Naquele dia em que Marco António lhe sussurrou ao ouvido «
ou tens eleições no país ou tens eleições no partido», Passos Coelho fez-se à estrada. Meteu Paulo Teixeira Pinto na gaveta. Desmontou a
Plataforma Construir Ideias e apostou numa plataforma multinacional, onde as suas gentes apareceriam com identidades falsas: Poul Borges Thomsen, Rasmus Gaspar Rüffer e Juergen Barroso Kroeger. Os
media, sobretudo os alimentados por
off-shores, anunciaram a boa nova.
Passos Coelho entreviu um caminho sem escolhos. Num abrir e fechar de olhos, tomou a Assembleia da República e alçou-se a São Bento. O Presidente da República entregou-se. Criado um ambiente de Estado de sítio, tudo seria permitido.
Sabemos hoje que
Passos Coelho descobriu tarde que não se desembaraçaria do Estado de direito com a facilidade com que havia trocado a
Plataforma Construir Ideias pela
troika. As suas considerações sobre os juízes do Tribunal Constitucional provam-no. Nas cristalinas palavras da deputada e vice-presidente laranja
Teresa Leal Coelho, o Governo sente-se traído pelos juízes indicados para o Tribunal Constitucional pelo PSD, que «
criaram [na bancada laranja] a ilusão de que tinham uma visão filosófico-política que seria compatível com aquilo que é o projecto reformista que temos para Portugal».
A direita insurge-se com o facto de os juízes terem apreciado as normas do Orçamento do Estado para 2014 à luz da Constituição da República e não de acordo com a «
visão filosófico-política» de Passos. Estão sob fogo por terem resistido a fazer política.
Há no entanto um juiz que parece ter, entretanto, absorvido a «
visão filosófico-política» de Passos. Trata-se de José da Cunha Barbosa. Indicado pelo PSD, tem assumido posições contraditórias em relação à redução dos salários dos trabalhadores em funções públicas, assim a modos de quem teve algumas dificuldades iniciais para assimilar a «
visão filosófico-política» de Passos. Veja-se:
Cunha Barbosa votou vencido no
Acórdão n.º 396/2011 (isto é, no sentido da inconstitucionalidade dos cortes na remuneração da função pública decretados em 2011). Eis duas passagens do seu voto de vencido
«Tal redução remuneratória tem como escopo principal a satisfação dos encargos públicos (no caso, através da sua diminuição) [...]. Porém, tal objectivo, de manifesto alcance nacional, não pode deixar de integrar interesse público geral a prosseguir por todos os que se encontrem nas mesmas condições remuneratórias previstas nas normas em causa, que já não e tão só pelos que transportem a ‘mácula’ de exercício de funções em regime específico de função pública, sob pena de discriminação negativa, no mínimo, injusta»;
«[…] sem embargo de se poder reconhecer que o interesse público geral, cuja definição compete ao legislador (à lei), justificará a medida adoptada, sempre restará por explicar a confinação dos seus encargos a um universo restrito ou especifico de pessoas, como seja, aos que exercem funções ou actividade em regime de função pública [...] interesse esse que, obviamente, não é específico dos que exercem funções públicas.»
No ano seguinte, Cunha Barbosa votou favoravelmente o
Acórdão n.º 353/2012 (isto é, no sentido da inconstitucionalidade do corte dos subsídios da função pública). E foi ainda mais longe do que o decidido, contestando a limitação de efeitos da decisão para o futuro, ou seja, defendeu que as normas declaradas inconstitucionais não poderiam manter-se em vigor após a decisão do Tribunal Constitucional. Eis um extracto da sua declaração de voto:
«Votei favoravelmente o acórdão, quanto à sua fundamentação e decisão, no que concerne à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral [...] não acompanho a decisão na sua totalidade, por entender que a restrição temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade deveria verificar-se tão só até à sua publicitação […]».
O ano de 2013 marca uma viragem de 180º na posição de Cunha Barbosa, que votou vencido no
Acórdão n.º 187/2013 (isto é, no sentido da não inconstitucionalidade do corte do subsídio de natal da função pública). Eis um extracto da declaração de voto conjunta subscrita, entre outros, por Cunha Barbosa:
«A Constituição não veda, à partida, que se estabeleçam diferenças entre os cidadãos que percebem por verbas públicas e os outros [...]. Isso mesmo o reconheceu o Tribunal no Acórdão nº 396/2011.»
Em 2014, Cunha Barbosa confirma que a cambalhota de 2013 veio para ficar. O juiz votou vencido o
Acórdão n.º 413/2014 (isto é, no sentido da não inconstitucionalidade dos cortes na remuneração da função pública). Eis um extracto do seu voto de vencido:
«[O acórdão] impugna a razoabilidade da medida da diferença instituída por esse tratamento (igualdade proporcional).A “descoberta” dessa desrazoabilidade prende-se [...] com a medida do sacrifício exigido aos trabalhadores do setor público, que se qualifica de desproporcionada e excessiva.
Discorda-se deste juízo […].»
É de presumir que o juiz em causa tenha superado um período de alguma desorientação, tendo acabado por absorver a sofisticada «
visão filosófico-política» de Passos Coelho. Aparentemente, a esmagadora maioria dos juízes precisa de um curso de formação acelerada. Tendo dado formação a mil funcionários municipais para aeródromos que estavam fechados, que eram pistas perdidas ou que tinham um ou mesmo nenhum funcionário afecto, talvez a
Tecnoforma possa ser reactivada para o efeito. Seria a cereja em cima do bolo.