O senhor Araújo foi um barbeiro bem sucedido, pela tenacidade, pela competência e pela parcimónia, qualidades que trouxe da sua Beira natal e praticou até ao último dia.
Começou como empregado numa barbearia popular de Alfama, onde aperfeiçoou os conhecimentos rudimentares da arte que aprendera na aldeia e não tardou muito que se tornasse proprietário do estabelecimento.
Ali, foram seus clientes os fragateiros, os estivadores, os bufarinheiros e outra gente da beira-rio, mundo estreito para si, até que se mudou para as avenidas novas - bom dia senhor doutor, boa tarde senhor engenheiro - três cadeiras, manicura, engraxador e tabuleta.
Alfama foi também o meu bairro na segunda metade dos anos sessenta, mas só nas avenidas novas o conheci e durante mais de trinta anos lhe confiei o meu cabelo, retinto e forte, nos primeiros tempos, encanecido e ralo, por último.
Barbeiro à antiga - cabeleireiro de homens que é lá isso, meu amigo?! - olhava com desconfiança para as novas tecnologias da profissão que aceitava a contragosto depois de testadas pelo seu empregado de sempre, o senhor António, mas se fosse ele a mandar, a tesoura continuaria a ser a extensão natural do seu braço, com o som ritmado e sonolento de sempre, e as lâminas descartáveis – um desperdício, meu amigo, nada que chegue a uma navalha bem afiada! - escusavam de ter aparecido.
Mas não pensem que esta barbearia era obsoleta ou retrógrada, pois o senhor Araújo era um homem de brios e não aceitaria ficar atrás dos outros, nem permitiria que nas bancadas do seu estabelecimento faltasse qualquer dos instrumentos modernos da profissão.
O senhor Araújo tinha uma farta cabeleira branca, impecavelmente penteada, o que acentuava a elegância do seu porte e, por si só, o recomendava a qualquer cliente.
Quando lhe perguntei o segredo - que champô, que creme, que loção - intimamente desejoso de vir a ter uma cabeleira parecida:
- Sabão, meu amigo !
- De seda, senhor Araújo?
- De seda?! Azul, meu amigo, azul!.
Aqui há anos, já perto dos 80, o senhor Araújo teve apalavrado o trespasse do seu estabelecimento, tendo finalmente admitido que era tempo de descansar e de regressar à terra, onde tinha uma mansão que só abria uma vez por ano, na semana do padroeiro, que o seu estabelecimento patrocinava.
À medida que se aproximava o dia da escritura, o senhor Araújo começou a andar nervoso, ficou mesmo doente e, sem olhar ao prejuízo, devolveu em dobro o sinal que tinha recebido.
- Pensando melhor, o que é que eu ia fazer com o dinheiro, meu amigo?
O senhor Araújo cortou-me o cabelo pouco antes de eu ir de férias - assim curtinho, parece mais cheio e dá menos trabalho – e quando voltei passado um mês, encontrei uma cadeira vazia:
- Não me digam que o senhor Araújo sempre foi de férias ?!
Mas não, o senhor Araújo não tinha ido de férias, o senhor Araújo deixara-nos definitivamente num dos domingos anteriores, ia a caminho de casa ao volante do seu velho Taunus, depois de ter passado pela barbearia, para ver se tudo estava em ordem.
Faleceu in itinere, diria um dos seus clientes versado em leis e, se o conhecesse bem, descontar-lhe-ia o facto de ser dia de descanso semanal.
Com a receita do sabão azul, o senhor Araújo augurou-me um cabelo farto até ao fim dos meus dias. Já o desonerei desta promessa, mas às vezes me apeteçe-me cobrá-la do seu genro, agora que finalmente é ele o patrão e o meu cabelo vai ficando cada vez mais ralo:
- Então, senhor Carlos, já não se cumprem as promessas?
O senhor Araújo quis ser cremado e dispôs que suas cinzas fossem espalhadas na serra mãe, a Gardunha, onde nasceu, granjeou a terra e guardou o gado, era ainda criança e muito dura a vida.
Foi um sábio, o senhor Araújo, na sua Arte, na sua Vida e na sua morte!
Mais um excelente texto de Joaquim Nascimento, que desta vez tem dedicatória: «Para a minha filha que me deu o mote.» A fotografia do Marechal no barbeiro é de Eduardo Gageiro.