Após um período de reflexão e seriedade - que durou desde Agosto a Dezembro -, consumados todos os problemas que se adivinhavam (menos por parte de quem dirige e treina o clube), entrei numa espiral apocalíptica de autismo - cometido o mal, vamos a eles, sem soluções, com más soluções, com as soluções erradas, partamos para o ataque. No fundo, tornei-me Jorge Jesus e a própria equipa do Benfica: só queria atacar, escrever muitas vezes - que parece que para muitos adeptos resulta - "vamos ganhar" e dedicar-me a textos mais do foro do romântico que é sempre um bom escape para evitarmos pensar naquilo que nos dói.
Mas hoje olhando as notícias dos jornais não pude deixar de sentir o coração apertado, a alma a mirrar-se, o corpo entorpecido de pequeninas e lancinantes dores. Como diria o outro, dores à portuguesa. É que é tudo tão ridículo.
Desde o treinador que vive numa realidade paralela qualquer que o faz falar nas conferências de imprensa como se estivesse a ser ouvido e admirado por atrasados mentais. E, de facto, muitas vezes está. Para o mister, está tudo controlado e, se perdemos, é porque choveu demasiado, fez muito sol, houve pouca lua, o árbitro isto, o azar aquilo. Compreende-se: vive-se no "limite do risco", que é uma expressão que o técnico gosta muito e que serve em termos básicos para designar uma coisa simples: incompetência.
O "limite do risco" dá-se porque, diz ele, estamos em duas competições exigentes no início de Abril, embora ele já fale disto há um mês. Imagino que para Milan, Barcelona, Real Madrid, Bayern, Chelsea e tantas outras equipas da actualidade e da história do futebol tenha havido e ainda haja alguma poção mágica e sobrenatural que permite uma capacidade estranhíssima de se manterem fortes em várias provas até ao final da época. Ou então é muito simples: competência, planeamento, organização.
Enquanto por cá se constrói um plantel desequilibrado, se insiste em maus jogadores a titulares indiscutíveis e, em Janeiro, se emprestam todos os médios suplentes a adversários directos ou a clubes com condutas no mínimo reprováveis - e não se reforça a equipa decentemente para as posições em que estava obviamente necessitada - lá fora usa-se dessa miraculosa obra do acaso que se chama inteligência, qualidade nas escolhas, pensamento a médio e longo prazo.
O "limite do risco" é um nome atirado à parede para justificar o injustificável: não termos, por esta altura, 18 a 19 jogadores bem rodados e preparados para serem alternativa em qualquer estádio deste mundo e em qualquer competição. O "limite do risco" é uma coisa muito transcendental que o mister gosta de falar e ouvir-se falar para esconder a teimosia e boçalidade das suas escolhas.
É tão ridículo assistir ao treinador de um clube como o Benfica veladamente desculpar o mau futebol que a equipa pratica e a possibilidade de insucesso com o facto de estar em Abril a disputar Champions e Campeonato. É ridículo porque não devia nem podia usar isso como desculpa. É ridículo porque não há coisa mais natural para os grandes clubes do que precisamente estarem em várias provas até final. A diferença não está nos orçamentos, está noutra coisa muito simples: competência, admissão de erros próprios, capacidade para superá-los buscando alternativas que sejam mais-valias no mercado de Dezembro, pensamento logo em Julho de uma época a longo prazo e não só até Fevereiro.
Se fossem precisas provas do mau trabalho que se faz a este nível no clube, bastaria pensar nas últimas 3 épocas de Jesus no Benfica e a forma deplorável com que a equipa chega a este mês em que geralmente tudo se decide. A má forma - que não é só física, é também mental - é uma consequência natural de três coisas essenciais: utilização recorrente de um número abaixo do exigível de jogadores, escolha de um sistema táctico que não só prejudica em termos de futebol a equipa como a consome estupidamente em termos atléticos e nenhuma projecção no tempo do calendário e exigências de futuro. Desgastam-se assim, até Fevereiro, os nossos melhores 12 ou 13 atletas, enquanto as alternativas escassas que existem raramente jogam. Chegados aqui, vários dos recorrentemente utilizados ou estão em péssima forma ou nem sequer jogam por estarem lesionados e lançam-se às feras - sem suficiente regularidade e ritmo - as sobras que durante o ano inteiro serviram para aquecer o banco ou mesmo ficar a falar ao telemóvel na bancada vip do estádio.
É que é tão ridículo que dói. Mas Jesus prossegue em conferências de imprensa de grande fervor futebolístico-decadente. E se, quando perde, as desculpas são as faladas em cima, quando ganha não se coíbe de alertar para o facto de ter sido ele o grande mestre e construtor da vitória. Mesmo que diga disparates atrás de disparates, como agora no final do jogo de Braga, em que diz que felizmente trocou Bruno César por Gaitán e que - espantem-se todos! - deu resultado. É curioso pensar que, apesar de terem trocado de flanco, os dois constroem a jogada de golo no mesmo. Mas isto é só um pormenor. Talvez seja este "limite do risco" de que tanto o nosso catedrático nos fala.
Azar com as lesões? Sim, embora se deva reflectir no que isso quer dizer. Reflectir, por exemplo, na utilização de Rodrigo em Guimarães - com os resultados desportivos que todos conhecemos -, claramente incapacitado, ou na de Garay contra o Porto - vindo de lesão dois dias antes pela selecção argentina. Reflectir na razão de Miguel Vítor se lesionar num jogo de altíssima exigência em que foi lançado após longo período de ausência - até para lateral-direito, que era onde ainda jogava de 2 em 2 meses, foi preterido por... Witsel. Ou ainda reflectir na lesão de Luisão, jogador que, esteja a 100 por cento ou apenas a 30, tem de jogar sempre. Não, não é só azar, é má gestão de recursos, planeamento ao nível subterrâneo e, uma vez mais e sempre, muita incompetência. Ou algo mais do que isso?
Mas aceitemos o azar das lesões, para ficar mais fácil para todos. Há problema grave em ter de colocar Javi a central? Seria sempre uma solução de recurso, mas se pudéssemos, na extrema necessidade de o colocar na defesa, ter alternativas ao espanhol isso sim seria ter um plantel equilibrado, regular, rodado e consistente. Para Javi, temos Matic, que não é um trinco, nunca foi um trinco, nunca será um trinco, mas que para Jesus é porque é... alto. Como Miguel Vítor é a 4ª opção para central (mesmo sendo melhor do que a 3ª) porque é... baixo. Estamos em 2012 mas Jesus ainda lê as características físicas dos jogadores como se estivéssemos nos anos 70. Não interessam as sucessivas lições que as grandes equipas de lá até hoje têm vindo a dar sobre a matéria. Na Reboleira há outro modus operandi. Verguemo-nos, pois, à invenção da batata.
Nuno Coelho, Airton, Ruben Amorim, Filipe Bastos, David Simão, Miguel Rosa, Ruben Pinto, Enzo Pérez. Conhecem esta gente? É provável que sim. Para Jesus não servem. E portanto para o meio-campo temos 4 jogadores. Para uma época inteira. É o limite do risco.
Não dá pena chegarmos a esta fase em que estamos a disputar os quartos-de-final da Champions (e que raro tem sido) e o Campeonato (em que, por má estratégia e teimosia, desperdiçámos 10 dos últimos 21 pontos) com uma equipa feita em farrapos, que só por muita incompetência alheia ganharemos? Não mete dó pensar que, se o trabalho tivesse sido pensado decentemente, podíamos hoje estar num pico de forma para encarar as provas com todo o potencial que este plantel tem e mais poderia ter se tivesse sido feita uma gestão correcta dos recursos disponíveis (e são muitos, uns 70)?
A mim dá. Dói muito, dói tudo. Percorrermos este país sempre com a mesma esperança atrás do Benfica, sabendo que o futebol vai ser mauzinho, que vamos perder pontos estupidamente, que não se estão a usar bem as armas que temos a favor pura e simplesmente por embirrações de um técnico que tem carta branca por parte da Direcção para tudo fazer, mesmo que em prejuízo do clube. Um pequeno principezinho num império comandado por um cacique popularucho e demagógico que só abre a boca em Fevereiro, aproveitando a boa onda de resultados, para logo a fechar quando só restam as ruínas.
É ridículo. Só pode ser ridículo. Como é ridículo 90 por cento dos benfiquistas entregarem este clube a esta gente. Que às vezes, muitas vezes, parecem gastar o dinheiro suficiente (e se ele é muito) para manter os pratos a rodar mas com a dose certa de incompetência para que os pratos não rodem até final e caiam quando o artista já espera ovação de pé e o povo só aguarda a comemoração. Às vezes, vezes em demasia, parece mesmo que o "quase" interessa a muita gente. Porque não é possível ser-se assim tão burro tantas vezes seguidas.
Para hoje, poupava vários titulares, especialmente Witsel. Muito dificilmente venceremos esta eliminatória com Emerson e Javi no centro da defesa e Matic no miolo. Sejamos pragmáticos: resguardemos alguns para o jogo da época que será em Alvalade. Com pena minha, claro. Porque podíamos estar agora em condições de discutir o jogo e a passagem às meias-finais com outro poderio futebolístico, físico e mental. E, no meio de tanta palhaçada e má gestão, acreditemos ainda assim num milagre. Acreditamos sempre. Só que é bom que tenhamos a capacidade para entender que no Benfica há espaço e grandeza para muito mais do que apenas estar dependente do "limite do risco" do milagre divino.