Quando olhamos para as rapinas nocturnas encontramos um grupo de animais que, talvez mais do que qualquer outro, é responsável por preencher o imaginário do Homem desde tempos imemoriais, embora o seu “papel” tenha variado muitas vezes e de forma quase antagónica, entre diferentes épocas, regiões e povos, tocando, então, opostos, relativamente à forma como estas aves foram ou são encaradas pelas pessoas: temidas ou veneradas, desprezadas ou admiradas, consideradas sábias ou insensatas.
O facto de coabitarem no nosso imaginário, com os nossos medos e desejos mais profundos, tornou-as a face desses mesmos receios e sonhos, por vezes símbolos de sabedoria e protecção, outras vezes de má sorte e doença.
As rapinas nocturnas são um grupo de aves maioritariamente crepusculares e nocturnas, como a sua designação bem indica, que apresenta um comportamento secretivo, derivado da sua biologia e da sua ecologia. Tais características podem ter contribuído para os atributos que lhe são imputados na Mitologia e Folclore, sendo recorrente estas aves estarem associadas ao submundo ou mundo inferior, rituais de Passagem, em particular nascimento e morte, e magia, como companheiras de deuses, curandeiros e xamãs, bruxas e feiticeiros.
Também na Arte, estes predadores nocturnos surgem simbolicamente para representar o feminino, a noite e a lua, magia, morte e sonhos. São muitas as referências a estas aves, na literatura, pintura e escultura.
Na Europa Antiga, as aves de rapina estão ligadas simbolicamente às imagens de morte e de vida, em particular o abutre e a coruja (lato sensu), ambos associados à Deusa. Nas sepulturas megalíticas da Europa Ocidental, assim como em menires, há representações de rapinas nocturnas, feitas em osso ou rocha. Este fascínio é, por isso, anterior ao período Neolítico, sendo ainda de mencionar que tais representações se mantiveram por todo o período Neolítico, até à Idade do Bronze.
Ao longo da História, a forma como as rapinas nocturnas foram vistas foi variando consideravelmente. Sabe-se que desde o Paleolítico Superior existem representações destas aves, sendo mesmo das poucas espécies que surgem nas gravuras paleolíticas em cavernas. Há, na região de Ardèche, no sul de França, uma representação datada de c. 30.000 a.C., do que se considera ser um bufo-pequeno (Asio otus). Trata-se da representação mais antiga, conhecida, de uma rapina nocturna. Também na caverna Les Trois Frères, no sudoeste de França, podemos encontrar gravuras do que se consideram ser três corujas-das-neves (Bubo scandiacus), dois adultos e uma cria, já que foram encontrados numerosos ossos desta espécie, num variado número de cavernas, e também porque, nestas representações, as aves não possuem tufos auriculares, o que aponta para que se trate de uma representação da espécie mencionada.
Entre as diferentes tribos índias da América, também a estas aves eram atribuídos papéis distintos. Enquanto para algumas, as corujas, bufos e mochos correspondiam a símbolos de morte e doença, para outras representavam espíritos protectores, ou eram mesmo encaradas como as almas de antepassados e, por isso, merecedoras de respeito. Na América do Norte, por exemplo, há referências de que, para os Apaches, sonhar com uma coruja era sinal de morte iminente, mas para o povo Kwagulth estas aves representavam não só alguém que tinha recentemente falecido, mas também a sua alma recém-libertada; os índios Mojave acreditavam que após a morte se transformavam em corujas, tratando-se de um estágio intermédio antes de se transformarem num escaravelho-de-água e, posteriormente, em puro ar. Já na América do Sul, cita-se o exemplo do povo Chebero que considerava que os xamãs eram treinados na sua arte por uma coruja.
Ainda hoje, em África, as rapinas nocturnas são perseguidas porque culturalmente são vistas como animais malignos. Em muitos países, são comummente apelidadas de “witchbird”, cuja tradução corresponde a algo como ave bruxa e são-lhes imputados atributos sobrenaturais e uma ligação a feiticeiros.
Na Índia, estes animais estão associados a Lakshmi, Deusa Hindu da riqueza e da prosperidade. É referido que, quando esta Deusa viaja sozinha utiliza para as suas deslocações uma coruja. No festival Diwali, infelizmente, há uma grande procura de partes destas aves nocturnas, para usar em rituais mágicos e na medicina popular.
Em Inglaterra, as pessoas acreditavam, em particular durante os séculos XVIII e XIX, que quando uma coruja ululava ou passava junto à janela de uma casa onde se encontrava alguém doente, que tal era prenúncio de morte. As corujas-das-torres eram ainda aproveitadas para prever o tempo, sendo referido que quando uma coruja “gritava”, seguir-se-ia tempo frio ou uma tempestade; se, no entanto, fosse ouvida durante um período de mau tempo, tal era sinal que a mudança nas condições atmosféricas estaria para breve. Um costume menos inócuo para estas aves era o de pregar uma coruja na porta do celeiro, para afastar o mal e prevenir que a casa fosse atingida por raios; tal hábito era frequente até ao século XIX, embora haja relatos de que, em recônditas zonas rurais inglesas, tal ainda se pratique. No folclore inglês, há referência a mezinhas em que se usavam partes de corujas, incluindo os seus ovos, para curar determinadas doenças e dependências (alcoolismo).
No País de Gales, há uma crença que refere que se uma mulher grávida, fora de casa, à noite, ouvir uma coruja a cantar, a sua criança nascerá abençoada, mas em França a convicção é a de que se uma mulher grávida ouvir uma coruja é prenúncio de que a criança que vai nascer será uma rapariga; já na região de Lorena, segundo o conhecimento popular, estas aves nocturnas podem ajudar as mulheres solteiras a encontrar marido.
Nas Astúrias, o canto destas aves é encarado como um sinal de mau presságio. Um dos nomes comuns atribuído às corujas – guaxa – parece estar ligado ao nome de uma bruxa malévola que entrava nas casas, para beber o sangue de crianças, com o seu dente comprido e afiado. Já o romano Ovídio deixou escrito, em 43 a.C., que pássaros com actividade nocturna, plumagem clara e olhos grandes possuíam um bico em formato de gancho que utilizavam para perfurar artérias e beber o sangue. Daí a ligação entre vampiros, Striges, e o nome científico atribuído a esta ordem de aves, Strigiformes. Na Idade Média asturiana, as bruxas eram denominadas estriga.
É curioso que, em Portugal, a palavra estrige possa significar coruja, mulher com poderes mágicos (bruxa, estriga ou feiticeira) ou vampiro.
No nosso país,
há uma panóplia de contos e lendas associados às rapinas nocturnas que povoam o imaginário popular. Nessas histórias, olha-se para estas aves, também, de ângulos distintos: ou espelhos de sabedoria e sagacidade ou portadoras de má sorte, arautos de desgraça e guardiãs de locais assombrados. Também na medicina popular, estão referidos vários usos para partes destas aves. Convém reforçar a ideia de que nenhuma destas receitas tem qualquer propriedade médica reconhecida por testes científicos acreditados e que, para além disso, estas aves estão legalmente protegidas e não podem ser abatidas ou capturadas.
Há também uma marca indelével na toponímia portuguesa, com o nome de vários locais a reflectir essa mesma realidade, citando-se, como exemplos, a aldeia de Corujas, em Macedo de Cavaleiros, e a vila de Coruche, em Santarém.
Também na heráldica nacional, podemos encontrar representações destas aves, referindo-se dois exemplos, para além dos anteriores: o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa exibe no seu brasão de armas uma coruja-das-torres, cuja simbologia é assim descrita: “A Coruja-das-Torres, capaz de observar e caçar esplendidamente apesar das trevas que a envolvam, simboliza a sabedoria, a cautela, a surpresa e a certeza e alude à capacidade de obter informações importantes em tempo útil, que caracteriza o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa.”. Esta ave surge ainda no brasão de armas da agora extinta freguesia de Alcorochel, do concelho de Torres Novas, cujo nome tem raízes árabes, com origem em Al Corujal, sendo referido que esta designação se prende com o facto de, outrora, terem existido muitas corujas naquela região.
Como já mencionado, a forma como determinados rituais de passagem são encarados pelos povos é marcadamente determinante no modo como estas aves são vistas, amadas ou odiadas, mas nunca relegadas ao esquecimento, por esses mesmos povos. Há no nosso amor ou aversão às rapinas nocturnas um legado histórico e cultural que numa primeira análise pode marcar a forma como as encaramos, mas que deverá, sim, servir, em caso de estima, para potenciar a sua protecção e, no segundo caso, para metamorfosear esse interesse de cariz negativo numa oportunidade para criar uma ponte de partilha de conhecimento entre as partes, população e conservacionistas, visando a preservação destas espécies. O facto deste grupo de aves possuir um forte perfil cultural, independentemente de, por vezes, a percepção tida se revestir de uma conotação negativa, poderá reforçar as acções de conservação que visam as rapinas nocturnas, de uma forma que não aconteceria com animais ou plantas aos quais as pessoas fossem indiferentes, ou seja, que não possuíssem o tal “peso” cultural.
Será necessário pegar nas lendas e superstições e reinterpretá-las, não tentando apagá-las da memória colectiva, mas reconhecendo-lhes a importância que têm na composição do nosso imaginário e permitindo, ao mesmo tempo, que a imagem que temos destas aves se transforme, incorporando factos sobre as suas biologia e ecologia, assim como sobre a sua inegável importância, como peças-chave na “teia natural”, ou seja, nos sistemas naturais.