no Dia Mundial da Poesia.
Aí vai:
[...] Cardoso Pires foi ainda mais longe[i]: «não me digam que não é uma felicidade estar-se assim, com gaivotas a saírem-nos de baixo dos pés e a passarem-nos a dois palmos dos olhos num bailado de gritaria.»
Carlos de Oliveira
[ii] continuava deslumbrado com o Sol que brilhava rente ao Tejo: «o ar boreal reflecte-nos os olhos, tão limpos que os extingue.» Cardoso Pires sorriu e deu uma palmada nas costas do amigo, antes de resolver falar de coisas mais palpáveis, recordando[iii] as muitas vezes que desceu a rua do Alecrim em direcção ao rio, como se o estivesse a fazer naquele momento, «quando olho para o fim da rua, descubro que os enormes guindastes da Lisnave da Outra Banda do rio se encontram quase do lado de cá, em cima do Cais Sodré.» Sem se esquecer de brincar com a situação, fingiu perguntar-lhes: «atravessaram o Tejo ou foi o Tejo que encolheu durante a noite?»
O Dinis olhou-me com aquele olhar doce de criança grande, igual ao das tardes que partilhámos no primeiro andar da rua Ancheta, no Chiado. Confidenciou-me
[iv], «tive sempre uma pequena bússola – para me levar aos pais, aos amigos, aos trabalhos de que gostava. E guiou-me para as auroras boreais dos livros e dos filmes.» Com o olhar preso a um cacilheiro que cortava as águas do rio, contou-nos que, «a imaginação é um barco.»
Zé Gomes, assim que viu o seu amigo, Manuel, alentejano do mundo, expressou
[v] a amizade dos dois desta forma: «ambos ciganos por temperamento, e com pernas incansáveis, entendemos-nos sempre às maravilhas, até porque nunca se quebrou entre nós aquele ritual de cerimónia que acompanha as amizades verdadeiras.»
Manuel da Fonseca abraçou o amigo e ofereceu-nos um bom exemplo
[vi] da sua alma de vagabundo: «sou barco de vela e remo, sou vagabundo do mar. Não tenho escala marcada nem hora para chegar: é tudo conforme o vento, tudo conforme a maré…» [...]
[i] “Lisboa Livro de Bordo”, José Cardoso Pires, p.114.
[ii] “Colheita Perdida”, Carlos de Oliveira, p. 20.
[iii] “Lisboa Livro de Bordo”, José Cardoso Pires, p 38.
[iv] “Gráfico de Vendas com Orquídea”, Dinis Machado, p 114.
[v] “A Memória das Palavras I”, José Gomes Ferreira, p. 180.
[vi] “Antologia Poética, Manuel da Fonseca, p. 59.

domingo, abril 25, 2010

Histórias da Liberdade de um Jovem Libertino

Pouco tempo antes deste dia com nuvens, que todos queríamos limpo, escutei uma história fabulosa, contada por uma terceira pessoa, na presença do homem que aproveitou a primeira semana em Liberdade para devolver muitos dos enxovalhos e das ameaças que sofreu, aos gajos ordinários feitos com a "situação", que ainda não tinham tido tempo de "virar as casacas".

Ele, com um sorriso nos lábios, disse que não se lembrava de nada, o que sabia era o que lhe tinham contado, mas acreditava que sim, que era uma boa verdade, daquelas que o enchiam de orgulho.
Ainda hoje pensa que nunca bebeu tanto álcool como na semana de 25 de Abril a 1 de Maio de 1974, nem sequer sabe se dormiu uma única noite, pelo menos na sua cama.
Aos "vintes" o corpo é quase de aço...
Entre o aproveitar a situação e o prazer de tratar "os bois pelos nomes", nunca chamou "filho da puta", de uma forma tão desabrida, a tanta gente digna desse nome, como nessa semana memorável...
Mesmo sem se lembrar, diz que sim, que bela "ópera do malandro" a sua, tendo como destinatários os ditos "filhos da puta" que lanchavam com o regime e entregavam os colegas com coluna vertebral aos pretensos amigos da DGS.
O mais giro foi assistir à sua mudança de "pele", nas semanas seguintes.
Houve um deles, o "Germanov", até se filiou no PCP, e por lá ficou, como grande antifascista que era...
Ainda pensei que fosse uma brincadeira, mas foi mesmo assim. Nessa semana até a alguns polícias de giro, ele chamou, "filhos da puta", e eles saíam de fininho, com o "rabo entre as pernas"...

Esta fotografia de Luís Buñuel, realizador de cinema espanhol, não está aqui por acaso. Ele era quase assim na época, segundo os amigos...

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Olhares Sobre o Tejo...

No começo da década de noventa do século passado conheci Júlio Verne (dos Santos). Não era um pseudónimo, era mesmo nome. Este registo "literário" não foi caso único, em Almada também viveu Emílio Zola (Rebelo), marido da minha amiga Idalina, que desapareceu recentemente.

Este hábito singular era normal no seio dos anarquistas, que gostavam de perpetuar o nome de algumas figuras universais que admiravam, através dos próprios filhos.
Voltando a Júlio Verne, uma das pessoas mais cultas que conheci, ele tinha uma particularidade única. Nunca saiu de Lisboa, nem tão pouco atravessou o rio, para ir almoçar uma caldeirada a Cacilhas, ou apanhar o comboio e ir até à praia a Cascais.
Nunca passeava rente ao Tejo, desculpava-se que a água do rio, lhe provocava tonturas.
Mas curiosamente gostava de espreitar o rio, no alto de qualquer colina de Lisboa, fosse Alfama, Bairro Alto, Mouraria ou Madragoa...

quinta-feira, novembro 20, 2008

Olhares na Cidade Maior

Conseguimos descobrir sempre coisas novas, de forma quase sempre espontânea e improvável, nas ruas, nos becos e até nos túneis da cidade...

Sim túneis, o Metro lisboeta desloca-se ao longo de várias redes de túneis, no subsolo da Capital...
Toda esta conversa, porque foi no interior de uma das carruagens que descobri que este é o único transporte onde olhamos os outros, que nos cercam, olhos nos olhos, durante mais que um simples segundo.
Isto acontece pela ausência de qualquer paisagem urbana, nas janelas, para nos distrairmos...
Nos autocarros, eléctricos e táxis, temos o quotidiano das ruas movimentadas, com pessoas, veículos, edifícios, monumentos, etc. Nos barcos temos a beleza do Tejo e das suas margens, além da ponte e de outras embarcações que sobem ou descem pelo rio. No Metro para lá das janelas só temos a escuridão... é por isso que restam os companheiros de viagem para ver alguma luz...
O curioso disto tudo, é que só hoje é que pensei nisto, ao olhar as pessoas...