Os sinais têm vindo a ser evidentes ao longo dos largos anos de miséria existencial em que está metido o Benfica. Começou no princípio dos anos 90, aumentou exponencialmente no final dessa década e atingiu o apogeu nos 13 anos de Vieira no Benfica: os benfiquistas estão cada vez mais parecidos com os portistas no que concerne à submissão acrítica ao líder e sobretudo à forma como preferem desconversar a encarar de frente actos indignos de quem dirige o clube. Dizem que assim defendem o Benfica, uma teoria tão rocambolesca ("vamos todos mentir sobre o que andam a fazer ao Benfica para os adversários não saberem") como réplica do que andam os adeptos do Porto a fazer e a dizer há 30 anos. Que nem se apercebam disso só diz do nível profundo de cegueira e incongruência em que andam inundados.
Até 2009, eu era um benfiquista como todos os outros: triste com a situação desportiva do clube, interrogando-me sobre o paradeiro do Benfica depois daquele autêntico furacão que varreu o clube nas Administrações de Damásio e Vale e Azevedo. Eu era um benfiquista agradecido a Vilarinho e a Vieira por terem recuperado algum do Benfica que estava perdido e quase morto. Estranho, não é? Eu agradecido a Vieira (esse meu ódio de estimação, segundo alguns)? Não pode ser! Pode, pode ser. A lucidez que mantive desde 2009 já a tinha antes: é isso que é difícil de compreender a quem passa o tempo mais preocupado em atacar a opinião dos outros e a defender o seu líder do que a encarar os factos de frente e a, sim, defender o Benfica. Porque defender o Benfica não é dizer que sim a tudo, não é sugerir essa ideia absurda de que "quem lá está é que sabe e merece sempre o meu apoio". Nesse caso, perguntemos a esses benfiquistas: Vale e Azevedo mereceu o vosso apoio? Provavelmente, mereceu. Hoje é que estão esquecidos e já ninguém votou nele. Um clássico que conhecerá nova saga daqui a uns tempos, quando já ninguém tiver votado em Viera. Mas agora há internet, meus caros. Cuidado, muito cuidado. Não vai dar para bicicletas.
E então o que foi que mudou em 2009? Mudou a História do Benfica. Perdeu-se a História democrática do Benfica. Vieira foi o autor do crime - não lhe tenho ódio; tenho demasiado amor ao Benfica e à sua História para conseguir aceitar um acto torpe dessa dimensão; a partir dali, para mim era simples: Vieira não merecia ser Presidente do Sport Lisboa e Benfica. Com a antecipação de eleições de forma a evitar concorrência, Vieira manchou indelevelmente a tradição democrática deste clube. Um clube que, desde a sua fundação, sofreu por manter-se fiel à liberdade de pensamento, de livre arbítrio, de respeito pelos seus sócios e adeptos, um clube verdadeira e totalmente democrático. Antecipar eleições para evitar concorrentes é o acto mais grotesco que o Benfica teve desde 1904 por parte de um Presidente. Aceitar isto como normal? Relativizar, fingir que não vi, meter o pó para dentro da gaveta? Lamento, mas não. Quem prefere não ter princípios faça bom proveito, mas deixe-se ficar no seu cantinho. Não venha querer convencer-me - muito menos com insultos, desconhecimento do clube, insinuações de gente que nunca teve educação na vida - de que estão a defender o Benfica. Estão a defender uma pessoa, não o clube. Um dia talvez o venham a perceber de forma clara.
O que faz um gesto desta dimensão? Podíamos pensar que teria sido uma falha, um pequeno acidente de percurso. Era evidente no próprio dia em que aconteceu esse atentado ao Benfica que aquilo não era um pormenor; aquilo era o princípio dos anos ditatoriais de Vieira. Como um tirano, construiu até 2009 as bases para que a partir dali, já com a lavagem cerebral a uma maioria de adeptos completada, usar o Benfica como quisesse. E foi o que aconteceu: as mentiras sucederam-se (dava-se ao luxo de, num espaço de uma semana, falar em temas estruturais do clube de forma completamente contrária à ideia primeira que tinha defendido); começou a gerar um clima de perseguição aos que discordavam da sua Direcção, atiçou os adeptos para isso (quem não se lembra dos discursos sobre papagaios, garotões, abutres?); preparou convenientemente a mudança de estatutos para tão absurdos requisitos que ele próprio - sócio há pouco mais de uma década, ao contrário do que diz (só mais uma mentira no largo rol) - não os cumpre, ao mesmo tempo que inviabilizava a possibilidade de Rui Costa poder ser candidato à Presidência. Apoiou - por duas vezes! - o corrupto Fernando Gomes para os órgãos de poder, não abdicou das relações com Salvador e Joaquim Oliveira, sentando-os na tribuna presidencial do Estádio da Luz ou indo fazer estágios para a Pedreira dias depois de os nossos adeptos e jogadores terem sido insultados e agredidos num Braga-Benfica; prometeu, prometeu, prometeu coisas - quase nada cumpriu e o que cumpriu foi sempre muito depois das datas estabelecidas - o Museu é só mais um exemplo. Nas últimas eleições, achou que os sócios e adeptos nem mereciam ter um debate entre os candidatos - claro, para quê? Ia ganhar de qualquer forma, democracia, discussão, argumentos, ideias, projectos? Não é preciso, a malta vai em força votar e dizer "Carrega, Benfica" e "é preciso é apoiar".
As pedras da calçada, o Vale e Azevedo - este argumento valerá quantos anos mais? É que já passaram 13 -, a corrupção - que ele inquivocamente apoia - foram só três esteios da argumentação que foi difundida e prontamente aceite pelos seus admiradores. Todo o conceito filosófico está lá: preceitos ditatoriais à vista de todos. Quase ninguém via, quase ninguém queria ver, mais preocupados em atacar outros benfiquistas ou em falar nos árbitros e na corrupção - que, a propósito, não sei se já repararam, o Presidente apoia inequivocamente. Ninguém via nem queria ver - uns porque não sabiam mais; outros porque lhes interessava - desde tachistas blogosféricos a espinhas-tortas que saíram da oposição para serem comprados a troco de umas Vice-Presidências ou lugares na estrutura. Tudo isto se foi passando nestes últimos 4 anos enquanto alguns iam alertando "malta, olhem bem para a coisa, isto não é normal". Ninguém queria saber, ninguém queria ver.
Em simultâneo com a ascenção do cacique Vieira, ia-se cumprindo a incompetência extrema em termos desportivos, as negociatas estranhas (2 anos depois acordaram para o negócio Roberto? Boa para vocês, mas acho que deviam apoiar o Benfica e meter mais esta para dentro da gaveta), o enriquecimento pessoal do líder. Tudo sob o manto de um Benfica cada vez mais pujante, quase-quase a ganhar coisas. Faltava só um bocadinho. Aquele bocadinho que dá sempre para justificar com factores sobrenaturais, esotéricos, paranormais - este ano foi o minuto 92 (maldito sejas, minuto 92!, se não fosses tu tínhamos ganho tudo); o ano passado foi a arbitragem em Coimbra. No outro foram as primeiras três jornadas e antes do Jesus foi a incompetência dos treinadores - que o Vieira tinha escolhido e queimado mas isso não interessa nada. No fundo, Benfica-Benfica só existe desde 1994 se for para justificar o insucesso desportivo com o Vale e Azevedo e desde 2009 se for para justificar o insucesso desportivo com os árbitros e esse estranho esoterismo do minuto 92.
Tenho uma novidade para vocês: nasceu em 1904, tem um palmarés invejável em termos mundiais (e, espantem-se, o Vieira não tem nada a ver com isto), sempre se pautou por servir e aproveitar o amor, a solidariedade, o empenho, a dedicação dos seus associados, adeptos e simpatizantes, manteve-se fiel aos seus princípios democráticos enquanto o país era varrido por um cacique beato que até o nosso Hino e a nossa cor quis eliminar do mapa. O Benfica, o Sport Lisboa e Benfica, é um clube de uma dimensão planetária vindo de origens humildes - é essa a sua força, é essa a sua génese, é isso que o faz sobreviver. Colocá-lo sob o jugo de um tiranozinho sem noção do que é este clube é matar-lhe a alma, é aniquilar-lhe a mística, é destruir-lhe a existência.
O Benfica hoje é um clube sem identidade - perdeu a que tinha para entrar numa espiral de equívocos, entre o completo insucesso desportivo e a imitação de procedimentos à Pinto da Costa. A portização dos seus adeptos é uma realidade evidente para quem observa a forma como uma larga maioria dos benfiquistas vai aceitando todos estes ataques à tradição democrática do Benfica. A legitimidade de crítica aos portistas por aceitarem títulos corrompidos todos os dias se perde neste colectivo devaneio em que uma larga maioria de benfiquistas entrou, defendendo as acções do seu Presidente como se nada fosse, como se tudo fosse possível. Mas não se enganem: fingindo não ver, escudando-se em desconversas, refugiando-se em argumentos sem sentido, estão a defender única e simplesmente Luís Filipe Vieira, nada mais. E, por favor, nunca digam que estão a defender o Benfica, que a História do nosso clube não merece tamanhas barbaridade e desconsideração.