terça-feira, fevereiro 27, 2007

A Cartilha de Salazar



Numa altura em que anda por aí tanta gente apostada em transformar um assassino (sim, o mandante de qualquer assassínio também é autor material do crime) numa pessoa de bem, acho por bem transcrever apenas uma pergunta e uma resposta da "Cartilha da União Nacional", cuja 2ª edição de 1935, encontrei num alfarrabista.

É, sem qualquer dúvida uma obra muito educativa e explica logo na primeira página, que foi aprovada pelo Doutor Oliveira Salazar.

Como devem calcular, trata-se de um ataque à democracia...

«Que relação existe entre essa liberdade abstracta da Democracia e a igualdade e fraternidade da sua divisa?

Praticamente a maior contradição, porque, como já atrás mostrámos, o desencadear das ambições individuais, determina o esmagamento do fraco pelo forte e a luta de todos contra todos.

Há, porventura, igualdade e fraternidade num regime que se apoia numa associação secreta, a Maçonaria, que, sob o seu aspecto mais inocente, o da beneficência e auxilio mútuo, vive exclusivamente para privilegiar, muitas vezes contra o direito, a moral e a justiça, uma ínfima minoria, à custa do restante da Nação?
Há porventura, liberdade quando, em caso de eleições, um partido manda os seus sequazes agredir a tiro, â bomba e à cacetada os seus adversários, destruir as urnas e praticar todos os desmandos para vencer, como sucedia em Portugal antes do 28 de Maio?
Certamente que não.»

Foi com tratados destes, publicados para educar as massas ignorantes, que Portugal esteve 48 anos subjugado a um regime, do qual só encontro razões para me envergonhar.

sábado, fevereiro 24, 2007

O Barbeiro das Avenidas Novas


O senhor Araújo foi um barbeiro bem sucedido, pela tenacidade, pela competência e pela parcimónia, qualidades que trouxe da sua Beira natal e praticou até ao último dia.
Começou como empregado numa barbearia popular de Alfama, onde aperfeiçoou os conhecimentos rudimentares da arte que aprendera na aldeia e não tardou muito que se tornasse proprietário do estabelecimento.
Ali, foram seus clientes os fragateiros, os estivadores, os bufarinheiros e outra gente da beira-rio, mundo estreito para si, até que se mudou para as avenidas novas - bom dia senhor doutor, boa tarde senhor engenheiro - três cadeiras, manicura, engraxador e tabuleta.
Alfama foi também o meu bairro na segunda metade dos anos sessenta, mas só nas avenidas novas o conheci e durante mais de trinta anos lhe confiei o meu cabelo, retinto e forte, nos primeiros tempos, encanecido e ralo, por último.
Barbeiro à antiga - cabeleireiro de homens que é lá isso, meu amigo?! - olhava com desconfiança para as novas tecnologias da profissão que aceitava a contragosto depois de testadas pelo seu empregado de sempre, o senhor António, mas se fosse ele a mandar, a tesoura continuaria a ser a extensão natural do seu braço, com o som ritmado e sonolento de sempre, e as lâminas descartáveis – um desperdício, meu amigo, nada que chegue a uma navalha bem afiada! - escusavam de ter aparecido.
Mas não pensem que esta barbearia era obsoleta ou retrógrada, pois o senhor Araújo era um homem de brios e não aceitaria ficar atrás dos outros, nem permitiria que nas bancadas do seu estabelecimento faltasse qualquer dos instrumentos modernos da profissão.
O senhor Araújo tinha uma farta cabeleira branca, impecavelmente penteada, o que acentuava a elegância do seu porte e, por si só, o recomendava a qualquer cliente.
Quando lhe perguntei o segredo - que champô, que creme, que loção - intimamente desejoso de vir a ter uma cabeleira parecida:
- Sabão, meu amigo !
- De seda, senhor Araújo?
- De seda?! Azul, meu amigo, azul!.
Aqui há anos, já perto dos 80, o senhor Araújo teve apalavrado o trespasse do seu estabelecimento, tendo finalmente admitido que era tempo de descansar e de regressar à terra, onde tinha uma mansão que só abria uma vez por ano, na semana do padroeiro, que o seu estabelecimento patrocinava.
À medida que se aproximava o dia da escritura, o senhor Araújo começou a andar nervoso, ficou mesmo doente e, sem olhar ao prejuízo, devolveu em dobro o sinal que tinha recebido.
- Pensando melhor, o que é que eu ia fazer com o dinheiro, meu amigo?
O senhor Araújo cortou-me o cabelo pouco antes de eu ir de férias - assim curtinho, parece mais cheio e dá menos trabalho – e quando voltei passado um mês, encontrei uma cadeira vazia:
- Não me digam que o senhor Araújo sempre foi de férias ?!
Mas não, o senhor Araújo não tinha ido de férias, o senhor Araújo deixara-nos definitivamente num dos domingos anteriores, ia a caminho de casa ao volante do seu velho Taunus, depois de ter passado pela barbearia, para ver se tudo estava em ordem.
Faleceu
in itinere, diria um dos seus clientes versado em leis e, se o conhecesse bem, descontar-lhe-ia o facto de ser dia de descanso semanal.
Com a receita do sabão azul, o senhor Araújo augurou-me um cabelo farto até ao fim dos meus dias. Já o desonerei desta promessa, mas às vezes me apeteçe-me cobrá-la do seu genro, agora que finalmente é ele o patrão e o meu cabelo vai ficando cada vez mais ralo:
- Então, senhor Carlos, já não se cumprem as promessas?
O senhor Araújo quis ser cremado e dispôs que suas cinzas fossem espalhadas na serra mãe, a Gardunha, onde nasceu, granjeou a terra e guardou o gado, era ainda criança e muito dura a vida.
Foi um sábio, o senhor Araújo, na sua Arte, na sua Vida e na sua morte!


Mais um excelente texto de Joaquim Nascimento, que desta vez tem dedicatória: «Para a minha filha que me deu o mote.» A fotografia do Marechal no barbeiro é de Eduardo Gageiro.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Quadras Para Todos os Gostos



De caciques e de bujos
Mandei fazer um sacrário
Para pôr no travesseiro
Dum cura reaccionário


quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Aparece Sempre Zeca...


Zeca, fico satisfeito por nunca te afastares muito da aparelhagem cá de casa, por continuares a cantar de roda e a encantar, ao mesmo tempo que nos fazes reflectir...
Às vezes parece mentira, que já te fizeste à estrada do mundo, há vinte anos...
Porque, felizmente a tua voz incómoda, continua por cá, com a marca da independência contra todos os impérios sociais, fascistas, falsamente democratas ou comunistas.

Como eu te compreendi, quando disseste que eras o teu próprio Comité Central, que gostavas de pensar pela tua própria cabeça, que não precisavas de ordens ou sujestões de "patriarcas" ou "cardeais"...

Infelizmente, em vinte anos, quase nada mudou Zeca, neste canto.

Eles continuam a querer comer tudo e a não deixar nada...

É por isso que precisamos de te ouvir mais vezes, para ganharmos coragem, para inventarmos outra revolução, para descobrirmos outro país...

É por isso que eu digo: «Zeca, aparece sempre!»

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Lisboa dos Anos Oitenta (Conclusão)


Acabei o meu último texto sobre Lisboa, a falar da dispersão humana do centro da cidade, sem falar da principal tragédia, que transfigurou completamente a baixa lisboeta no final da década de oitenta.

Foi propositado. E como focou muito bem a Sininho, no seu comentário, o que mudou realmente o movimento e a vida na Baixa Lisboeta, foi o incêndio, que deflagrou no coração do Chiado, no Verão de 1988.

Recordo-me bem desse dia, porque estava a algumas centenas de quilómetros de distância. Estava acampado no Gerês com amigos. Quando ouvimos a notícia na rádio, ficámos de tal maneira chocados, que fomos à procura de um lugar com televisão, para vermos a verdadeira dimensão da tragédia, no jornal da tarde.

E foi mesmo uma verdadeira tragédia, porque além de toda a destruição provocada pelo incêndio, durante anos, as "ruínas do Chiado", não passaram disso mesmo...

A canção dos UHF, «Olha como é, a Rua do Carmo!», que homenageia as mulheres bonitas que subiam o Chiado, presas às montras, gingando as ancas... recorda memórias, que ainda não voltaram, completamente, àquela rua...

O único acontecimento equivalente a esta tragédia, foram todas as peripécias à volta do túnel do metro na Praça do Comércio, que deslocaram da Baixa milhares de pessoas que vinham da Margem Sul e tiveram de arranjar novas alternativas (metro do Cais Sodré e comboio da Ponte...), em relação aos transportes utilizados no seu dia a dia.

Mais uma vez, o coração da Baixa, viu-se privado de milhares de visitantes, diariamente...

O problema do túnel subsiste nos nossos dias, em mais uma obra digna de Santa Engrácia (e existem tantas, à boa maneira portuguesa...).

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Lisboa dos Anos Oitenta (II)


Graças a dois amigos especiais, o Tozé e o Henrique, lisboetas de gema, percorri várias Lisboas, muitas vezes a passo, porque a cidade dos primeiros anos da década de oitenta era muito mais aberta e descontraída, praticamente sem focos de criminalidade violenta. A única coisa que tínhamos de ter cuidado, era com os muitos carteiristas que apareciam e desapareciam nas carruagens do metro e nos autocarros, nas horas de ponta.
Nessa época víamos muito cinema, nas salas grandes - ainda existia o Condes, o São Jorge e o Eden, que davam vida à Avenida da Liberdade – e nos pequenos estúdios espalhados pela cidade, como o Apolo 70, o Londres, o Castil ou o Nimas.
Também nos aventurávamos na noite (quase sempre às quintas), muito mais curta que nos nossos dias. Às quatro da manhã fechavam quase todos os bares e discotecas. Os únicos locais que permaneciam abertos estavam ligados a uma Lisboa mais marginal, onde acabam a noite prostitutas, proxenetas, homossexuais e gente da vida artística, que também conheci, muito superficialmente.
Voltando à Avenida da Liberdade, as esplanadas enchiam-se de gente de todas as idades, da Primavera até ao Outono.
Era uma cidade mais viva, mas também mais viciosa...
Próximo do Elevador da Glória passeavam prostitutas, sempre com o mesmo convite: «Queres vir para o quarto querido?», e claro com outras promessas, que de certeza, ficavam por cumprir... Os homossexuais também apareciam em todas as esquinas, com perseguições e olhares matadores, que tinham tanto de cómico como de ridículo.
Com o aparecimento do HIV, as prostitutas e os homossexuais quase que desapareceram das ruas da baixa.
Os outros lisboetas? Devem ter começado a dispersar, lentamente, frequentando outros lugares, primeiro as “Amoreiras”, depois o “Colombo” e mais tarde o “El Corte Inglês”...
Este texto está ilustrado com um óleo de Botelho sobre Lisboa, os "Restauradores".

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Um Tinto à Minha Mesa


O vinho nosso de cada dia está este ano pior, não sei se por ter sido um ano de má colheita nas terras de onde vem, se por qualquer erro humano que sempre pode acontecer a quem pratica esta alquimia de fazer das uvas vinho, falível como qualquer arte, muito longe de ciência exacta, onde se obtém o mesmo resultado quando se repetem as premissas.
Era um tinto do Baixo Corgo, ainda na Região que o Senhor Marquês mandou demarcar e que já me tinha pregado um susto aqui há três anos, quando resolveu ocultar-se durante algum tempo. Reapareceu pouco depois com roupagem nova, talvez mais janota, e eu que cheguei a temer o pior, mal voltei a vê-lo precipitei-me para ele, mas fiquei tranquilo quando o abri e provei, por ter verificado que mantinha intactas todas as qualidades que me levaram a escolhê-lo, ficando demonstrado, também aqui, que o hábito se não faz o monge também o não desfaz.
Além disso, manteve o preço, numa relação muito virtuosa com a qualidade e com o prazer que me proporcionava e continuou a sentar-se à minha mesa, como era de toda a justiça. Recomendei-o frequentemente aos meus amigos, mas quero crer que não tive nisso muito sucesso, talvez pelo excesso dos adjectivos que usava na sua promoção que fazia duvidar que tantas qualidades coubessem num preço tão modesto.
Este ano foi diferente. Em Outubro começou a rarear, pouco depois esgotou-se nas três grande superfícies onde me habituara a comprá-lo. Que lhe terá acontecido, perguntava eu para comigo e aos empregados que por ali andavam, sem receber resposta mais elucidativa do que o óbvia e burocrático: está esgotado !
Com renovada esperança e a serenidade de um Buda com muitos anos de chá, esperei pela nova colheita mas já com a convicção de que o meu vinho, quando voltasse, iria manter todas as qualidades que tinham determinado a minha preferência e, pelos vistos, a de muitos outros consumidores.
Infelizmente não foi assim e aquele vinho que já considerava meu, como se lhe tivesse granjeado a vinha, pisado as uvas e envasilhado o mosto, chegou ronceiramente pelo Natal, mais baço aos meus olhos o ruby da sua cor, menos redondo ao meu palato um novo e arrevesado gosto, já não salta quando o sirvo, já não cheira às uvas maduras das muitas castas que se juntavam para o fazer e o gosto bom a frutos vermelhos que antes o distinguia, abandonou-o fortemente. Agora está mais pesado, perdeu o melhor da sua juventude e não ganhou nenhuma qualidade de um vinho velho.
Nem sequer é relevante que esteja mais barato um euro, pois quebrou-se a relação virtuosa, essa divina proporção, que manteve durante tanto tempo.
Mesmo assim, mantenho ainda alguma esperança de que num melhor ano de uvas ele volte a ser quem era pois quero atribuir esta expontânea redução de preço à honestidade do seu produtor que reconheceu, antes que alguém lho dissesse, que este ano o seu vinho valia menos.
Vou esperar pela próxima vindima. Vou mesmo rezar aos santos protectores das uvas que as faça boas, doces, sumarentas e cheirosas para voltar a ter o meu vinho tinto da Região que o Senhor Marquês mandou demarcar, de novo jovem, fresco, leve, com aroma a frutos vermelhos, de sabor fresco e equilibrado, parecido com o vinho da minha terra - as mesmas castas, o mesmo chão, a mesma sabedoria - que na minha memória todos os anos se faz e se consome antes de fazer um ano, antes que o calor o tolde e o envinagre.
Oxalá, para aquecer a alma, a um preço justo!

Mais um texto da autoria de Joaquim Nascimento, colaborador do "Largo da Memória", ilustrado pelo famoso óleo, "O Almoço dos Remadores", de Renoir.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Lisboa dos Anos Oitenta (I)


Lisboa há vinte cinco anos atrás era uma cidade tão diferente...
Houve transformações extremamente positivas. A maior talvez tenha sido o fim dos vários bairros de lata que cercavam a Capital em quase todas as direcções, e que eram um flagelo social.
O Município pode ter falhado em muitos aspectos – e falhou... -, mas pelo menos, pode se orgulhar de ter conseguiu oferecer melhores condições de vida e mais dignidade, a milhares de pessoas, que viviam nestes “guetos” quase como animais, sem as condições mínimas de habitabilidade.
Embora só tenha conhecido esta realidade de relance - quando passava por perto, de comboio, autocarro ou automóvel – arrepiava-me saber que havia milhares de crianças que cresciam sem um tecto decente, muitas vezes em condições de promiscuidade, que as acabavam por marcar para o resto das suas vidas...
A fotografia que ilustra este pequeno texto faz parte do Album de Eduardo Gageiro, "Lisboa no Cais da Memória", e retrata o Bairro Chinês da Marvila, em 1968.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

O General Sem Medo


Humberto Delgado, o “General sem Medo”, foi assassinado, há exactamente, quarenta e dois anos, pela PIDE, juntamente com a sua secretária Arajaryr Campos.
Após ter decidido enfrentar o poder salazarista, com a sua candidatura à Presidência da República, em 1958, pela oposição democrática, o general passou a ter a cabeça a prémio.
Estas eleições acabaram por marcar a viragem do país, trazendo milhares de portugueses para as ruas, durante a campanha eleitoral, que se manifestaram contra Salazar, que ficou enfurecido, desde que Humberto Delgado teve a coragem de dizer em público, o que lhe faria se ganhasse as eleições: «Óbviamente demito-o», na célebre conferência de imprensa do Café “Chave de Ouro”.
Salazar tremeu pela primeira vez e viu-se obrigado a preparar, previamente, a fraude eleitoral, que proporcionaria a vitória de Américo Tomás, candidato do regime.
Humberto Delgado, após a divulgação dos resultados, fez sentir a sua indignação, acusando o governo de Salazar de fraude eleitoral. Indignação que se espalhou de Norte a Sul, com centenas de manifestações. O general só escapou ao cárcere, porque se refugiou na Embaixada Brasileira, onde pediu exílio político.
A partir desta altura Humberto Delgado andou permanentemente em cruzada contra a ditadura, percorrendo vários continentes, em busca de apoio. Envolveu-se em várias tentativas de golpes de estado, até que foi assassinado, de uma forma cobarde e animalesca, ao ter sido atraído a uma armadilha, montada por agentes da PIDE disfarçados de democratas, em Vilanueva del Fresno, Espanha, no dia 13 de Fevereiro de 1965.

Este texto está ilustrado com a fotografia da manifestação de apoio a Humberto Delgado, no Porto, que inundou as ruas da cidade, com centenas de milhares de pessoas.

domingo, fevereiro 11, 2007

Primeiros Tempos em Lisboa


Os meus primeiros tempos de Lisboa não foram fáceis. Acho que nunca são, para quase ninguém...
Quem chega da província sente um choque grande porque descobre pessoas diferentes, e sobretudo, um novo ritmo de vida. É como se de repente as horas passassem a ter menos minutos, porque tudo se passa mais rapidamente.
O facto de Lisboa ser uma cidade de gente solitária, apesar dos milhões que vivem à sua volta, faz com que também seja mais difícil fazer amigos que noutra cidade qualquer...
Tinha acabado de fazer dezoito anos, uma idade complicada, em que já não somos adolescentes, mas também ainda não somos adultos, na plenitude, apesar de já podermos votar...
Estas primeiras dificuldades foram ultrapassadas, por ter sido acolhido como um filho, pelos primos Zé e Elisete... que também passaram a viver uma experiência nova, já que não tinham filhos, e também por ter continuado a fazer atletismo, no Belenenses, onde aí sim, foi possível fazer novos amigos. Não fosse o desporto uma grande "escola de virtudes"...
Fui trabalhar como aprendiz de offset, nas artes gráficas da então EPNC (Empresa Pública Notícias e Capital), à qual estavam associados o “Diário de Notícias” e “A Capital”.
Foi aqui que tive o primeiro contacto com os “pintas” da Capital, que se julgam sempre mais espertos que quem chega de fora (e realmente esperteza é coisa que não lhes falta, embora seja quase sempre uma forma de se defenderem...) e estão sempre prontos a esticar a perna, para nos verem no chão.
Caí algumas vezes, mas levantei-me sempre pelo próprio pé, sem parar de os olhar de frente...
De uma forma quase inconsciente estava a defender-me, com a melhor arma que temos, o carácter...
Outra coisa curiosa, foi ter ido viver para a Cruz Quebrada, onde aprendi a olhar para o Tejo, Rio que nunca mais se afastou de mim...
Este texto está ilustrado com o belo óleo de Botelho, "Lisboa e o Tejo".

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

As Baleias e os Açores


Não deixa de ser curioso, que as baleias continuem a ser um elemento fulcral na economia do Arquipélago dos Açores, especialmente nas proximidades das ilhas do Faial, São Jorge e Pico.

Antes era a aventura da pesca, agora são as viagens turísticas de bote, para se observar a dança e os mergulhos da Rainha dos Mares.

Claro que a pesca era muito diferente, transmitia outra adrenalina e outros perigos aos açoreanos...
Assim que soava o alarme de «baleia à vista», corriam todos na direcção do cais, apenas com o saco de farnel (às vezes a pescaria durava horas e horas...), para prepararem os botes e os remos, assim como o pano de mastro, usado para aproveitarem o vento quando soprava de feição e fazerem-se ao mar.
Era um ritual único...

O alarme continua a ser o mesmo, «baleia à vista», mas hoje há mais observatórios e rádios para transmitir a localização dos cetáceos, sem perdas de tempo, porque os turistas estão à espera...

A fotografia que acompanha este texto é da década de cinquenta, tirada por um autor desconhecido.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Os Pêssegos da Avó Maria

Quando chegar o Verão havemos de voltar ao rio, de manhã cedinho, para comermos pêssegos maduros, ainda húmidos do orvalho da manhã, ou então escolheremos o fim da tarde para regarmos a horta, só para sentirmos o cheiro da terra molhada.
Os pêssegos do rio são os melhores pêssegos do Mundo e para o confirmar basta tactear-lhes a pele, de seguida abri-los com cuidado para que não se perca uma gota sequer do seu suco e só depois trincá-los, para apreciarmos em toda a plenitude o seu cheiro e o seu sabor.
Lindos por fora na sua pele rosada que qualquer mulher gostaria de imitar - pele de pêssego com se diz de uma pele jovem - lindos por dentro no carmim da sua concha, cujo negativo o caroço imprimiu, os pêssegos do rio foram criados para saciar bocas gulosas, mais do que estômagos famintos, e foram estes pêssegos que eu procurei sempre de cada vez que comi pêssegos ao longo da minha vida, mas raramente os terei voltado a encontrar.
Os pêssegos melhores do Mundo são os pêssegos do rio Torto, mas posso garantir que, dentre eles, os melhores são os pêssegos da avó Maria, no rio do Gato, um trecho do mesmo rio, que o rio da minha terra é um rio de muitos nomes, à medida que passa por nós ou nós por ele, nas curvas do seu destino.
Parecidos com os pêssegos da Avó Maria só as maçãs do José Francisco que ele trazia do Oeste, para oferecer à Fernanda, a nossa e não a outra, nem enormes, nem pintadas, mas que, na modéstia do seu tamanho, enchiam logo todo o espaço á sua volta com o gosto antigo da maçãs de cheiro.
Vamos então ao rio apanhar pêssegos, enquanto o orvalho da manhã os conserva frescos, e assim os teremos no mais vivo da sua cor, no mais intenso do seu perfume, no mais requintado do seu sabor!
Vamos a pé, pelo caminho velho, à ida pelos seus atalhos, pois é a descer e todos os santos ajudam, à vinda, mais devagar, por cada uma das suas curvas que ainda havemos de reconhecer, apesar de o mato ter feito um enorme esforço para apagá-las.
Quando chegarmos, uma ligeira brisa há-de agitar a folha espessa dos salgueiros, um marantéu que é o mais lindo de todos pássaros, há-de cantar num dos seus ramos mais altos, enquanto debica a primeira refeição do dia e o feno das margens há-de cheirar à roupa lavada que, na véspera, ali esteve a corar. Se tivermos sorte, esquadras de libelinhas hão-de voar ao rés-da-água e com elas vamos espreitar o fundo do rio, de calhaus rolados e água pura.
No próximo Verão havemos de voltar ao rio, para nos emocionarmos com a sorte dos pessegueiros que já ninguém cultiva e para lamentarmos que tenha desaparecido das vargens o cheiro fecundo da terra regada.
No próximo verão, uma última vez !


Este bonito texto da autoria de Joaquim Nascimento está ilustrado com a "Ponte Rústica de Colares", óleo da autoria de Alfredo Keil.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Um Desenho Que Vale Por Mil Palavras...





Este excelente desenho do Rui, cartoonista da revista "Visão", apesar de ter sido publicado a 29 de Janeiro de 2004, continua tão actual...
Como podem observar, vale bem mil palavras (claro, as hipócritas, espalhadas pelos, cada vez mais imaginativos, defensores do não...).

sábado, fevereiro 03, 2007

O Pescador da Barca Bela


«[...] Quando via alguém mais idoso, agarrado a uma rede, recordava-se sempre de um velho lobo do mar da Nazaré que originara uma crónica sobre esse extraordinário pescador cheio de rugas e cabelos brancos que o enchia de orgulho.
De tempos a tempos lia o recorte de jornal com a sua assinatura. Era como se voltasse por breves instantes ao convívio com aquele homem cujas emoções à flor da pele se confundiam com as ondas do mar: Chamam-lhe velho e já não o deixam ir ao mar... mas Valdemar continua a sentir a mesma vontade de partir, ao desafio, pelo interior das ondas do Atlântico que continuam a bater próximo do seu coração.
Ele não consegue esconder o desgosto de ficar em terra, enquanto os outros se aventuram pelo mar fora. Sente que remendar redes não é digno como final de vida, de quem desde os treze anos começou a ir para o mar, desafiando os muitos demónios que se banhavam nas águas da Nazaré.
Na vila todos o conhecem por “Leão do Mar”, uma alcunha com mais de cinquenta anos, fruto das muitas aventuras vividas ao longo dos seus setenta e um anos, curtidos pelo sal e sol da vida, algumas das quais se transformaram em lendas!...
Valdemar foi um dos poucos pescadores da sua geração que aprendeu a nadar, ao ponto de ser requisitado no Verão, durante décadas, como nadador salvador da bonita praia da Nazaré.
Salvou centenas de pessoas da morte certa na época balnear, sem esquecer alguns amigos de profissão, corajosos, que desafiavam o mar, sem sequer se conseguirem manter à tona de água.
Ele nunca aceitou de bom grado que grande parte dos seus companheiros não soubessem nadar, agarrados à desculpa de que em caso de naufrágio, o sofrimento seria menor, esquecidos das ínfimas possibilidades que teriam de sobreviver a qualquer contratempo caso se deslocassem dentro de água. Foi por isso que ensinou muitos pescadores, menos dados à teimosia a nadar.
Mas não é só por isso que todos os respeitam, e lhe perguntam coisas sobre o mar. O velho Valdemar é uma verdadeira enciclopédia marinha, conhece quase todas as espécies de peixes, sabe os seus círculos de vida, onde se deslocam para desovar, e quais são as épocas em que se encontram mais saborosos, preparados para servirem de pescado.
Lutou anos a fio pela construção de um Porto de Abrigo, de mão dada com os companheiros de pescaria, fartos de enfrentar as ondas violentas do mar da vila, e de ter de deixar os barcos ancorados na Baía de São Martinho do Porto.
Orgulha-se de, actualmente, a vida dos pescadores da Nazaré estar mais facilitada. Com o porto de abrigo já podem entrar no mar sem levarem banhos das ondas violentas, que em dias de fúria conseguiam virar os barcos na zona de rebentação, e lançar o pânico na vila.
Valdemar acaricia os seus cabelos brancos, sem perder de vista o mar, enquanto percorre o passeio à beira do mar.
Continua a acreditar que tem um lugar guardado no cemitério do oceano, e espera, pacientemente, por uma oportunidade para cumprir o seu destino. Quer ir ter com o pai, o tio, o irmão e uma mão cheia de amigos, nem que seja no seu velho barco a remos.
Nuno não sabia o que era feito de Valdemar - há mais de três anos que não visitava a vila da Nazaré -, mas continuava a sentir que o velho lobo do mar seria sempre o seu “Pescador da Barca Bela”, onde quer que estivesse. [...]
Texto extraído do livro de contos, "Um Café com Sabor Diferente", de Luís Alves Milheiro e ilustrado com o óleo, "Concertando a Rede", de João Vaz.