Podia estar o dia todo a tentar explicar que não é assim tão "inexplicável", alguém cair para a rua e ficar por lá, por momentos, ou para sempre...
Nós humanos somos mais complexos do que parecemos. Um dos exercícios que me habituei a fazer desde cedo (às vezes com alguma ginástica e quase forçado pela minha mãe...), foi tentar "colocar-me" no lugar dos outros. É uma coisa que todos devíamos fazer, aqui e ali, pois oferece-nos logo uma perspetiva diferente do que está em discussão.
Com tantos problemas para resolver neste país, o meu barbeiro desta vez foi "meter-se" com os sem abrigo, essa "escória" da sociedade, esse "lixo humano", no seu léxico de barbearia. Felizmente ele é bem falante, raramente utiliza o vernáculo, o que faz com as conversas não "descambem (talvez seja uma estratégia pessoal, pois assim pode dizer as maiores barbaridades, deixando a imagem de que não está a "insultar ninguém"...).
Mas ao chamar alguém de "lixo humano" (mesmo que possa ter razão em alguns casos) está logo a entrar no domínio da ofensa pessoal e colectiva, a todos os homens e mulheres que, voluntariamente ou involuntariamente, foram despejados para a rua e transformaram um banco de jardim ou um velho alpendre em "quarto de dormir".
Eu disse-lhe que quando surge um desemprego tardio e de repente todas as portas se começam a fechar, é difícil dar à volta e voltar a ter uma vida normal. Se a família em vez de ajudar ainda "empurrar para baixo", é meio caminho andado para as pessoas se sentirem uns empecilhos e quererem "desaparecer"...
Ele respondeu-me da forma mais fácil, que "trabalho é coisa que nunca faltou por aí, falta sim, vontade".
Foi quando esgotei os argumentos...
Não valia a pena dizer que a forma de desaparecer mais usual é esta: deitar a chave de casa fora e esquecer o "número de polícia" da porta da rua e inventar outra vida, aparentemente mais livre, mas também mais suja e com menos sentido...
(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)