Uma boa parte destes amigos já eram militantes do PCP antes de Abril. É por isso que de vez enquanto lhes escapa uma história, de como derrotavam o medo e "inventavam" qualquer coisa, para "concertar o que parecia não ter concerto", nos momentos de maior angústia.
Foi também por isso que o António disse que «O Partido era uma "desorganização" muito bem organizada.» Improvisava-se muito, mas bem, às vezes à última hora...
A história que ele me contou era muito parecida com uma protagonizada pelo meu pai, nos anos 1950, pouco tempo depois de ter vindo para Lisboa. História essa que só me foi contada depois dele partir...
Quando o avô foi preso em Peniche, a irmã era quase a única que o visitava (a Beira Baixa ficava demasiado longe...). O contacto com os familiares de outros prisioneiros políticos aumentou ainda mais o sentimento de injustiça que sentia e que deverá ter sido sempre o maior factor de união à volta do Partido. A prisão injusta de alguém, trazia sempre pessoas novas para dentro da "organização", nem que fosse apenas através de um apoio circunstancial, como oferecer uma refeição ou dar abrigo a algum camarada que precisava de se esconder por umas horas ou uma noite, para evitar a prisão.
Ou seja, um dos quartos da casa da tia do pai, que estava reservado para a visita de familiares, passou a estar também disponível para "hóspedes especiais".
Um movimento estranho ou alguma perseguição, fizeram com que a PIDE assinalasse o prédio onde os tios moravam como "casa de abrigo de comunistas", ao ponto de contratarem os serviços de um vizinho, que morava no andar cima e que tinha as qualidades que eles entendiam serem óptimas para bufo. O mais curioso (ou talvez não...), foi que ele se começou de imediato a gabar das novas funções com uma ou outra insinuação e até ameaça, tanto na padaria do tio como na tasca de frente, como se a partir daquele momento passasse a ser alguém "importante".
O sinal de alerta ficou registado e passaram a ter ainda mais cuidado com a vizinhança.
Nesses tempos havia o costume das vizinhas baterem à porta umas das outras, para pedir sal, açúcar ou outra coisa qualquer. A esposa do vizinho informador era useira e vezeira nestas visitas inesperadas. Entrava sem pedir licença e começava a falar e era um problema para a conseguirem calar e pôr da porta para fora. Foi numa dessas visitas que ela descobriu um jovem, que assim que a viu, escondeu o rosto e foi para o quarto. A tia disse que era um sobrinho que tinha acabado de chegar da província e estava pouco à vontade com as pessoas, mas percebeu logo que ela ficou desconfiada e foi por isso que nem quis mais conversas e encurtou a visita.
Era quase hora de jantar e o meu pai estava a ajudar o tio a preparar a massa para as primeiras fornadas de pão, vestido de bata branca e com um pano na cabeça. Mal a vizinha saiu a tia desceu até ao rés de chão, fez sinal para o tio subir e contou-lhe o que se tinha passado. O tio sabia que não tinha muito tempo para "salvar a situação". Quando voltou à padaria olhou para o pai de alto a baixo, vestido de branco e sujo de farinha, e deu-lhe indicações para subir e trocar de roupa com a "visita de casa". O jovem percebeu que estava em perigo e disfarçou-se logo de padeiro. Assim que desceu para a padaria o tio passou-lhe uma encomenda para as mãos e deu-lhe uma morada para fazer aquela "entrega", continuando as suas tarefas diárias.
O pai entretanto ficara por casa e um quarto de hora depois receberam a visita esperada de dois homens, que depois de se identificarem e pedirem a identificação do pai e da tia, vasculharam a casa toda. Depois de se certificarem que era verdade o que diziam, foram-se embora deixando alguns avisos e ameaças no ar. Ainda visitaram a padaria (até espreitaram os fornos...), mas o rapaz nessa altura já devia estar longe e em segurança, embora nunca soubessem o que se passou a seguir...
A história do António foi parecida. Alguns movimentos estranhos à volta de uma casa de apoio em Almada, fizeram com que usasse a sua carrinha e uma cómoda para fazer uma entrega de última hora, mas só trocaram de ajudante... a mesma cómoda voltou a descer as escadas de novo. Também deixou o seu "novo ajudante" numa nova morada e não soube mais nada dele...
Sei que me tenho "estendido" um pouco com estas histórias do tempo dos "outros senhores". Mas penso que não havia outra forma de contar estes episódios de outros quotidianos... que mesmo assim, estão muito resumidos.
(Fotografia de Luís Eme - Cova da Piedade)