Antes de o Chega garantir a sua
presença no parlamento português, Portugal era muitas vezes citado como parte
do excepcionalismo ibérico. Ao contrário de outros países da
Europa, Portugal (a par com Espanha) retinha uma memória histórica dos tempos
do fascismo, e assim a extrema-direita tinha poucas hipóteses de singrar na
política nacional. Afinal, apesar de uma presença muito esporádica nos media
durante vários anos, Partido Nacional Renovador (PNR) – entretanto renomeado
“Ergue-te!” – ia pouco além de momentos comicamente tristes.
Em menos de uma década, o Chega
liderado por André Ventura tornou-se o terceiro maior partido na Assembleia da
República. Neste momento, apesar da pouca fiabilidade das sondagens, a hipótese
de ter um resultado semelhante ao do PSD não deve ser descartada. Ventura tenta
capitalizar essa ideia quando afirma que a luta para governar Portugal é a três.
As recentes propostas económicas
do Chega podem parecer um rompimento com o legado de contas certas que a
direita diz valorizar. No entanto, traçando o percurso do partido de
extrema-direita, vemos que não deve nada ao socialismo, e que é na
reconfiguração das direitas após as derrotas de Pedro Passos Coelho que
encontramos a sua alma. É na ambiguidade e na arbitrariedade que Ventura
encontra a sua fórmula, cavalgando o ressentimento.
VINDO DO CORAÇÃO DA DIREITA
No último congresso do PSD, Luís
Montenegro afirmou que “não pode ser mais lucrativo estar em casa a receber
subsídios do que trabalhar”. Enquanto comentadores associaram esta frase a uma aproximação
eleitoral ao partido de André Ventura, devemos recuar mais de uma década para
entender o que este slogan significa realmente na atual reconfiguração do campo
da direita
Na campanha para as eleições
legislativas de 2009, Paulo Portas percorreu feiras referindo-se ao
Rendimento Social de Inserção (RSI) como um "subsídio à preguiça". Em
2010, num congresso do PSD, Pedro Passos Coelho apontou aqueles
que, sem encontrar emprego, “ficam em casa à espera do subsídio, e que vivem do
subsídio”. Mais tarde, e em campanha, o mesmo líder partidário disse a uma
desempregada que “uma enxadazinha também lhe fazia bem”. Em 2011, o par
Portas e Passos Coelho formou governo, naquilo que ficou conhecido como o
governo da Troika e que tentou o rebranding sob o slogan Portugal à Frente
(PaF) na sua tentativa de reeleição, em 2015.
A imagem desta coligação ficou
irremediavelmente danificada. Durante a liderança Passos Coelho-Portas, a
economia portuguesa retraiu-se durante três anos consecutivos, o desemprego
ficou acima dos 16% (e o desemprego jovem ultrapassou os 42%), deu-se uma vaga
de emigração como já não se via há décadas (mais de 134 mil só em 2014), houve constantes cortes nos
serviços públicos, decretou-se o congelamento do salário mínimo, as
privatizações tornaram-se a regra, entre outros flagelos. Apesar de em 2015
ainda conseguir uma vitória, o funeral da PaF foi confirmado mais à frente.
É por esses motivos que, agora, os
seus herdeiros diretos, Luís Montenegro e Nuno Melo, decidiram resgatar o nome
de Aliança Democrática (AD) dos anos 1980, uma coligação que teve como objetivo
isolar a extrema-direita de então. Para evitar litígios com o Partido Popular Monárquico
(partido menos votado em 2022, com 260 votos), a PaF integrou o partido na
campanha, impondo uma mordaça
ao seu líder, Gonçalo da Câmara Pereira, notável por justificar a violência doméstica, assumir querer derrubar a República, entre outros episódios comicamente
tristes.
Ao contrário de outros países, a
extrema-direita não surgiu durante a crise das dívidas soberanas, ou mesmo na
sequência da apelidada crise dos refugiados, em 2015. Apareceu quando foi
necessário manter à tona o legado da PaF. Por isso, 2017 é o ano zero do Chega.
Em parte pelo surgimento de André Ventura como figura política de relevo, com a
sua candidatura autárquica em Loures, mas acima de tudo pela morte do passismo
como projeto unificador da direita portuguesa. Se nas legislativas de 2015 o
passismo ficou em primeiro, apesar de não conseguir formar governo, as eleições
autárquicas de 2017 resultaram numa derrota humilhante para o PSD.
Passos Coelho liderou nos dois
anos seguintes uma oposição ineficaz, atrelada à ideia de que a geringonça (o
governo mais bem avaliado deste século) era um golpe constitucional e que iria
levar o país para a bancarrota - “Vem aí o Diabo”. O desfecho foram os resultados
humilhantes do PSD por todo o país, destacando-se os casos de Lisboa e do
Porto, onde nas duas cidades juntas teve menos votos do que Assunção Cristas,
do CDS, em Lisboa. A
derrota trouxe uma hegemonia municipal ao PS sem precedentes e ditou o afastamento
de Passos Coelho da liderança do partido. Se os portugueses tinham dúvidas
sobre se o passismo devia ser despejado em 2015, 2017 confirmou que conviviam
bem com a direita fora do poder.
Depois de falhar a conquista da
autarquia de Loures nessas eleições com o PSD, André Ventura abandonou o cargo
de vereador em 2018. Fê-lo para dar forma ao Chega. Ainda antes disso, em 2017,
chegou a sondar a possibilidade de desafiar Rui Rio (visto como oposição interna ao
passismo) pela liderança do partido. Já o outro filho do passismo, a Iniciativa
Liberal, ganhou fôlego. Carlos Guimarães Pinto chegou à liderança, trazendo
consigo vários quadros da órbita de blogs de direita, como o Insurgente e o
Blasfémias, e outros ligados a quadros institucionais da PaF (como Cotrim
Figueiredo, Pedro Silva Martins ou Henrique Gomes). Seria com estes que
alcançaria o parlamento. As coincidências e as diferenças entre os dois
partidos tornam impossível contar a história do desenvolvimento do Chega sem
falar dos liberais.
As eleições legislativas de 2019
e 2022 confirmaram a reconfiguração da direita: os setores mais radicais da
burguesia portuguesa entenderam que o duo PSD-CDS seria incapaz de tomar de
novo o poder, pelo menos sem uma reaproximação ao centro.
Nesse sentido, o súbito vigor da
IL, até à altura quase insignificante, e a criação do Chega cumpriram duas
funções. Em primeiro e no imediato, domesticar o PSD, condicionando uma
liderança de Rui Rio que procurasse o centro político e denunciasse o legado de
Passos Coelho. Em simultâneo, tentar abordagens políticas que, apesar de já
serem ensaiadas no PSD e CDS, precisavam de novos projetos para serem levadas
às latitudes desejadas. Mais do que um fenómeno de competição eleitoral, a
pulverização da direita sinalizou um experimentalismo em que cada parte se
complementou para tentar expandir a sua base social sem perder os fiéis da PaF.
Tal como admitido por Ventura no debate televisivo com Montenegro, “saí do PSD
para que a direita tivesse maioria”.
Enquanto o Chega é um complemento
ao PSD, de onde Ventura saiu depois de se ver sem espaço para competir pela
liderança contra Rui Rio, devemos olhar para as bandeiras da IL para
entendermos melhor o desenvolvimento do Chega.