Encontrámos-nos na Baixa, ocasionalmente, depois de nos olharmos percebemos que éramos mesmo nós. Trocámos sorrisos e um abraço forte, que soube bem por tudo, até para esquecermos o frio do meio da tarde. Depois agarraste-me o braço e levaste-me para dentro de um café, onde ficámos na conversa mais de duas horas (cancelei uma reunião de trabalho por telemóvel, apenas com a desculpa que tinha encontrado um amigo e estava no "Nicola" a matar saudades, sem falar de doenças, filhos, filas, avarias, etc, as desculpas que costumo receber...).Estavas mais magro e também mais calmo.
Falámos de quase tudo, de política, de futebol - nem o "galinheiro" da Luz escapou...-, de música, de livros, de filmes, e de nós claro. Quiseste saber coisas lá de casa, dos miúdos que estão quase grandes, da loura rebelde. Como sempre, falaste pouco de ti. Perguntei pela Clara, a tua fonte de preocupações. Não te alongaste muito, apenas lamentaste ter sido um péssimo pai, sempre entretido com a gente de fora, seguindo os maus exemplos do teu pai. Quando falas dele, continuas a resumir tudo a uma frase, «era um homem extraordinário». Esqueces que era um reaccionário, apaixonado pelo dinheiro e pelas mulheres dos outros. Agradeces que ele, ao contrário de tantos progenitores, nunca quisesse que fosses a sua cópia, preferia que fosses um artista, de qualquer coisa. Foi por isso que te pagou estudos, cursos, viagens, e até os primeiros filmes, que quase ninguém viu. Nem sequer estranhou que te tornasses comunista. Mas disse-te uma vez, que para os burgueses era muito fácil gostar de Marx ou de Lenine, mais difícil era ser pobre e comunista. Nunca o esqueceste, foi por isso que também nunca deixaste de ajudar aqueles que precisavam.
É também por isso que estás a realizar aquele que deve ser o teu último filme, demasiado autobiográfico, que pode ter vários títulos, até a banalidade que não está guardada apenas para os operários da Margem Sul, que nunca quiseram enriquecer nem se tornaram funcionários das autarquias da CDU, "Comunista Até ao Fim".
Não sabes se vais acabar o filme, nem tão pouco se isso será importante. Não compreendes este mundo, que parece sem rumo, «refém de gente corrupta que nada em dinheiro». Nem compreendes estes desempregados que não se revoltam contra os patrões nem contra o estado.
Contaste-me que no teu filme acontece precisamente o contrário, há um "robin dos bosques" urbano, que se torna bom a transformar ricos em pobres e pobres em ricos... Filme que tem ainda outro contra, não fala de princesas nem de príncipes.
Quando saímos do café já era noite. Antes de nos despedirmos no coração da cidade, com um novo abraço, combinámos almoçar em Cacilhas, um dia destes.
O óleo é de Brent Lynch.