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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Paulo Sousa - o génio maldito

Ameaças de morte, um Vice-Presidente a ir perguntar por mim ao local de trabalho, insultos, ódios, calúnias, mentiras, ataques soezes por parte de vários blogues ao Ontem - em 6 anos e tal de blogue já quase tudo nos aconteceu. E, no entanto, nada ou quase nada é justificado. Na verdade, somos atacados por defender o Benfica do ÚNICO PRESIDENTE ILEGÍTIMO DA HISTÓRIA DO CLUBE.

Pensem um pouco nisso: o Presidente actual não ganhou legitimamente o poder; antes o roubou, forjando um número de sócio que não tinha e assim adulterando os estatutos que ele próprio havia criado para se manter no poder. Voltem a reler as últimas frases e questionem-se: será que um benfiquista vertical, sério e profundamente apaixonado pelo seu clube pode aceitar uma situação deste tipo sem recorrentemente lutar contra tal? Podem (devem) discordar de nós, não vejam é outras motivações que não as naturais, legítimas e altamente compreensíveis: queremos defender o Benfica. Nem mais nem menos. É o Benfica que nos guia. Os seus valores, a sua histórica democraticidade, o seu emblema livre e desapegado de caciques. É esse que defendemos todos os dias. Se tiverem a fórmula mágica para fingir que isto não aconteceu numas eleições, por favor expliquem-me como se faz porque eu não consigo olhar para o lado. O Benfica não mo permite.

Portanto, e para que nos odeiem legitimamente e não de forma injusta, vou agora escrever um texto sobre outro odiado do Benfica. A partir de hoje os vossos insultos, ameaças, calúnias, ódios e perseguições por parte de Vice-Presidentes a quem critica a forma como o clube é desgovernado já poderão ser aceitáveis. Vou escrever sobre Paulo Sousa.

Comecei a ver este extraordinário jogador quando a Luz ainda era vista por mim como um gigante de betão com relva dentro. Ligava mais para a cor das camisolas, para a cara das pessoas, para a águia a dar a volta ao Estádio antes dos jogos, para as queijadas de Sintra, para as 4 torres de iluminação a anunciar «BENFICA CAMPEÃO NACIONAL 90/91», para os painéis de publicidade, para as almofadinhas de sentar o traseiro, para as bandeiras ao vento, para os milhares de rolos de papel higiénico que caiam por cima de nós quando a equipa entrava em campo, para a equipa a entrar em campo, para o golo, o golo, o golo do Benfica. Os abraços entre estranhos no golo do Benfica, o olhar do meu Pai no golo do Benfica, o olhar das pessoas no golo do Benfica. Era dentro do golo do Benfica que eu via o Benfica todo, assim todo inteiro, popular, feliz.

Mas houve um jogo em que passei a ver com mais atenção o que ia acontecendo dentro de campo para além do golo do Benfica. Enquanto eu olhava maravilhado para 120.000 almas sob um sol glorioso, o meu Pai disse-me para esquecer as bancadas, esquecer a bola, esquecer as balizas: «fica só a ver aquele miúdo ali no centro do campo». No meio-campo passeava-se com elegância um jovem da nossa formação. Cabelos grandes, passada lenta, olhos abertos sobre o jogo, cabeça levantada, pezinhos de ouro. Paulo Sousa não caminhava sobre o relvado; deslizava. Quando o víamos correr junto de um adversário tínhamos a sensação de que o outro usava chuteiras e ele patins para o gelo - era como se a terra não sentisse os seus passos ou se os seus passos nada pesassem sobre o mundo; gravidade zero, uns pés com asas acima do relvado.

Paulo Sousa é o responsável por ter sido criada a expressão «falso-lento» porque os comentadores não sabiam o que dizer de um rapaz que parecia estar em todo o lado ao mesmo tempo, a dobrar laterais e centrais, a antecipar os lances, a desarmar o adversário, a movimentar-se antes do futuro acontecer. Chamaram-lhe «falso-lento» porque em pique não era rápido mas por alguma razão parecia sempre mais rápido do que os outros. Na verdade, Paulo Sousa não era um falso-lento, era mesmo lento. Não tinha velocidade de ponta, se o puséssemos a correr os 100 metros barreiras com os outros 21 jogadores iria ficar em último, atrás dos guarda-redes. O que ele tinha era a supersónica rapidez de pensamento, que lhe dava a capacidade de ver a jogada antes dela acontecer. E por isso chegava primeiro à bola, por isso desmarcava em passes de 30 ou 40 metros o Paneira na ala direita, o Isaías pelo meio, o João Pinto pela esquerda.

Fazia tudo como se nem suasse. Olhávamos os outros jogadores e todos com um ar desgastado, língua de fora, suor na testa, meias sujas de relva e terra, camisola para fora dos calções, peito aos soluços, costas arqueadas para o relvado. Na disputa do meio-campo daquele princípio de anos 90, tão repleto de equipas com médios sarrafeiros prontos a levar as pernas dos adversários para casa, Paulo Sousa ficava com a bola só com um ligeiro toque. Na «dividida» não usava o corpo para bater de frente; usava-o antes para fingir ir para um lado e logo sair pelo outro. O corpo era assim uma distracção, não um tractor. Com um movimento mentiroso, tirava o jogador do caminho e depois ficava com o terreno todo, com o tempo todo, com a magia toda para entregar de bandeja mais um passe que era três quartos do golo.

Antes de Pirlo, houve Paulo Sousa. Da família genético-genial de Guardiola ou Redondo, coordenava a equipa desde perto dos centrais. Sempre em elegância, suavidade, ternura. A bola procurava-o como refúgio de 90 minutos a ser maltratada. Chegava aos seus pés e ganhava outra cor, outro brilho, outra chama. Era nos pés de Paulo Sousa que ela ganhava fôlego para ir outra vez ser pontapeada por um Celestino, violada por um Paulinho Santos, caluniada por um Bobó. Como este génio pensava muitos segundos antes dos outros, quando a bola ia perdida aos saltinhos para o meio-campo depois de um ressalto qualquer, parecia mesmo que o adversário, que estava mais perto dela a ia ganhar, mas já Paulo Sousa a sabia de cor. Vemos agora o lance em câmara-lenta: o vento passa sobre o corpo dos dois jogadores, a bola vai no meio deles, o público parou todo a tentar perceber quem vai ficar com ela. O adversário estava mais perto mas partiu depois porque não percebeu o futuro que ela levava e assim Paulo Sousa, meio-segundo antes de passarem uns pitons em riste na zona onde estava a bola, só com a pontinha da bota já a desviou do massacre a que iria estar sujeita. Um toque, um pormenor, um samba de uma nota só.

No passe, parecia uma máquina de atirar bolas de ténis. Era só dirigir a mira para onde queria e lá ia ela direitinha cair no espaço atrás das costas da defesa contrária; lá sobrevoava ela todo o campo na horizontal para mudar um flanco que desequilibrava o adversário e deixava um dos extremos com o relvado da Luz todo inteiro para fazer a assistência ou para ir directo para o golo. No futebol, a mania da estatística fura os planos da análise que deve ser feita. A preponderância está em quem marca; às vezes em quem dá. Mas ninguém fala do gajo que faz as assistências para as assistências que dão golo. E é esse, normalmente, aquele que criou o golo, aquele que o potenciou ao expoente máximo de golo que é. 

A assistência para a assistência é o que define o desequilíbrio. Quando a assistência para a assistência ocorre já o golo está para nascer ou se calhar até já nasceu - nós é que ainda não o vimos. Mas Paulo Sousa já o havia visto quando ainda no seu meio-campo deixou de rastos um médio adversário. O resto já está feito e vemo-lo agora: Paneira faz a diagonal da direita para o centro, vai aparecer no espaço entre o central e o lateral, vai cruzar para trás, rasteiro, e o João Pinto já atirou para o golo do Benfica. As bancadas saltaram todas ao mesmo tempo, a Luz está toda cheia de abraços, beijos bandeiras, fumos e vermelho no vermelho. 

No centro do campo, Paulo Sousa com as duas mãos mete o cabelo por trás das orelhas para ouvir melhor o grito de 120.000 almas a gritar: BENFICA, BENFICA, BENFICA, BENFICA, BENFICA!


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Era para a esquerda, Vítor.

O tempo é um líquido que se entranha no corpo e vai pingando para o chão a ritmos diferentes. Brota aos prantos, às vezes, chovendo dos braços; outras, cai devagar, com medo da queda. Não tenho noção se aquele penálti do Paneira ainda está aqui comigo ou se choveu há muitos anos. Sei que me molha, aos jorros, de tempos a tempos. E então eu sorvo dos poros aquela memória ou agacho-me de joelhos sobre as poças que a defesa de Bucci deixou a reflectir na água. 

Toda a gente sabe que era para o lado esquerdo, Vítor, mas a incredulidade de ver Faustino Asprilla no relvado e os pedidos sôfregos de Gabriel Alves - "falta acção disciplinar!" - para um amarelo que não chegou, confundiram Paneira na hora da decisão. Não foi astuto, o nosso 7, porque se tivesse visto a massa disforme de cabeças que compunham o primeiro anel tinha sentido a direcção do sucesso - o público todo a contorcer os pescoços e os olhos, fazendo sinais de golo: "é para ali, caralho", como se as redes e os fumos e os fios de aço fossem transparentes -, tinha visto o golo antes dele acontecer.

Mas o tempo escoou para outro lado qualquer e, quando demos conta, em vez de um 3-1 que pecava por nulo - não escasso, mas nulo -, que devia ter sido um 6-1 ou 7-1 sem espinhas, acabou nas mãos de Bucci e depois no desespero de João Pinto num 2-1 sem verdade, desonesto porque cruel. O Benfica acabava um jogo de tareia monumental contra uma equipa fabulosa agarrado a um golinho de vantagem e a olhar para o golo sofrido com ansiedades e desperdícios. 

Mas recuemos: Veloso dá de primeira em Rui Costa que recebe junto à linha, sem pressas. Ouve-se um som de fundo de milhares de gargantas aos soluços: "vai, vai, vai" que no plano geral dá "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah", que era o som de quase todos os 90 minutos que viam o Benfica jogar. O Maestro espera que o adversário o ultrapasse e depois, sim, avança pelo meio, sempre com aquele ar de quem já está a festejar o golo e viu tudo o que vai acontecer enquanto os italianos procuram disfarçar a tristeza do que não sabem que já foi. De repente, faz um passe para Yuran e continua a correr - aquele 2-1 mágico que, por mais tácticas e prelecções que existam em laboratórios do futebol mais evoluído, destrói qualquer marcação - para receber mais à frente, já em território inimigo, e levantar a bola com a pontinha do dedão enquanto um jogador do Parma se deita no relvado da Luz e vê as costas do Maestro correrem na direcção da baliza e fintarem de anca mais outro que apareceu por ali e depois, logo de seguida, meterem na frente de Isaías o charme do golo. Isaías correu que nem um cavalo alado, ou então voou com um trote terrestre, e quando chegou à frente dos Diabos amansou a bola com um só toque e fez um golo junto ao poste que ainda é melhor porque deixa o salto de 120.000 adeptos em suspenso e passível de ser fotografado com alma e vinho e dúvida e tudo no meio. 

Houve depois uma coisa coisa estranha na área do Benfica que ainda ninguém sabe bem como foi e que acabou nas redes do Neno e o árbitro validou mas não deve ter sido muito bem um golo porque disto eu não sinto a escorrer-me dos braços para o chão. Houve Helder, acho que sim, aos pontapezinhos sobre a bola e depois algo estranho e de que me não recordo bem que originou passe, depois remate e depois um golo, uma espécie de golo, e que sentimos no coração não bem como gelo mas como quando morre gente, que é o sentir do adepto do Benfica quando vê golos adversários no estádio - uma morte silenciosa, cortando veias ou sorvendo veneno. 

No resumo, vê-se Nevio Scala descrente naquilo, tal era o banho de bola a que assistia e ainda por cima gratuitamente - os treinadores, mesmo os maus ou bons ou medíocres, por menos ou mais que façam das suas equipas, têm esse privilégio dos deuses de partilharem relvado com a loucura e com o génio. Nevio Scala estava assim, após o golo do Parma: dava-se por feliz ao mesmo tempo que sentia no coração aquela pontada da injustiça - quase vergonha - de andar a levar a sua equipa a solo sagrado. O público, mesmo gelado ou de luto, respirava de tal forma que punha cubos de gelo ou então mantos de veludo sobre as cabeças de quem nos visitava. Não queria ser Nevio Scala ou aqueles olhos tontos dele em suplício. "E agora que marcámos, o que é que vem aí?"

O que veio foi um fartote de Benfica, que parece que decidiu fazer uma recolha de todos os melhores momentos das centenas de equipas benfiquistas anteriores ao mesmo tempo que se despedia de nós: aquele grupo de gente de 94, vendo agora com distância e saudade, dava todo o ar de sentir de tal forma o clube que já conhecia a nossa tragédia que havia de chegar. Jogavam para escrever Benfica. Tinham pena de nós e por isso decidiram dar-nos tantos momentos e jogos e golos e jogadas e emoções, para que não nos esquecêssemos de que um dia houve este clube que nos fascinou e eternizou crianças até sermos velhos. Compraram-nos futuro naquelas épocas, decidiram deixar memórias tão fortes que nos permitissem aguentar os 20 anos que estavam por vir. 

E nós comprámos, sem medos nem hesitações, tudo o que eles davam e tudo o que eles deixavam dentro de nós - foi assim, até hoje, que viemos respirando e bebendo e comendo, sempre na esperança de ver o Benfica outra vez, com estes bancos de oásis deixados na pele.

Yuran recebe na esquerda, à entrada do meio-campo adversário, com um toque faz cueca sobre o marcador e segue em frente, feliz. Mete no meio em Isaías e - oh, o 2-1! - corre para ir ao encontro da bola, o touro sertanejo não duvida, faz compasso de espera e mete no ucraniano que vai, gazela, perto da área do Parma, de primeira levanta a bola para um Isaías que veio de trás e aparece em vólei falhado e circense, a bola tabela no relvado e vai a caminho de Paneira que, por ter dois cérebros no pé direito, em vez de chutar ou inventar mosntruosos caminhos, a deixa bater primeiro e depois, com a cara da chuteira, abre na direita onde João Pinto a recolhe - sem saber se dá meia-volta e remata ou se dá lugar ao improviso - e deixa para Rui Costa que estava desde o início da jogada a acompanhar o lance com os olhos e com o génio. Depois foi só rematar, simples e para dentro da baliza. Correu desalmado para a bandeirola de canto porque os putos não sabem o que hão-de fazer com o golo, é uma coisa pesada e sem maneiras o golo, não tem coreografia de sentidos, tanto pode dar pirueta como morte instantânea. Deu mãos na cabeça, um abraço do João Pinto e um tapinha do Silvino que por estas alturas já preparava o seu ofício de oficial tapinhador de jogadores. 

Foi um golo que conteve dentro de si todos os golos do Benfica desde o Bermudes e Cosme até àquele segundo. E ainda hoje é esse golo que nos leva ao estádio de bandeiras e cachecóis no corpo. Vamos em busca desse Benfica até ao final dos nossos dias. E esse, por mais que tentem, nunca no-lo vão roubar.




segunda-feira, 3 de junho de 2013

Era para a esquerda, Vítor

O tempo é um líquido que se entranha no corpo e vai pingando para o chão a ritmos diferentes. Brota aos prantos, às vezes, chovendo dos braços; outras, cai devagar, com medo da queda. Não tenho noção se aquele penálti do Paneira ainda está aqui comigo ou se choveu há muitos anos. Sei que me molha, aos jorros, de tempos a tempos. E então eu sorvo dos poros aquela memória ou agacho-me de joelhos sobre as poças que a defesa de Bucci deixou a reflectir na água. 

 Toda a gente sabe que era para o lado esquerdo, Vítor, mas a incredulidade de ver Faustino Asprilla no relvado e os pedidos sôfregos de Gabriel Alves - "falta acção disciplinar!" - para um amarelo que não chegou, confundiram Paneira na hora da decisão. Não foi astuto, o nosso 7, porque se tivesse visto a massa disforme de cabeças que compunham o primeiro anel tinha sentido a direcção do sucesso - o público todo a contorcer os pescoços e os olhos, fazendo sinais de golo: "é para ali, caralho", como se as redes e os fumos e os fios de aço fossem transparentes -, tinha visto o golo antes dele acontecer. 

 Mas o tempo escoou para outro lado qualquer e, quando demos conta, em vez de um 3-1 que pecava por nulo - não escasso, mas nulo -, que devia ter sido um 6-1 ou 7-1 sem espinhas, acabou nas mãos de Bucci e depois no desespero de João Pinto num 2-1 sem verdade, desonesto porque cruel. O Benfica acabava um jogo de tareia monumental contra uma equipa fabulosa agarrado a um golinho de vantagem e a olhar para o golo sofrido com ansiedades e desperdícios. 

 Mas recuemos: Veloso dá de primeira em Rui Costa que recebe junto à linha, sem pressas. Ouve-se um som de fundo de milhares de gargantas aos soluços: "vai, vai, vai" que no plano geral dá "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah", que era o som de quase todos os 90 minutos que viam o Benfica jogar. O Maestro espera que o adversário o ultrapasse e depois, sim, avança pelo meio, sempre com aquele ar de quem já está a festejar o golo e viu tudo o que vai acontecer enquanto os italianos procuram disfarçar a tristeza do que não sabem que já foi. De repente, faz um passe para Yuran e continua a correr - aquele 2-1 mágico que, por mais tácticas e prelecções que existam em laboratórios do futebol mais evoluído, destrói qualquer marcação - para receber mais à frente, já em território inimigo, e levantar a bola com a pontinha do dedão enquanto um jogador do Parma se deita no relvado da Luz e vê as costas do Maestro correrem na direcção da baliza e fintarem de anca mais outro que apareceu por ali e depois, logo de seguida, meterem na frente de Isaías o charme do golo. Isaías correu que nem um cavalo alado, ou então voou com um trote terrestre, e quando chegou à frente dos Diabos amansou a bola com um só toque e fez um golo junto ao poste que ainda é melhor porque deixa o salto de 120.000 adeptos em suspenso e passível de ser fotografado com alma e vinho e dúvida e tudo no meio.

 Houve depois uma coisa coisa estranha na área do Benfica que ainda ninguém sabe bem como foi e que acabou nas redes do Neno e o árbitro validou mas não deve ter sido muito bem um golo porque disto eu não sinto a escorrer-me dos braços para o chão. Houve Helder, acho que sim, aos pontapezinhos sobre a bola e depois algo estranho e de que me não recordo bem que originou passe, depois remate e depois um golo, uma espécie de golo, e que sentimos no coração não bem como gelo mas como quando morre gente, que é o sentir do adepto do Benfica quando vê golos adversários no estádio - uma morte silenciosa, cortando veias ou sorvendo veneno. 

 No resumo, vê-se Nevio Scala descrente naquilo, tal era o banho de bola a que assistia e ainda por cima gratuitamente - os treinadores, mesmo os maus ou bons ou medíocres, por menos ou mais que façam das suas equipas, têm esse privilégio dos deuses de partilharem relvado com a loucura e com o génio. Nevio Scala estava assim, após o golo do Parma: dava-se por feliz ao mesmo tempo que sentia no coração aquela pontada da injustiça - quase vergonha - de andar a levar a sua equipa a solo sagrado. O público, mesmo gelado ou de luto, respirava de tal forma que punha cubos de gelo ou então mantos de veludo sobre as cabeças de quem nos visitava. Não queria ser Nevio Scala ou aqueles olhos tontos dele em suplício. "E agora que marcámos, o que é que vem aí?" 

 O que veio foi um fartote de Benfica, que parece que decidiu fazer uma recolha de todos os melhores momentos das centenas de equipas benfiquistas anteriores ao mesmo tempo que se despedia de nós: aquele grupo de gente de 94, vendo agora com distância e saudade, dava todo o ar de sentir de tal forma o clube que já conhecia a nossa tragédia que havia de chegar. Jogavam para escrever Benfica. Tinham pena de nós e por isso decidiram dar-nos tantos momentos e jogos e golos e jogadas e emoções, para que não nos esquecêssemos de que um dia houve este clube que nos fascinou e eternizou crianças até sermos velhos. Compraram-nos futuro naquelas épocas, decidiram deixar memórias tão fortes que nos permitissem aguentar os 20 anos que estavam por vir. 

 E nós comprámos, sem medos nem hesitações, tudo o que eles davam e tudo o que eles deixavam dentro de nós - foi assim, até hoje, que viemos respirando e bebendo e comendo, sempre na esperança de ver o Benfica outra vez, com estes bancos de oásis deixados na pele. 

 Yuran recebe na esquerda, à entrada do meio-campo adversário, com um toque faz cueca sobre o marcador e segue em frente, feliz. Mete no meio em Isaías e - oh, o 2-1! - corre para ir ao encontro da bola, o touro sertanejo não duvida, faz compasso de espera e mete no ucraniano que vai, gazela, perto da área do Parma, de primeira levanta a bola para um Isaías que veio de trás e aparece em vólei falhado e circense, a bola tabela no relvado e vai a caminho de Paneira que, por ter dois cérebros no pé direito, em vez de chutar ou inventar monstruosos caminhos, a deixa bater primeiro e depois, com a cara da chuteira, abre na direita onde João Pinto a recolhe - sem saber se dá meia-volta e remata ou se dá lugar ao improviso - e deixa para Rui Costa que estava desde o início da jogada a acompanhar o lance com os olhos e com o génio. Depois foi só rematar, simples e para dentro da baliza. Correu desalmado para a bandeirola de canto porque os putos não sabem o que hão-de fazer com o golo, é uma coisa pesada e sem maneiras o golo, não tem coreografia de sentidos, tanto pode dar pirueta como morte instantânea. Deu mãos na cabeça, um abraço do João Pinto e um tapinha do Silvino que por estas alturas já preparava o seu ofício de oficial tapinhador de jogadores. 

 Foi um golo que conteve dentro de si todos os golos do Benfica desde o Bermudes e Cosme até àquele segundo. E ainda hoje é esse golo que nos leva ao estádio de bandeiras e cachecóis no corpo. Vamos em busca desse Benfica até ao final dos nossos dias. E esse, por mais que tentem, nunca no-lo vão roubar.




domingo, 2 de junho de 2013

La rumba de Benfica

Não me perguntem mais a que horas é o Benfica, em dias de Champions. Exceptuando talvez da namorada, da velhota que me vende litros de cerveja em horas de aperto e dos sportinguistas - que suporto com simpatia e até alguma compaixão -, não consigo ouvir esta pergunta de mais nenhum ser humano ou desumano, animal, vegetal ou quadrúpede. Estou até capaz de abrir um tópico no facebook - "Vamos matar os que desconhecem as 19:45" - e depois lançar apelos de grande logorreia a clamar pela participação das pessoas. É a democracia a fazer valer-se. 

 Quando eu vi pela primeira vez o Barcelona no Estádio da Luz era tão pequeno que acho que levava ainda as mangas largas de golos do Rui Águas contra o Steaua de Bucareste e a mão do Vata escondida dentro de uma pastilha Gorila. Do terceiro anel, os jogadores pareciam mosquitos - digo isto porque ainda só havia Elifoot; se tivesse sido anos mais tarde, os jogadores teriam parecido bolas do FM e uma barra em baixo, feérica, vermelha e branca, branca e vermelha, histérica com o golo. Sempre foi o problema destes jogos: não filmavam as bancadas. Era por isso que avançávamos nós, em frente ao computador, fazendo gestos de milhares de adeptos, para ver se os nossos jogadores, metodicamente escolhidos na pré-temporada, compreendiam o que era jogar no Benfica e davam mais aquele bocadinho, aquela corrida que chegasse ao golo. Nunca gostei dos cruzamentos para a área em que apareciam várias bolas que se juntavam todas numa e a bola saía a rasar a trave. 

 O Bakero tinha um problema óbvio: era de si pequeno, o que compunha uma imagem que, do Terceiro Anel, se me afigurava difícil de perceber. Seria um jogador ou uma mancha de tinta blaugrana no relvado? Só me dava conta de que aquilo se mexia quando via a bola chegar-se-lhe e sair redonda para um lado e para o outro; um ponto no meio do campo que lançava a equipa para um acordeão, às vezes tudo dançava em expansão, outras comprimiam-se num azulejo mágico. O Bakero devia ter a minha altura e eu, não sei bem porquê, sentia que se ele podia estar ali dentro eu também podia apoiar os pés no cimento coberto a cores da Shell e voar para as costas do Paneira para ver o jogo mais de perto. 

 Ao longo dos anos, enquanto crescia, fui vendo do Terceiro Anel os jogadores mais crescidos, como se tivessem feito obras no estádio sem que eu tivesse notado. Ou então cresci uma imaginação galopante que me permitia alucinar gigantes numa visão de mosquitos. Era normal: não se ficava indiferente às tardes e noites de tanto Benfica acumulado - até os bancos de suplentes, onde o Toni vociferava impropérios gloriosos, de repente, a meio do meu crescimento, já me parecia que tocavam nos holofotes. Era assim: primeiro chegávamos ao terceiro anel e ficávamos uns minutos a sentir o ar frio de estar do lado de fora da estratosfera; a meio, entre fumos, chouriças e vinhos a martelo (eu só Trina de Laranja e talvez um golito de carrascão, mas não sei prometer), sentíamos que podiamos mesmo estar em território terestre; no fim, o relvado subia-nos sangue adentro e era como se estivéssemos a ver o jogo deitados no campo, com as cotovelos encostados à grama e os ouvidos cheios de peculiares vociferações dos jogadores e o toque da bola sempre que apanhava uma chuteira no caminho. 



 O Barcelona tinha o Eusebio, que não era o nosso Eusébio e tinha, entre tantos e tão bons, o Laudrup - que esteve quase para ser o Pedro Barbosa ou então o contrário porque eles se confundiam muito naquele lugar que é o da genialidade. Nós tínhamos o Thern, que foi dos primeiros jogadores a confundir ataque com defesa, largura e profundidade e outros nomes para aquilo que afinal é simples e facilmente descodificável: o futebol. Na direita, lembro-me de ver um pequeno ponto vermelho fazer de lateral e extremo e médio criativo e segundo avançado chamado Vítor Paneira, que era aquele tipo de jogador com quem eu gostaria de casar, se eu quisesse casar com um jogador. A perninha direita estava sempre no ar, à espera de um olhar desatento do adversário, enquanto a esquerda mantinha a ligação do atleta ao relvado. A bola ficava à frente, sem lugar definido, mas sempre ao alcance de um qualquer imprevisto. Depois era ver o isco lançado sobre um lado de Paneira e a bola a sair para o meio, o trote de Paneira em crescendo e depois Isaías ou Thern ou Yuran ou Rui Costa ou algum ponto vermelho que, por algum milagre ainda não explicado, sempre surgia tocando ao de leve a bola ou rodopiando em roleta russa o relvado que ia dar ao Pacheco, que, rodando não a perna mas o bracinho direito aos círculos antes de fintar, avançava pelo campo e descobria pequenos nenúfares de onde aparecia em situação de golo. 

Chapelou Pacheco Zubizarreta mas foi um quase golo. A bola no Benfica levava mais ou menos 10 segundos a chegar do guarda-redes à baliza adversária. Eu não sei bem como eles faziam aquilo, uma vez que estava com os olhos e a boca e os braços parados lá do tecto do mundo, mas acontecia começar uma pergunta sobre os detalhes do placar electrónico ao meu Pai, enquanto o Veloso recebia a bola, e ainda estar a concluir o interrogatório fundamental e já a bola estava lançada no Yuran que falhou um golo com o guarda-redes pela frente. O Yuran ia, assim naquele jeito de tractor acolchoado, passar para o lado com o pé esquerdo mas depois passava a bola por entre as pernas do adversário e já estava em frente à baliza. Isto lá de cima parecia tudo um carrossel de certezas, ou era golo ou era quase golo, não havia terceira opção. 

 Num espaço de ano e meio, vi o Barcelona duas vezes: uma empatámos, esse de que este texto é feito, e outro em que ganhámos por 2-1, numa Pepsi Cup entre Ailton, Rui Águas e Romário e outras coisas que não vêm ao momento. Fiquei muitos anos sem ver o Barcelona na Luz e depois ocorreu Moretto e dias diferentes. Amanhã vou ver a melhor equipa do mundo de todos os tempos contra o melhor clube do mundo de todos os meus vários corações. Seja o que for, será um dia feliz.



sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Era para a esquerda, Vítor.


O tempo é um líquido que se entranha no corpo e vai pingando para o chão a ritmos diferentes. Brota aos prantos, às vezes, chovendo dos braços; outras, cai devagar, com medo da queda. Não tenho noção se aquele penálti do Paneira ainda está aqui comigo ou se choveu há muitos anos. Sei que me molha, aos jorros, de tempos a tempos. E então eu sorvo dos poros aquela memória ou agacho-me de joelhos sobre as poças que a defesa de Bucci deixou a reflectir na água. 

Toda a gente sabe que era para o lado esquerdo, Vítor, mas a incredulidade de ver Faustino Asprilla no relvado e os pedidos sôfregos de Gabriel Alves - "falta acção disciplinar!" - para um amarelo que não chegou, confundiram Paneira na hora da decisão. Não foi astuto, o nosso 7, porque se tivesse visto a massa disforme de cabeças que compunham o primeiro anel tinha sentido a direcção do sucesso - o público todo a contorcer os pescoços e os olhos, fazendo sinais de golo: "é para ali, caralho", como se as redes e os fumos e os fios de aço fossem transparentes -, tinha visto o golo antes dele acontecer.

Mas o tempo escoou para outro lado qualquer e, quando demos conta, em vez de um 3-1 que pecava por nulo - não escasso, mas nulo -, que devia ter sido um 6-1 ou 7-1 sem espinhas, acabou nas mãos de Bucci e depois no desespero de João Pinto num 2-1 sem verdade, desonesto porque cruel. O Benfica acabava um jogo de tareia monumental contra uma equipa fabulosa agarrado a um golinho de vantagem e a olhar para o golo sofrido com ansiedades e desperdícios. 

Mas recuemos: Veloso dá de primeira em Rui Costa que recebe junto à linha, sem pressas. Ouve-se um som de fundo de milhares de gargantas aos soluços: "vai, vai, vai" que no plano geral dá "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah", que era o som de quase todos os 90 minutos que viam o Benfica jogar. O Maestro espera que o adversário o ultrapasse e depois, sim, avança pelo meio, sempre com aquele ar de quem já está a festejar o golo e viu tudo o que vai acontecer enquanto os italianos procuram disfarçar a tristeza do que não sabem que já foi. De repente, faz um passe para Yuran e continua a correr - aquele 2-1 mágico que, por mais tácticas e prelecções que existam em laboratórios do futebol mais evoluído, destrói qualquer marcação - para receber mais à frente, já em território inimigo, e levantar a bola com a pontinha do dedão enquanto um jogador do Parma se deita no relvado da Luz e vê as costas do Maestro correrem na direcção da baliza e fintarem de anca mais outro que apareceu por ali e depois, logo de seguida, meterem na frente de Isaías o charme do golo. Isaías correu que nem um cavalo alado, ou então voou com um trote terrestre, e quando chegou à frente dos Diabos amansou a bola com um só toque e fez um golo junto ao poste que ainda é melhor porque deixa o salto de 120.000 adeptos em suspenso e passível de ser fotografado com alma e vinho e dúvida e tudo no meio. 

Houve depois uma coisa coisa estranha na área do Benfica que ainda ninguém sabe bem como foi e que acabou nas redes do Neno e o árbitro validou mas não deve ter sido muito bem um golo porque disto eu não sinto a escorrer-me dos braços para o chão. Houve Helder, acho que sim, aos pontapezinhos sobre a bola e depois algo estranho e de que me não recordo bem que originou passe, depois remate e depois um golo, uma espécie de golo, e que sentimos no coração não bem como gelo mas como quando morre gente, que é o sentir do adepto do Benfica quando vê golos adversários no estádio - uma morte silenciosa, cortando veias ou sorvendo veneno. 

No resumo, vê-se Nevio Scala descrente naquilo, tal era o banho de bola a que assistia e ainda por cima gratuitamente - os treinadores, mesmo os maus ou bons ou medíocres, por menos ou mais que façam das suas equipas, têm esse privilégio dos deuses de partilharem relvado com a loucura e com o génio. Nevio Scala estava assim, após o golo do Parma: dava-se por feliz ao mesmo tempo que sentia no coração aquela pontada da injustiça - quase vergonha - de andar a levar a sua equipa a solo sagrado. O público, mesmo gelado ou de luto, respirava de tal forma que punha cubos de gelo ou então mantos de veludo sobre as cabeças de quem nos visitava. Não queria ser Nevio Scala ou aqueles olhos tontos dele em suplício. "E agora que marcámos, o que é que vem aí?"

O que veio foi um fartote de Benfica, que parece que decidiu fazer uma recolha de todos os melhores momentos das centenas de equipas benfiquistas anteriores ao mesmo tempo que se despedia de nós: aquele grupo de gente de 94, vendo agora com distância e saudade, dava todo o ar de sentir de tal forma o clube que já conhecia a nossa tragédia que havia de chegar. Jogavam para escrever Benfica. Tinham pena de nós e por isso decidiram dar-nos tantos momentos e jogos e golos e jogadas e emoções, para que não nos esquecêssemos de que um dia houve este clube que nos fascinou e eternizou crianças até sermos velhos. Compraram-nos futuro naquelas épocas, decidiram deixar memórias tão fortes que nos permitissem aguentar os 20 anos que estavam por vir. 

E nós comprámos, sem medos nem hesitações, tudo o que eles davam e tudo o que eles deixavam dentro de nós - foi assim, até hoje, que viemos respirando e bebendo e comendo, sempre na esperança de ver o Benfica outra vez, com estes bancos de oásis deixados na pele.

Yuran recebe na esquerda, à entrada do meio-campo adversário, com um toque faz cueca sobre o marcador e segue em frente, feliz. Mete no meio em Isaías e - oh, o 2-1! - corre para ir ao encontro da bola, o touro sertanejo não duvida, faz compasso de espera e mete no ucraniano que vai, gazela, perto da área do Parma, de primeira levanta a bola para um Isaías que veio de trás e aparece em vólei falhado e circense, a bola tabela no relvado e vai a caminho de Paneira que, por ter dois cérebros no pé direito, em vez de chutar ou inventar mosntruosos caminhos, a deixa bater primeiro e depois, com a cara da chuteira, abre na direita onde João Pinto a recolhe - sem saber se dá meia-volta e remata ou se dá lugar ao improviso - e deixa para Rui Costa que estava desde o início da jogada a acompanhar o lance com os olhos e com o génio. Depois foi só rematar, simples e para dentro da baliza. Correu desalmado para a bandeirola de canto porque os putos não sabem o que hão-de fazer com o golo, é uma coisa pesada e sem maneiras o golo, não tem coreografia de sentidos, tanto pode dar pirueta como morte instantânea. Deu mãos na cabeça, um abraço do João Pinto e um tapinha do Silvino que por estas alturas já preparava o seu ofício de oficial tapinhador de jogadores. 

Foi um golo que conteve dentro de si todos os golos do Benfica desde o Bermudes e Cosme até àquele segundo. E ainda hoje é esse golo que nos leva ao estádio de bandeiras e cachecóis no corpo. Vamos em busca desse Benfica até ao final dos nossos dias. E esse, por mais que tentem, nunca nos vão roubar.