As zonas húmidas, como o próprio nome indica, são áreas alagadas, permanentes ou sazonais, em que a água é o elemento central no funcionamento dos ecossistemas. Lagos, rios, pauis, charcos, pântanos, estuários e turfeiras são apenas algumas das tipologias de zonas húmidas.
Esta quinta-feira, dia 2 de fevereiro, assinala-se o Dia Mundial das Zonas Húmidas, uma efeméride das Nações Unidas desde o ano passado e que pretende alertar para a urgência e importância de proteger, restaurar e conservar estas áreas de grande relevância para a biodiversidade, para a regulação do clima, para o ciclo da água e para a mitigação dos efeitos das alterações climáticas.
Apesar de cobrirem apenas cerca de 6% da superfície do planeta, as zonas húmidas albergam 40% de todas as espécies de plantas e animais, que aí se fixam para viver e para se reproduzirem. Além disso, de acordo com o Conselho para a Defesa dos Recursos Naturais (NRDC), uma organização ambientalista nos Estados Unidos, as zonas húmidas armazenam nos seus solos uma quantidade de carbono equivalente às emissões geradas todos os anos por cerca de 189 milhões de carros.
Há mesmo quem lhes chame ‘Rins da Terra’. Só as turfeiras, por exemplo, absorvem duas vezes mais dióxido de carbono do que todas as florestas do mundo juntas. Contudo, as turfeiras, bem como “outras zonas húmidas com pouca representatividade à escala nacional, mas que albergam flora e fauna ameaçadas, estão fortemente pressionadas pela drenagem, pelo sobrepastoreio, pela extração excessiva de recursos hídricos”, contou à ‘Green Savers’ Nuno Forner da associação ambientalista Zero.
“Se tivermos em atenção todos estes serviços, podemos ter a noção de como a conservação das zonas húmidas e da biodiversidade associada é fundamental para as sociedades humanas serem resilientes às alterações climáticas”, explicou-nos também Ana Antão-Geraldes, Professora Auxiliar da Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Bragança.
Por sua vez, Nuno Gomes Oliveira, Presidente da Direção da FAPAS – Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade, apontou que “há muito” que se sabe que as zonas húmidas desempenham um papel de relevo, por exemplo, na mitigação das cheias e na modelação do clima, além de serem ‘hotspots’ de biodiversidade.
“Sendo as zonas húmidas dos ecossistemas com maior biodiversidade e com maior concentração, por exemplo, de aves migratórias, a sua conservação é fundamental”, avisou o dirigente associativo, além de que “enquanto paisagens privilegiadas, dão dinheiro a ganhar às economias locais e nacional”.
Por isso, a sua degradação ou destruição terá consequências devastadoras para todo o planeta, incluindo para nós, humanos, e corremos o risco de transformar ‘cemitérios de carbono’ em fontes de grandes emissões.
Lamentavelmente, estima-se que entre 1700 e 2000 aproximadamente 80% de todas as zonas húmidas a nível global tenham desaparecido, e que cerca de 35% se tenham perdido só nos últimos 30 anos.
Entre as principais ameaças, disse-nos Ana Antão-Geraldes, está um “conjunto grande de causas interrelacionadas”, como a poluição, “o desordenamento territorial, a ineficiência hídrica (urbana, agrícola e industrial), o consumismo, as alterações climáticas”. E salientou que, acima de tudo, falta “conhecimento sobre a importância destes ecossistemas para a sobrevivência da humanidade” e que estão a desaparecer três vezes mais rápido do que as florestas, colocando em risco milhares de espécies de plantas e animais, incluindo nós.
Para inverter essa tendência de acentuado declínio das zonas húmidas, Ana Antão-Geraldes afirmou que é preciso “cumprir a legislação e as convenções que protegem estes ecossistemas”, mas acredita que o mais importante será mesmo “mudar mentalidades e consciencializar a população para a importância destes ecossistemas”.
“Sim, educar e informar é sem sombra de dúvida o mais importante”, defendeu.
A organização Geota reconhece que “é necessário manter o desenvolvimento económico e social”, mas tal pode ser feito de forma a “reduzir os impactos negativos da atividade humana nas zonas húmidas, recuperando a biodiversidade e as funções dos ecossistemas e melhorando o bem-estar humano e a resiliência face aos fenómenos de alterações climáticas”.
É por essa razão que considera que “urge uma mudança de paradigma face às alterações climáticas, à perda de biodiversidade (enfrentamos a sexta extinção em massa, e a primeira causada pelo Homem – o Homem é o cometa) e ao aumento da frequência dos desastres naturais”.
A Convenção de Ramsar sobre as Zonas Húmidas
No artigo 2.º da Convenção, os Estados signatários são obrigados a indicar pelo menos uma zona húmida no seu território para que seja incluída no que ficou conhecido como a ‘Lista de Ramsar’.
Essa lista passou a ser uma espécie de repositório de zonas húmidas escolhidas, pelos Estados, pela “sua importância internacional em termos ecológicos, botânicos, zoológicos, limnológicos ou hidrológicos”, sendo que a prioridade foi dada às “zonas húmidas de importância internacional para as aves aquáticas em qualquer estação do ano”.
Atualmente, mais de 2.500 zonas húmidas em todo o mundo fazem parte da ‘Lista de Ramsar’, com uma área total conjunta superior a 2,5 milhões de quilómetros quadrados, quase 27 vezes a área de Portugal continental. E os países continuam a indicar novas áreas, uma vez que a lista é aberta e dinâmica.
Ana Antão-Geraldes considera que a Convenção de Ramsar “é extremamente importante”, tendo começado por ser “um tratado para a conservação dos habitats das aves aquáticas e, com o tempo, passou a ser muito mais abrangente”. Sem essa convenção, o estado de conservação das zonas húmidas seria “bem pior”, disse-nos a docente universitária.
Zonas húmidas em Portugal
Portugal assinou a Convenção de Ramsar em setembro de 1980, pelo Decreto n.º 101/80, entrando em vigor a 24 de março do ano seguinte, e tem atualmente listadas 31 zonas húmidas, 79% de todas essas áreas que existem a nível nacional, num total combinado de 132.487 hectares: uma na região Norte, 6 na região Centro, 7 na região de Lisboa e Vale do Tejo, 4 na região Sul e 13 no arquipélago dos Açores. O Estuário do Tejo e a Ria Formosa foram as primeiras zonas húmidas portuguesas a entrar na Lista de Ramsar.
No entanto, Ana Antão-Geraldes, do Instituto Politécnico de Bragança, disse-nos que, à semelhança do que vemos no resto do mundo, as zonas húmidas em Portugal “são dos ecossistemas mais ameaçados e degradados”.
Mais de 40 anos depois de a Convenção de Ramsar ter entrado em vigor em Portugal, a avaliação feita pelos especialistas não é positiva.
“Quando se chega ao ponto de pensar em construir aeroportos e outras infraestruturas em zonas húmidas, quando se chega ao ponto de canalizar rios e construir barragens desnecessárias, e quando a comunicação social não consegue ligar inundações catastróficas à degradação e destruição de zonas húmidas, vemos que ainda há muito para fazer em termos de educação e ordenamento territorial para que estes ecossistemas possam ser alvo de medidas de conservação efetivas”, salientou Ana Antão-Geraldes.
Nuno Gomes Oliveira, do FAPAS, acredita mesmo que o estado de conservação das zonas húmidas em Portugal é “uma miséria”, apontando que “as pequenas zonas húmidas não têm qualquer tipo de proteção, e mesmo as grandes, com excecional valor paisagístico, turístico e para a biodiversidade, como a Ria de Aveiro, a Pateira de Fermentelos ou a Barrinha de Esmoriz, estão ao abandono, sujeitas à pressão imobiliária e outras atrocidades ambientais”.
No país, “as principais ameaças às zonas húmidas ocorreram no passado, quando se drenaram imensas e inúmeras zonas húmidas” e sublinha que “hoje essa drenagem continua, como é o caso das Alagoas Brancas, no município ironicamente designado ‘Lagoa’ e cujo nome irá mudar para ‘ex-Lagoa’”. Esta é uma referência a um projeto de desenvolvimento imobiliário no concelho de Lagoa que, de acordo com as organizações de defesa do ambiente, coloca em risco a zona húmida de Alagoas Brancas, uma das últimas de água doce da região algarvia, bem como diversas espécies de animais e de plantas que ocorrem nessa área.
“Outra das ameaças é a construção de passadiços que, supostamente valorizariam as zonas húmidas, mas só as degradam, como a aconteceu, por exemplo, na Barrinha de Esmoriz e no Paul do Taipal”, contou-nos o ambientalista, acrescentando que, apesar de Portugal ter 31 zonas húmidas na Lista de Ramsar “não se notam os resultados”, uma vez que no Estuário do Tejo, um desses locais, “até queriam fazer um aeroporto” e que “todo os pauis e o Sapal de Castro Marim estão muito perto do abandono e à pequena Reserva Natural do Paul do Boquilobo acertaram-lhe com o TVG em cima, com tanto espaço que havia ao lado”.
Para ele, “falha totalmente a gestão dos habitats e a fiscalização (e punição) dos usos impróprios e proibidos, falta promover a conservação da natureza, e não apenas desenhar áreas protegidas nas cartas geográficas”. A agravar tudo isso, relata-nos que “falta cultura aos decisores e vontade política para darem mais importância ao futuro do que aos favores do presente” e que os tribunais deveriam ser “mais atuantes, apesar, neste particular, das boas notícias dos últimos tempos”.
Nuno Forner, da Zero, disse que também “a extração desproporcionada de caudais”, em especial no Sul de Portugal, “a construção de barragens e outros aproveitamentos hidráulicos que promovem uma drástica alteração dos regimes naturais, a rutura na continuidade dos habitats fluviais, bem como a alteração dos fluxos de sedimentos, a poluição e proliferação de espécies exóticas invasoras são alguns dos exemplos de ameaças que que hoje afetam as zonas húmidas e, consequentemente, o fornecimento de serviços de ecossistemas”.
Embora “as massas de água artificializadas”, tais como as barragens, sejam consideradas zonas húmidas e representem 27% das zonas húmidas portuguesas na Lista de Ramsar, “o seu valor ecológico é diminuto e não compensa a perda de zonas húmidas naturais”, acrescentou. Apesar de essas zonas estarem legalmente protegidas, “os dados comunicados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas à Comissão Europeia (no âmbito do Relatório dos Estados Membros sobre o estado de conservação de espécies e de habitats referente ao período 2013-2018) são preocupantes”.
Isto, porque se estima que “77% dos habitats relacionados com as zonas húmidas de Portugal e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira se encontram degradados”, e que as turfeiras e habitats de água doce “estão em mau estado de conservação, o que demonstra que o Estado português tem falhado por inação na conservação de zonas húmidas, não bastando conferir uma figura legal de proteção a um determinado local”, pois isso “nem sempre significa uma garantia de conservação ou do seu uso sustentável”.
Por isso, devemos olhar para o futuro “com muita apreensão”, disse Nuno Forner, pois “as ameaças e pressão humana sobre estas áreas continuam a fazer-se sentir de forma muito acutilante”. O ambientalista disse-nos que “as zonas húmidas devem ser parte integrante do planeamento e gestão criteriosos dos recursos hídricos por parte das autoridades públicas” e devem ser contempladas no planeamento do território e das atividades económicas.
Dessa forma, “é urgente” que o Governo crie “planos que efetivamente salvaguardem estes espaços com programa de uso e restauro de zonas húmidas”, atribua “financiamento adequado” a projetos que pretendam “manter e restaurar zonas húmidas contribuindo para a melhoria do seu estado de conservação” e que defina “uma verba anual em cada orçamento do Fundo Ambiental para iniciar um programa de aquisição de áreas naturais importantes para a conservação, incluindo zonas húmidas”.
A Geota recordou-nos que “o Mediterrâneo perdeu aproximadamente 50% da área de zonas húmidas ao longo do século XX”, uma tendência que tem vindo a agravar-se. Em Portugal, “muitas espécies de água doce estão criticamente ameaçadas”, principalmente devido “à perda e fragmentação de habitat por ações humanas”.
Essa organização destacou “a grande pressão para a expansão da monocultura intensiva de regadio”, como uma das grandes ameaças às zonas húmidas, “incluindo por exemplo a recente decisão de construção da Barragem do Pisão”. E frequentemente, “a construção de reservatórios de água não compensa a degradação dos habitats, o declínio da biodiversidade, e a perda de serviços de ecossistemas assegurados por estas zonas húmidas”, disse-nos a Geota, lamentando que “não se pensa seriamente em alternativas”.
Quanto às zonas húmidas integradas por Portugal na Lista de Ramsar, a organização ambientalista acredita que “pouco adianta submeter no papel para proteção quando na prática, no terreno, as pressões e os interesses económicos se sobrepõem à proteção destas áreas naturais”.
A Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a este respeito, defende que para combater as ameaças às zonas húmidas em Portugal, que “têm em comum o facto de as estarmos a tentar travar há décadas, ainda sem os resultados desejados”, é preciso “melhorar a gestão territorial e gerir de forma sustentável as águas ao nível das bacias hidrográficas”. E essa é uma luta que tem de ser travada “em várias frentes”: na educação e sensibilização, na conservação e monitorização, na gestão e na fiscalização, e, quando necessário e possível, na punição dos “responsáveis pela degradação e destruição, obrigando-os ao seu restauro ecológico”.
A organização avisa que “atingimos um ponto em que o que nos resta não é suficiente” e que, de facto, é “tempo de promover a renaturalização e a recuperação ambiental das zonas húmidas e áreas circundantes, envolvendo as comunidades locais nessas ações”.
Embora os país seja parte da Convenção de Ramsar, as zonas húmidas por cá são “um assunto preocupante”, pois “muitas áreas ainda enfrentam desafios significativos”.
A LPN avança que “as zonas húmidas em Portugal estão a perder área devido ao desenvolvimento imobiliário, à construção de barragens e a outras atividades humanas” e as suas águas “continuam a ser poluídas e estão a sofrer com a pressão turística, como é o caso do que estamos a observar no Paúl do Taipal, com a implementação de projetos mal concebidos que exercem um impacto significativo e injustificável sobre as espécies nativas que nelas encontram refúgio”.
“Embora Portugal tenha ratificado a Convenção de Ramsar há mais de 40 anos, ainda existem algumas falhas na sua implementação, que dificultam a efetiva proteção e conservação das zonas húmidas em Portugal. É preciso investir mais esforço”, referiu a LPN.