Embora ele não me explicasse como foi a sua infância (pelo menos com principio, meio e fim...), percebi que tinha sido uma enorme aventura, quase um salve-se quem puder. Filho de pais demasiado ausentes e distraídos, salvou-se o avô, mestre em todo o género de expedientes e que continua a ser o seu herói preferido.
Com tantos putos do seu tempo foi obrigado a crescer depressa demais e a descobrir antes do tempo todo o tipo de "manhas", usadas pelos adultos para arranjarem uns trocados e sobreviverem na "selva urbana".
No bairro onde cresceu habituou-se a ser visita das casas dos vizinhos, que lhe davam comida e até abrigo, especialmente no Inverno.
Quem o queria chatear chamava-lhe "Má Sorte", a alcunha do pai, que ficou sempre com a sensação que passou mais tempo preso que em liberdade, sobretudo por aselhice, a que se juntava algum azar. O avô há muito que desistira de o ensinar a fugir dos problemas. Preferiu dedicar-se ao neto, que tinha mais do dobro do potencial do filho e era menos teimoso. Foi por isso que quando ele cresceu ficou conhecido como o "Doutor" (alcunha do avô) e não por "Má Sorte".
Hoje, quando lhe perguntam a profissão, nunca sabe o que responder. Talvez seja engenheiro de qualquer coisa, como alguns fulanos que não trabalham como ele, mas têm bons empregos e melhores ordenados. Ele tem de fazer pela vida, todos os dias têm de enganar alguém, para conseguir viver decentemente.
O que me deixou mais surpreso, foi perceber que ele tinha valores diferentes, não perdia tempo a preocupar-se com o bem ou o mal. A única ética que tinha era a do bom malandro, ensinada pelo avô: nunca enganar vizinhos, pobres, desgraçados ou velhinhos.
O dono do café onde o conheci disse-me em surdina que era quase um milagre ele nunca ter sido preso. Talvez fosse demasiado esperto para se deixar apanhar nos muitos "cantos da sereia" que lhe lançaram pela vida fora.
Tal como todos os heróis de qualquer bairro, já tinha sido dado como preso e como morto mais de uma dúzia de vezes. Mas como depois se cruzavam com ele na rua, pensavam que ele devia ser amigo de alguns "deuses" e também de um ou dois chefes de polícia...
Diziam à boca fechada que tinha umas "meninas" que trabalhavam para ele no número 107. Claro que era mentira. Neste número vive há mais de cinquenta anos um casal de velhos, que quer "sopas e descanso" e não que lhes toquem constantemente à campainha à procura da "Rosa". Esta é apenas mais uma das muitas histórias que se contavam sobre este homem que também foi cantador de fado no retiro do Tio João, recebendo como troco as refeições e uma pequena mesada, que dava para as cigarrilhas e gravatas.
Quando nos encontramos no café dá-me um abraço e nunca me deixa pagar a despesa. E ainda é senhor para me oferecer uma ou duas histórias pitorescas, capazes de enriquecer as personagens de qualquer livro.
(Fotografia de André Kertesz)