sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

O Rio encantador e matreiro...


«Rio Tejo. A calma que transparece o fascínio dos seus contornos, margens e adornos são um verdadeiro encanto. Uma espécie de hipnotismo que não tem outra função senão a de esconder um ser matreiro, ardiloso, traiçoeiro e implacável, capaz de transformar num inferno a vida de quem tem o azar de nele se perder. É esta a face do rio que nos mostra o realizador José Nascimento em Tarde Demais, com estreia agendada para a próxima sexta-feira, 31.»

[José Paulo Vieira, "Visão (sete)", 30 Mar 99]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)



segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

"Decisão"



 "Decisão"

Depois de amanhã
Irei com o Álvaro de Campos para Glasgow.
[...]
O Álvaro de Campos gosta muito de gente
Que está fora do centro de gravidade.

Diz ele que isto de entrar a horas no emprego,
De um tipo pôr gravata e ter de pedir licença ao porteiro,
De tirar atestados de bom comportamento
Diz ele que tudo isto é muito chato muito estúpido.

E tem razão. Gosto de tipos assim.
Que são do avesso.
Que dormem de dia e têm a noite para viver.

São formidáveis!
Conhecem o que vós jamais conhecereis,
Burocratas estúpidos, carneiros de gravata,
Vós que não enetendeus, por que é que o Álvaro
Quer que o Tejo corra ao contrário.

É por isso que eu vou com o Álvaro Campos para Glasgow.
[...]

José Terra 

(Fotografia de Luís Eme - Fonte da Pipa)

domingo, 22 de dezembro de 2024

Os olhos de Cristina

 


Os olhos de Cristina

Inquietos, sacudidos pelo bulício da cidade antiga, os olhos de Cristina vieram da cidade nova e são dois faróis a avisarem a navegação das próximas tempestades quotidianas. Cristina saiu da estação do Metro da Baixa-Chiado e atravessou a muralha mandada construir por D. Fernando para beber um café e comer um bolo. Vista ao longe, diluída na pressa dos semáforos, Cristina não é apenas uma mulher. É também a imagem de uma cidade. Cidade habitada por afectos, cruzada por ruas de sonhos, por praças projectadas na vontade de ser feliz. Se Lisboa é uma cidade-mulher, luminosa e pronta a ser conquistada todas as manhãs, Cristina é uma mulher-cidade e os seus olhos, ora inquietos ora serenos, são as portas dessa cidade luminosa mas apenas existente nas metáforas e nas imagens. À direita, o Rio Tejo dá nos olhos de Cristina a ilusão de estar colocado nos últimos telhados da Rua do Alecrim. («Alecrim, alecrim aos molhos, por causa de ti choram os meus olhos» – diz a cantiga popular. Adiante.) Os cacilheiros, repletos de pessoas e de viaturas parecem desaguar num cais insólito feito de telhas antigas e de gaivotas ruidosas. Para o fim da tarde, no regresso a casa na cidade nova, os olhos de Cristina estão serenos pelo cansaço e pela presença luminosa de Raquel, sua filha. Se de manhã se juntou a cidade-mulher (Lisboa) à mulher-cidade (Cristina) então de tarde vemos que a mistura feliz é da mulher-menina (Cristina) com a menina-mulher (Raquel). Os olhos de Cristina, motivo do texto, são uma espécie de selo branco que vai certificar o momento feliz de encontro e de plenitude que esta crónica procura representar. Ou seja: dar um testemunho feito de palavras resgatadas à pressa da cidade. 

José do Carmo Francisco


(Fotografia de Luis Eme - Lisboa)


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cais do Gás

 

Cais do Gás

Sobe do Mar da Palha um som distante.
Talvez um barco que de longe, espera um rebocador na barra.

Sobe até aos meus ouvidos o ruído da água na pedra.
Repetição do movimento inicial do degelo
quando todos os rios começaram no leito da ternura.

É este o cais das grandes despedidas sempre adiadas.
Por aqui passou há muitos anos o receio
do aviso da mobilização

Mobilizado estava mas só para as pequenas guerras diárias
do sofrimento interior - resmungou a meia voz.
Ainda hoje não sabe se deve dizer barco ou navio.

[José do Carmo Francisco, in "De Súbito"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Retrato breve de Filipa em Vila Franca

 


Retrato breve de Filipa em Vila Franca
 
Flor da Lezíria, menina
Em Vila Franca, cidade
Descobre a cada esquina
O mapa de uma saudade
Passam alunos da Escola
Que ficam na fotografia
Todos usam camisola
A manhã está muito fria
Fecharam as tronqueiras
Já se sente uma emoção
As paixões verdadeiras
Não precisam explicação 
Entre gaibéus e avieiros
Passa a memória sentida
Do Tejo a encher esteiros
Com água que traz a vida
Os barcos cheios de areia
Chegam de manhã ao cais
Hoje o Gil Conde passeia
Nas águas do nunca mais
E no comboio que passa
Tão veloz para o Oriente
Há memória da barcaça
Com automóveis e gente
Ao lado fica um jardim
O ringue de patinagem
Os jogos não tinham fim
As palmas eram coragem
Olha de longe o Mouchão
Onde só olhar é preciso
E a terra vem dar razão
A quem busca o paraíso
Água, fogo, ar e terra
Conjugados num lugar
Coração em pé de guerra
Tem um poema de cantar
Flor da Lezíria, menina
Em Vila Franca, cidade
Descobre a cada esquina
O mapa de uma saudade
 
José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme - Vila Franca de Xira)

sábado, 30 de novembro de 2024

Balada dos telhados de Lisboa

 


Balada dos telhados de Lisboa
 
Telhados da minha cidade
Com as gaivotas a gritar
Avisos de tempestade
Lá para dentro do mar.
Que o mar à nossa frente
É mais a figura de estilo
Mar da palha e da gente
Só no Verão está tranquilo.
Rompe defesas no Inverno
Traz a palha dos animais
Para o estuário moderno
Que vive de outros sinais.
Que vive de outras medidas
Sem fragatas nem faluas
As pontes de ferro erguidas
Enchem de carros as ruas.
E digo adeus aos telhados
Da cidade debruçada
Sobre vapores lembrados
Numa memória de nada.
 
José do Carmo Francisco 


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Pombalesca"


"Pombalesca"

Os pombos sabem História...
Guardam na memória
Quem refez Lisboa.
Em cada cornija, em cada beiral,
Tagarelando p' las ruas à toa,
Cada pombo, que a sobrevoa, 
Sabe que Lisboa
É um pombal!

Um pombinho, que no Rossio
Anda com outros a desafio,
Petiscando migalhas
Que lhe atira uma menina,
Sabe que, do Rio até às muralhas, 
Lisboa, cidade genuína,
Com seus beirais e cimalhas,
Ficou pombalina!...

[Rui Palma Carlos, in "Lisboética e outros poemas"]

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

"Não sentes o cheiro a maresia?"

 


«Não sentes o cheiro a maresia?  O Tejo, pois minha flor, cantado por poetas e vagabundos, marginais e aventureiros, que, afinal, são uma e a mesma pessoa. Milagres? Só o santo, querida! O Sant ‘Antoninho que também protegia os namorados, repara como ele está bonito e bem humano, nesse altar ingénuo.»

 

                                                           [Eduardo Guerra Carneiro, “Sete”, 20 Jun 79]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


domingo, 20 de outubro de 2024

"Convém não esquecer o brilho do Tejo..."


«Convém não esquecer o brilho do Tejo que aparece por entre uma viela, um beco, umas escadas, do cimo de um adro de igreja. Peregrinar, como diria o mestre, é afinal divagar. No café da D. Teresa “flippers” a piscarem luzinhas e a darem bip-bip, as cerimónias do Dia de Portugal lá em cima nas terras da tua infância, um metalúrgico-fadista que não chegou a cantar o fado pois as senhoras queriam ver a TV e as variedades, zangado comigo por querer ir-me embora, uma sopa bem quente para cortar a ressaca.»

 

                                                           [Eduardo Guerra Carneiro, “Sete”, 20 Jun 79]


 (Fotografia de Luís Eme - Lisboa)



segunda-feira, 30 de setembro de 2024

"Os Montes Claros"...


«Os Montes Claros tornaram-se o lugar de eleição de Kaloust, O Chauffeur levava-o com regularidade para uma clareira de onde o magnata, sentado por baixo de uma acácia, permanecia horas a contemplar o estuário do Tejo em toda a sua largura por cima da copa das árvores, com as colinas da outra margem recortadas a cinzento acima do horizonte azul.»

[José Rodrigues dos Santos, in "Um Milionário em Lisboa"]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

"A larga bacia resplandecente do Tejo"


«A larga bacia resplandecente do Tejo estendia-se em frente à cidade, à esquerda, como um vasto piso de mármore espelhado por onde os cacilheiros da Parceria dos Vapores Lisbonenses  deslizavam com preguiça de tartaruga, enquanto Almada espreitava na outra margem. O Sol deitava-se já num prenúncio de crepúsculo, rasgando o céu em aguarelas vermelhas e lilases e arrancando ao arménio um suave suspiro de nostalgia.»

[José Rodrigues dos Santos, in "Um Milionário em Lisboa"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


sábado, 10 de agosto de 2024

"O ar, a cor, a luz..."


«O ar, a cor, a luz... A maneira como a cidade se foi adaptando à orografia, tornando-se barroca no sentido das perspetivas inesperadas. Vai-se na Rua da Escola Politécnica, olha-se para a esquerda e tem-se o Tejo lá em baixo. É também barroca no sentido da surpresa, é feita de pequenos recantos onde tudo se encaixa. Isto é das coisas que mais me encanta. E a luz, claro, que tem a ver com a sorte de apanhar o vento norte que limpa tudo e fica só a reflexão da bacia do mar da Palha. Neste aspeto, Lisboa tem uma condição única. Tem o mar à frente. Só é comparável a Istambul.»

[José Sarmento de Matos, in "E (Expresso)", 6 de Maio de 2017]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)