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terça-feira, outubro 19, 2021

«O Partido era uma "desorganização" muito bem organizada»


Os almoços tertulianos de segunda-feira estão de regresso, tal como as histórias sobre pessoas e lugares de Almada. É um encanto ouvir o Chico e o Orlando a explorarem a "memória de elefante" do Jaiminho, quando surgem dúvidas sobre esta ou aquela pessoa, ou sobre a localização exacta de uma antiga casa de comércio ou da morada de um dos seus amigos de infância.

Uma boa parte destes amigos já eram militantes do PCP antes de Abril. É por isso que de vez enquanto lhes escapa uma história, de como derrotavam o medo e "inventavam" qualquer coisa, para "concertar o que parecia não ter concerto", nos momentos de maior angústia. 

Foi também por isso que o António disse que «O Partido era uma "desorganização" muito bem organizada.» Improvisava-se muito, mas bem, às vezes à última hora...

A história que ele me contou era muito parecida com uma protagonizada pelo meu pai, nos anos 1950, pouco tempo depois de ter vindo para Lisboa. História essa que só me foi contada depois dele partir... 

Quando o avô foi preso em Peniche, a irmã era quase a única que o visitava (a Beira Baixa ficava demasiado longe...). O contacto com os familiares de outros prisioneiros políticos aumentou ainda mais o sentimento de injustiça que sentia e que deverá ter sido sempre o maior factor de união à volta do Partido. A prisão injusta de alguém, trazia sempre pessoas novas para dentro da "organização", nem que fosse apenas através de um apoio circunstancial, como oferecer uma refeição ou dar abrigo a algum camarada que precisava de se esconder por umas horas ou uma noite, para evitar a prisão.

Ou seja, um dos quartos da casa da tia do pai, que estava reservado para a visita de familiares, passou a estar também disponível para "hóspedes especiais".

Um movimento estranho ou alguma perseguição, fizeram com que a PIDE assinalasse o prédio onde os tios moravam como "casa de abrigo de comunistas", ao ponto de contratarem os serviços de um vizinho, que morava no andar cima e que tinha as qualidades que eles entendiam serem óptimas para bufo. O mais curioso (ou talvez não...), foi que ele se começou de imediato a gabar das novas funções com uma ou outra insinuação e até ameaça, tanto na padaria do tio como na tasca de frente, como se a partir daquele momento passasse a ser alguém "importante".

O sinal de alerta ficou registado e passaram a ter ainda mais cuidado com a vizinhança.

Nesses tempos havia o costume das vizinhas baterem à porta umas das outras, para pedir sal, açúcar ou outra coisa qualquer. A esposa do vizinho informador era useira e vezeira nestas visitas inesperadas. Entrava sem pedir licença e começava a falar e era um problema para a conseguirem calar e pôr da porta para fora. Foi numa dessas visitas que ela descobriu um jovem, que assim que a viu, escondeu o rosto e foi para o quarto. A tia disse que era um sobrinho que tinha acabado de chegar da província e estava pouco à vontade com as pessoas, mas percebeu logo que ela ficou desconfiada e foi por isso que nem quis mais conversas e encurtou a visita. 

Era quase hora de jantar e o meu pai estava a ajudar o tio a preparar a massa para as primeiras fornadas de pão, vestido de bata branca e com um pano na cabeça. Mal a vizinha saiu a tia desceu até ao rés de chão, fez sinal para o tio subir e contou-lhe o que se tinha passado. O tio sabia que não tinha muito tempo para "salvar a situação". Quando voltou à padaria olhou para o pai de alto a baixo, vestido de branco e sujo de farinha, e deu-lhe indicações para subir e trocar de roupa com a "visita de casa". O jovem percebeu que estava em perigo e disfarçou-se logo de padeiro. Assim que desceu para a padaria o tio passou-lhe uma encomenda para as mãos e deu-lhe uma morada para fazer aquela "entrega", continuando as suas tarefas diárias.

O pai entretanto ficara por casa e um quarto de hora depois receberam a visita esperada de dois homens, que depois de se identificarem e pedirem a identificação do pai e da tia, vasculharam a casa toda. Depois de se certificarem que era verdade o que diziam, foram-se embora deixando alguns avisos e ameaças no ar. Ainda visitaram a padaria (até espreitaram os fornos...), mas o rapaz nessa altura já devia estar longe e em segurança, embora nunca soubessem o que se passou a seguir...

A história do António foi parecida. Alguns movimentos estranhos à volta de uma casa de apoio em Almada, fizeram com que usasse a sua carrinha e uma cómoda para fazer uma entrega de última hora, mas só trocaram de ajudante... a mesma cómoda voltou a descer as escadas de novo. Também deixou o seu "novo ajudante" numa nova morada e não soube mais nada dele...

Sei que me tenho "estendido" um pouco com estas histórias do tempo dos "outros senhores". Mas penso que não havia outra forma de contar estes episódios de outros quotidianos... que mesmo assim, estão muito resumidos.

(Fotografia de Luís Eme - Cova da Piedade)


terça-feira, abril 07, 2020

Livros, Memórias e Livreiros...


Embora não tenha nada a ver com a situação que se vive actualmente, achei curiosas as palavras de Santos Fernando, no seu livro "Sexo 20" (a primeira edição é de 1975), que também é de memórias, sobre a relação que a PIDE tinha com a literatura, e também sobre a "habilidade" e "capacidade de adaptação" dos livreiros a esses tempos... 

Transcrevo as suas palavras com a devida vénia:

«Lembro-me, numa manhã de Dezembro, ter visto entrarem na "Ler" dois burjessos que, munidos de autos de apreensão do modelo 325, por determinação superior, segundo constava do auto em papel almaço azul (da cor dos descobrimentos marítimos) caçaram dois meses depois da abertura da caça, 125 exemplares de "Sobre a Emancipação da Mulher", da autoria de Engels, Lenine e A. Kollantai, e alguns exemplares de "Pessoas Livres", do padre José Felicidade Alves.»

«Os livreiros aprenderam os seus truques, passaram a fazer o seu bom negócio com o fruto proibido, vendendo não só a maçã do pecado, como ainda o Adão, a Eva e a serpente, por baixo do balcão e às escondidas.»

«Os livros proibidos escondiam-se nos sítios mais incríveis e inacessíveis. Algumas vezes uma obra de Neruda ou de Fidel Castro era embrulhada com o rótulo exterior de "Discursos de Marcelo Caetano".»

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

domingo, setembro 22, 2019

«Eles não falam, só ouvem música clássica, baixinho»


Alguns relatórios de agentes e colaboradores da PIDE/DGS, conseguem ter alguma graça e explicar que a inteligência nem sempre era o seu forte...

O filho de um amigo de um dos meus primos contou-me um episódio, que se passou no começo dos anos setenta do século, passado na "casa da liberdade" (era o nome que davam à casa deste meu familiar, por estar sempre aberta a quem vinha por bem...). Sabiam que lhes observavam os passos, quanto mais não fosse pelo corrupio de gente que entrava e saía do prédio. Mas não tinham pensado na hipótese de terem sido colocadas "escutas" nas divisões da casa, durante as suas visitas de surpresa, feitas quase sempre no começo do dia. Além de virarem a casa do avesso, eram especialistas em levar papeis e livros insignificantes. Embora tivessem cuidado com as palavras, só  começaram a desconfiar que estavam a ser "escutados", quando ouviram uns ruídos estranhos que vinham da parede onde estava a estante, quase da família dos "cliques" esquisitos do telefone...

Continuaram a conversar, com os mesmos cuidados, embora uma vez ou outra inventassem umas coisas "para ver se pegava"...

Mas o que eu queria era falar do relatório... que dá um relevo especial ao dois oposicionistas que se encontravam ao fim da tarde, para ouvir música clássica, sem abusarem dos decibéis... 

Durante a hora e meia que duravam estes encontros semanais o único diálogo audível entre os dois, eram pequenos apontamentos musicais sobre os títulos das músicas e algumas histórias sobre os seus compositores.

Se já existissem câmaras de filmar minúsculas tinham tornado tudo mais fácil, perceberiam que estes dois companheiros passavam os encontros a trocarem mensagens de papel... E não tinham escrito esta pérola: "Eles não falam, só ouvem música clássica, baixinho".

(Fotografia de Luís Eme - Salir de Matos)

sexta-feira, abril 14, 2017

A Clandestinidade...

Quando se entrava a sério na luta antifascista, dificilmente se escapava às garras da PIDE.

Para se evitar a prisão eminente, muita gente passava a viver outras vidas, na clandestinidade, saltando de terra em terra, de disfarce em disfarce... 

Era uma vida estranha, em que se tinha de abdicar de quase tudo, desde a família, aos amigos, passando pelos lugares que tanto amávamos...

Tinha de se possuir um espírito aventureiro, uma alma quase de vagabundo e ainda uma boa componente cénica, para se conseguir  mudar de vida de um momento para o outro, criando uma nova personagem...

(Fotografia de Herbert List)

segunda-feira, abril 10, 2017

A Procura dos Campos Abertos...

Era demasiado pequeno para perceber o porquê da procura de campos abertos, por parte dos tios e dos amigos que andavam quase sempre com as violas e as cantigas coladas ao corpo, naquele começo dos anos setenta do século passado...

Além de ser quase a "mascote" daquela juventude inquieta, já era livre por natureza. Foi por isso que só alguns anos depois, já no País de Abril, percebi aquela procura dos campos abertos, longe das árvores...

Eles não corriam riscos, era por isso que andavam quase sempre mais que a conta (enquanto eu saltitava de cavalitas em cavalitas) e falavam e cantavam, com a certeza que não havia qualquer "bufo" ou agente da PIDE nas imediações...

De vez em enquanto as conversas regressam  a esses tempos, onde também se ensaiaram algumas fugas, com cada um a escolher o seu caminho, porque qualquer estranho que aparecesse, era um potencial inimigo.

E eu confesso sempre, que pensava que tudo aquilo não passava de uma brincadeira, com miúdas e música...

(Óleo de Claude Monet)

Nota: Esta semana vai ser dedicada ao "Abril-Revolução", com pequenos relatos sobre o quotidiano de pessoas especiais, cuja simplicidade, por vezes, até faz doer...

quarta-feira, outubro 02, 2013

A Epopeia dos Bufos,Graxas e Outras "Aves de Arribação" - ou a Tal Proximidade da Ditadura


Quando trabalhamos por conta própria, vivemos num mundo à parte. Nem nos apercebemos do valor da liberdade que temos, apenas dos custos...

Dois amigos funcionários públicos confessaram-me que o ambiente nos seus trabalhos "fedia". Nunca tinham  reparado na existência de tantos bufos e graxas, cada vez mais descarados, nos seus serviços.

O Nuno tentou fugir dos totalitarismos: «A malta tem a mania de culpar o Salazar por tudo e por nada, mas não sei até que ponto ele tem culpa de sermos uns "bufos" e uns "lambe botas". Somos é uns "merdas", que fazemos tudo para ficarmos bem vistos.»

O João abanou a cabeça e empurrou todas as culpas para o ditador e para os que pensam como ele: «Claro que tem culpa. Ele e todos os que não convivem bem com a liberdade e a democracia. É por isso é que criam "papões" no trabalho e deixam bem expresso que a maneira mais fácil de subir na carreira é pertencer ao SIC (serviço de informações do chefe). É essa merda que estes filhos da puta chamam mérito, mas não passa de bufaria com fartura em todos os serviços.»

O João acalmou-se e acabámos por falar do clima de medo que se tinha instalado na função pública, com os despedimentos anunciados. Ninguém queria perder o emprego e mostravam que tinham um preço demasiado fácil aos chefes, que sempre adoraram cortes de bajuladores e informantes...

Felizmente ou infelizmente, é nos momentos dificeis que vem ao de cima o verdadeiro carácter de cada um de nós.

O óleo é de Max Liebermann.

quarta-feira, julho 17, 2013

Cartas Vermelhas


Este livro, logo que saiu, despertou-me a curiosidade, pela frase impressa na capa: «a história de uma militante comunista que se apaixona por um inspector da PIDE.»

Tem de ser uma aventura cheia de dramas, grandes e pequenos, pois este é um daqueles casos, em que a escolha de se amar e viver com o inimigo, só podia ser entendido como traição...

E é uma estreia, não conheço nenhuma obra de Ana Cristina Silva.

quarta-feira, janeiro 16, 2013

O Homem da Gabardine Preso à Esquina


Hoje estive à conversa com um velho comunista, que me contou vários episódios da sua vida de resistente, ao qual nem faltaram alguns anos de clandestinidade.

Não me soube dizer como foi que tudo começou, embora se tenha lembrado da razão de ter ganho um ódio terrível às gabardines (nunca teve nenhuma na vida...) e aos chapéus (também não...), por causa do homem que esteve estacionado durante dias na mesma esquina, numa atitude intimidatória e provocatória, rente à porta de um professor proibido de leccionar, inclusive em casa...

E aquele senhor que eles prenderam e soltaram dezenas de vezes, nunca deixou de ser o seu amigo professor.

O óleo é de Juan Luis Jardi.

quinta-feira, dezembro 18, 2008

A Primavera que Nunca Saiu do Outono...

A entrevista de Ana Maria Caetano à "Visão" merece-me vários comentários.

Embora compreenda a sua posição de filha, para quem o pai era uma das pessoas mais importantes do mundo, penso que não era preciso entrar em exageros, nem tão pouco tentar "fintar" a história.
Se por um lado é errado comparar os dois ditadores que nos governaram de 1932 a 1974, por outro, é perfeitamente natural. No essencial tiveram uma postura idêntica, governaram com um partido único e salvaguardados pela existência de uma polícia política capaz das maiores atrocidades, inclusive de matar. Polícia essa que ia a despacho a São Bento...
Quando a senhora diz que o pai era mais socialista que muitos socialistas, nem é uma grande descoberta, se olharmos para a política de Sócrates, mais protectora do grande capital que o próprio PSD. Embora deva acrescentar que estes governam, legitimados pelo povo, o que nunca aconteceu com Marcelo Caetano...

quarta-feira, dezembro 19, 2007

A Morte Traiçoeira de Um Grande Artista


Há exactamente quarenta e seis anos, a PIDE matou, cobardemente, José Dias Coelho, com vários tiros disparados nas suas costas, numa das ruas de Alcântara.
Na época Dias Coelho era um promissor artista plástico, militante do PCP, que decidiu abdicar dos seus sonhos pessoais e passar à clandestinidade, juntamente com a sua companheira de sempre, Margarida Tengarrinha, atrás de um sonho maior: o da Liberdade para todos os portugueses.
O desenho que escolhi, foi uma adaptação que fiz de um dos seus últimos desenhos, reproduzido no "Avante", a quando do assassinato de Cândido Pilé, em Almada, ocorrido um mês antes da sua morte, utilizado (com um filtro) para a capa do meu livro "Almada e a Resistência Antifascista".

segunda-feira, abril 30, 2007

Conversas de Abril (III)


Uma das coisas mais bonitas da nossa Revolução foi a grande lição de democracia e civismo, dada por todos aqueles que foram vitimas da PIDE. Não vimos ninguém aos tiros, a vingar a vida do pai, da mãe, do filho, da filha, do irmão, da irmã, do avô, da tia ou do tio.
Todos acreditaram na possibilidade de se fazer justiça pelos canais legais, através dos tribunais. Muitos ficaram desiludidos, por assistirem à impunidade de muitos dos carniceiros, que os torturaram de todas as formas possíveis, algumas das quais, nem nos passam pela cabeça. A maior parte passou apenas meia dúzia de meses na prisão, depois voltaram a ser cidadãos livres, como se fosse possível apagar o seu passado vergonhoso, com uma borracha...
Mais grave foi assistirem, quase duas décadas depois, à condecoração de dois inspectores da PIDE ou DGS, pelo governo do professor Cavaco Silva.
Estas palavras são dedicadas, inteiramente, aos resistentes antifascistas, quase todos do PCP, que cumpriram dezenas de anos nos presídios do regime, sem baixarem os braços na luta pela liberdade e pelo sonho da construção de uma sociedade mais justa.
Eles nunca desistiram de sonhar nem de lutar, nem mesmo quando começaram a ser empurrados pelos oportunistas de verbo fácil, que apareceram, apostados em agarrar as cadeiras confortáveis do poder.

Quando penso em homens como Alberto de Araújo, Bento Gonçalves, Alex Dinis, Militão Ribeiro, Dias Coelho, Soeiro Pereira Gomes, Pedro Matos Filipe, Mário Castelhano, Jacinto Vilaça, Joaquim Montes, entre tantos outros, que deram a vida pela Liberdade, esqueço tantas histórias e sinto-me, profundamente, comunista...

A ilustração que acompanha este texto foi pintada por Rogério Ribeiro, para o livro "Até Amanhã Camaradas", romance de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal).

domingo, abril 15, 2007

Férias Forçadas em Abril


Quando voltava a casa Eduardo descobriu um movimento estranho à volta do prédio onde moravam, na Ajuda. Sem dar nas vistas continuou a caminhar e virou na próxima esquina. Andou perto de uma hora com a discrição possível. Já em Alcântara entrou num café, onde bebeu uma água e descansou um pouco, ainda sem saber muito bem o que fazer. Sabia que não podia voltar a casa. O aviso que lhe fizeram, da última vez que tinha sido interrogado, que da próxima vez que o vissem por ali não regressava a casa, soava na sua cabeça como se fosse quase um disco riscado.
Telefonou a um amigo de confiança, para que descansasse a companheira, de que continuava em liberdade. Depois apanhou o comboio para as Caldas. Apesar de estar a um passo da aldeia onde nasceu, não disse nada a ninguém da família, para não os colocar em risco. Refugiou-se na casa de um casal amigo, na Foz do Arelho.
Foi nesta localidade que soube da Revolução, dez dias depois, pela rádio, que esteve ligada dia e noite... com o evoluir da situação, acreditou que era desta, que se acabava, de vez, com a ditadura.
No dia 26 de Abril regressou a casa, felicíssimo, logo no primeiro comboio da manhã...

Só soube desta história, seis anos depois, quando fui convidado para jantar na casa do Eduardo e da Isabel, no dia 15 de Abril de 1981.