A palavra populismo é uma prenda para a extrema-direita: razões para deixarmos de a usar
Esta palavra mascara a ameaça, exagera a sua ligação aos sentimentos populares, coloca-a como se falasse em nome do povo e exonera as responsabilidades das elites nas crises. Por Aurelien Mondon e Alex Yates.
Desde a invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021, até à revolta semelhante no Brasil em 2023, os políticos de extrema-direita estão a infringir os ideais democráticos em todo o mundo. Se queremos realmente enfrentar o desafio que representam, temos de deixar de os tratar como atores legítimos e democráticos e, em vez disso, vê-los como a ameaça que realmente são.
Uma parte muito importante deste esforço é também um passo bastante simples. Temos de deixar de nos referir às políticas de extrema-direita como "populistas".
Nos anos mais recentes, a investigação séria sobre o populismo chegou a um certo consenso que torna claro que este é secundário, na melhor das hipóteses, na definição de qualquer tipo de política. As duas principais escolas de pensamento(link is external) discordam amplamente sobre se o populismo é uma ideologia fina que envolve um elemento moralista (ao colocar um povo "puro" contra uma elite "corrupta") ou se é simplesmente um discurso que constrói um povo como sendo contra uma elite, sem qualquer outra especificidade ligada a esses dois grupos.
No entanto, ambas concordam que o elemento populista de qualquer movimento é secundário em relação à política e à ideologia. Os partidos de esquerda e de direita podem ambos utilizar uma retórica populista, mas isso pouco nos diz sobre a forma como efetivamente governam.
Mas o populismo tornou-se, no entanto, uma palavra da moda. Inúmeros académicos surfaram esta onda em busca de financiamento e de citações, muitas vezes sem trabalhar devidamente a literatura sobre o tema(link is external).
Para além da prática académica
pobre, a utilização descuidada da palavra também teve um impacto negativo no
discurso público
1. Mascara a ameaça que a extrema-direita representa
Não deveria constituir surpresa que muitos políticos de extrema-direita, desde Jean-Marie Le Pen, em França, até Matteo Salvini(link is external), em Itália, tenham abraçado o termo “populismo”. Mesmo quando é usado pelos seus adversários como um insulto, os políticos de extrema-direita preferem o termo a outros mais precisos, mas também mais estigmatizantes, como “extremista” ou “racista”.
Isto pode ser testemunhado, por exemplo, na série de seis meses de 2019 do Guardian sobre “o novo populismo”(link is external). Na maioria das vezes, a palavra populismo foi usada nesta série para descrever políticas muito mais sinistras do que a simples oposição entre a elite e o povo. Personalidades políticas como Steve Bannon são muito melhor descritas como extrema-direita ou direita radical. Estes termos não são apenas mais precisos, mas tornam a ameaça que representam muito mais clara do que o obscuro “populismo”.
2. Exagera a força da extrema-direita
Quando utilizamos o termo "populista", criamos frequentemente uma ligação semântica entre a palavra e "o povo". Por isso, quando permitimos que a extrema-direita seja descrita como populista, estamos a insinuar incorretamente que ela está a captar o que o povo quer ou que fala em nome da "maioria silenciosa" – algo que Nigel Farage e outros adoram afirmar.
O mito está ainda mais enraizado pela perceção de que a ascensão do "populismo" é o resultado das escolhas feitas pelas pessoas no fundo da escala sócio-económica – quer sejam definidas como a "classe trabalhadora branca(link is external)", os "deixados para trás(link is external)" ou os "perdedores da globalização". Isto ignora a análise que mostra que grande parte do apoio à política reacionária vem predominantemente de grupos abastados(link is external).
Poder alegar que se fala em nome dos que não têm voz é particularmente útil numa altura de desconfiança generalizada em relação à política dominante, por isso não nos devemos surpreender que os políticos de extrema-direita gostem de ser chamados populistas. Isso permite-lhes apresentarem-se falsamente como a alternativa ao status quo.
3. Legitima a política de extrema-direita
Ao estarem erradamente ligadas ao “povo” através da palavra “populismo”, as exigências da extrema-direita são confundidas com exigências democráticas. Portanto, é agora comum ver os principais partidos absorverem a política da extrema-direita com base no pressuposto errado de que estas ideias são “o que o povo quer”.
Os direitos das comunidades marginalizadas, como os migrantes, os requerentes de asilo, as pessoas racializadas, as comunidades LGBTQ+, as mulheres e/ou as pessoas com deficiência, têm estado todos sob vários níveis de ameaça por parte dos principais intervenientes da elite, seja através de políticas, campanhas políticas ou cobertura noticiosa. Muitas vezes, as pessoas que ameaçam estes direitos beneficiam da pretensão de que estão simplesmente a responder à opinião pública. Os governos supostamente de “centro-direita(link is external)” recebem, portanto, carta branca para adotarem políticas de imigração draconianas. Afinal, é em nome do “povo”.
4. Bloqueia o progresso democrático, distraindo-nos
O hype populista é geralmente acompanhado por um aumento do discurso anti-populista(link is external), que retrata o “populismo” como uma ameaça existencial à democracia liberal. Mal escondido por trás deste uso pejorativo do termo “populismo” está, na melhor das hipóteses, uma desconfiança, se não uma antipatia total, em relação ao “povo”.
Ao culpar “o povo” pelos problemas nas nossas democracias, as elites ficam isentas de ter de questionar o seu próprio papel na facilitação da crise. Podem também utilizar a ameaça muito real representada pela extrema-direita para justificar a necessidade de apoiar o status quo, alertando: “nós somos maus – mas eles são piores”.
O que fazer?
Reduzir a extrema-direita a uma ameaça “populista” permite que o mainstream se isente de responsabilidades. Ao combater a extrema direita, devemos ser honestos sobre as decisões que nos levaram a este momento reacionário. Se o mainstream não assumir a sua responsabilidade, não terá qualquer hipótese de derrotar o monstro que ajudou a criar. Isto aplica-se particularmente àqueles que têm acesso privilegiado à formação do discurso público, como os meios de comunicação social, os políticos e os académicos em menor grau.
O primeiro passo nesta jornada é usar os termos corretamente. Chamar a extrema-direita de “populista” mantém-nos na nossa inércia. Para ativar o sentido de urgência necessário para derrotar estas tendências, temos de ser honestos sobre o tipo de política que vemos diante de nós. Se a extrema-direita ostenta orgulhosamente a insígnia do “populismo”, devemos perguntar-nos como isso a ajuda. Eles sabem que isso lhes confere legitimidade. Por que, então, deveríamos fazer o jogo dos extremistas cuja aversão à democracia tem sido repetidamente demonstrada?
* Aurelien Mondon é leitor de Política na Universidade de Bath. Alex Yates é investigador de Política, Linguagens e Estudos Internacionais na mesma instituição.
Texto publicado no The Conversation(link is external). Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
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