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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O dia do jogo do Benfica

O dia do jogo do Benfica é sempre um dia especial. Podem vir anunciados meteoros nos telejornais, tempestades medonhas, uma crise de pão e leite, eleições, mais uma manifestação, greve dos trabalhadores, a sogra que vem almoçar. Nada interessa muito. Fingimos para o mundo que é mais um dia, cumprimos o ritual de acordar e fingir viver como se nada fosse. Cumprimentamos a sogra, preocupamo-nos com as notícias das televisões, dizemos «se este meteoro chega a cair, é o fim», mas no fundo o único fim que há é o do final do jogo do Benfica.

Podemos estar a dois passos do Estádio ou no outro lado do mundo, quando o Benfica joga nós paramos a vê-lo. Antecipamos o jogo. Sonhamos com o jogo. Dormimos agarrados ao jogo. Na noite anterior fazemos os onzes, o que em princípio vai entrar em campo e o que nós preferimos. Deitamos na cama, começamos a contar peças, a escolher posições, os jogadores que queremos no relvado, os jogadores que não queremos mas aceitamos - afinal, o mister é que sabe, é ele que treina com eles durante a semana. Olhos no tecto, noite cerrada, falamos baixinho para não acordar a pessoa ao lado. «Devíamos começar assim» e depois dissertamos no cérebro toda uma lógica táctica ou só uma vontade que temos para a vitória. Queremos que o Benfica ganhe, não é?

No dia do jogo fazemos coisas. Temos de fingir que há coisas a fazer. E fazemo-las com todo o denodo e devoção, as outras pessoas não podem perceber que o único pensamento que nos sobrevive é o de esperar religiosamente por ver o Benfica. Somos bons a disfarçar. Quem olhasse para nós e não nos conhecesse, diria até que nem ligamos para futebol, que parecemos sãos, que um dia seremos gente importante. Mas há indícios que os outros não vêem, ou fingem não ver, que nos denunciam. Há um qualquer nervosismo que nos denuncia; comemos mais rápido, não comemos de todo, falamos muito ou calamo-nos num olhar no vazio. 

O almoço de família vai animado, dizem-se graçolas com os dentes na tarte de maçã, bebem-se cafés, sorvem-se digestivos. O que se passa, então, com aquele benfiquista que nervosamente olha o relógio, não ri do que é dito, se esquece de brindar? Que tem dois olhos estáticos na eternidade, as mãos inertes, a boca sem graça? 

O benfiquista acha que finge bem. Que não dá barraca. Abre um sorriso para o mundo e pensa enganar quem o rodeia. «Estou adoentado», diz. «Um uísque agora...», enquanto volta a fazer o onze e diz que sim a toda a gente com a cabeça, não ouvindo nada. Come a sobremesa, dá um shot de café, ri-se muito do que as pessoas dizem. «Vai jogar o Cardozo ou o Rodrigo?», coisas que vai pensando embora já haja gente a desconfiar daquele olhar submerso. O benfiquista ia dizer «brindemos!», mas saiu-lhe um «VIVÓ BENFICA!», que espantou toda a gente na mesa, cães incluídos, paredes e sofás incluídos, quadros na parede mudando esgares de sorrisos. 

Já vi o Benfica em todo os lugares do mundo. Vi o Benfica no estádio, nos cafés deste e de outros países, em casa de amigos, na rua ouvindo o relato, no carro, em comboios, no trabalho - aconteceu-me trabalhar num restaurante, ter de servir sozinho 70 pessoas e ver o Benfica não vendo, naquela cozinha aonde ia esperar pratos e suplicar ao cozinheiro «Zé, diz-me que estamos a ganhar» e estávamos ou quase que estávamos, porque, como bem disse o Grande Artur, o Benfica nunca perde, às vezes não ganha. 

Lembro-me agora da América do Sul. Andava pela Bolívia no Agosto de 2007, Santa Cruz e a descoberta da civilização indígena sobre esta falácia que é a religiosidade católica. O Benfica fazia um jogo de pré-época, Fernando Santos ao leme. Entrei num cyber, escolhi o meu cubículo (devidamente contornado lateralmente por contraplacado e tapado por uma manta inca), pus os auriculares e vi, aos soluços, um jogo em que entrou o Adu e foi uma grande alegria. O Rui Costa terá marcado um golo de longe, é possível que tenha sido isto. 90 minutos a ver o Benfica na Bolívia, enquanto a minha companheira brasileira esperava o final do desfecho, perscrutando as ruas, provavelmente percebendo a doença que me alucina.

O dia do jogo do Benfica é sempre um dia especial. É um dia de doentes. Que nunca ninguém encontre a cura para nós.