Rubens Gabriel Prates entrou na
esquadra do Martim Moniz, em Lisboa, por volta das 10 horas da manhã. Oito
horas depois entrou no hospital com escoriações nos dois braços, dores agudas
nas pernas e suspeita de fratura no braço esquerdo. O jovem de 18 anos acusa
agentes da PSP de o terem torturado e apresentou queixa-crime no DIAP de Lisboa.
João Biscaia | Ricardo Cabral Fernandes | Setenta e Quatro
Não sabia do filho há horas, até
que no Comando Metropolitano da PSP, em Moscavide, lhe disseram que tinha sido
transportado de ambulância para um hospital em Lisboa. Passava das 19 horas
daquela quinta-feira quando Karina de Paulo entrou nas urgências do Hospital de
São José. Dirigiu-se de imediato ao atendimento e, enquanto esperava, olhou em
redor e viu o filho a um canto, sentado numa cadeira de rodas e com um polícia
de pé ao seu lado.
Algemado, Rubens Gabriel Prates
tombava a cabeça sobre a mão direita, de olhos fechados, e enrolava com um dedo
uma madeixa do seu cabelo encaracolado. A primeira intenção de Karina foi
alcançá-lo, mas a presença de um agente fê-la parar num momento de dúvida. “Até
ali ninguém me havia dado qualquer motivo para o meu filho estar na esquadra de
Moscavide, então não sabia se podia ir falar com ele, se atrapalharia a
situação dele.” Pediu desculpa e licença ao agente e agachou-se em frente ao
filho de 18 anos.
Perguntou-lhe se estava bem e
Rubens respondeu-lhe com um olhar vazio. Estava medicado: os médicos deram-lhe
10 miligramas de olanzapina e 5 miligramas de diazepam, um antipsicótico e um
ansiolítico, respetivamente, refere a sua ficha de urgência. A mãe pôs-lhe a
mão no peito, para lhe sentir a pulsação, e reparou que lhe faltava o colar com
o crucifixo que trazia sempre consigo.
Quando Rubens percebeu que tinha
a mãe à sua frente, conta Karina, despertou momentaneamente do torpor e começou
a balbuciar, nervoso: “mãe, não faça nada — eles foram lá a casa, eles vão-me
matar, eles vão matar a senhora”, chorando depois. Ao ouvir isto, o agente que
guardava o jovem brasileiro levou-o para uma sala, onde o deixou sozinho, mas
Pedro, amigo de Karina e uma das duas pessoas que a acompanharam, dirigiu-se ao
agente para pedir explicações.
“Quando me aproximei para
perguntar porque o estavam a esconder”, contou, “quase sacavam dos cassetetes”.
Pedro reparou que os agentes pareciam agitados com a sua presença, de Karina e
da outra testemunha, e as suas exigências em querer saber do estado de Rubens:
“um deles começou a dizer-me que me afastasse, porque se sentia ameaçado; uma
parvoíce”.
A outra pessoa que acompanhou
Karina ao São José foi Lucinda (nome fictício por medo de represálias). Viu-lhe
“as mãos arranhadas e inchadas”, alguns “hematomas e sinais de pancada” na
cara, “um penso num pulso” e os “olhos muito vermelhos”. Mas não havia qualquer
marca de dentadas. Karina, sabendo apenas o pouco que lhe haviam dito, começou
a suspeitar que algo estava errado.
Afastaram-se dos polícias e
Rubens recebeu alta hospitalar, mas o seu destino foi novamente Moscavide.
Afinal, estava detido e teria de passar a noite nos calabouços da PSP até ser
presente a um juiz.
Uma hora antes, quando foi à
procura do filho no Comando Metropolitano da PSP, uma agente disse a Karina que
o filho tinha saído dali de ambulância por se ter “automutilado”. “Não lhe
posso dizer nada, mas a senhora ainda se vai rir”, ter-lhe-á dito a agente. “O
seu filho mordeu-se”, explicou, fazendo um gesto de quem morde a própria mão.
“Ela [a agente] estava desconfortável a falar comigo.” Karina ligou para o
Hospital de Santa Maria e disseram-lhe que ninguém com o nome do filho tinha
dado entrada. Restava o São José.
A história da mordida não batia
certo e Karina permaneceu no São José à procura de respostas. Não as encontrou.
Tentou falar com a psiquiatra que atendeu o filho, mas sem sucesso. Conseguiu
falar com o urologista que lhe deu a alta, “mas ele fez-se de ignorante e nem
me conseguia olhar nos olhos”. “Disse que não podia fazer juízos de valor sobre
a natureza das lesões e que só trata as pessoas”, afirmou Karina. O médico
ter-lhe-á dito que apenas verificou que Rubens “tinha escoriações nos braços e
que tinha chegado com uma tala num deles, mas que não havia fratura”.
A ficha de urgência confirma que
Rubens deu entrada no hospital às 18h48 com “escoriações em ambos os membros
superiores”, queixas de dores nos membros inferiores e com uma tala no braço esquerdo,
“colocada por bombeiros”. Um exame de raio-x confirmou que não havia fratura,
mas no relatório é diagnosticada uma “dor aguda com trauma”.
Antes de ser visto por um médico
da pequena cirurgia, Rubens foi observado por uma médica psiquiatra. A razão de
o levarem ao hospital terá sido “agitação psicomotora com instabilidade
emocional”. A ficha de urgência alega que Rubens se tornou agressivo dentro da
cela em Moscavide e que se “automutilou com latas”, contrariando a versão de
que se teria mordido. Na mesma ficha, os médicos relatam ter-lhe feito uma
“limpeza e desinfeção de feridas”, dando-lhe alta às 20h48 de 17 de novembro de
2022. Rubens passou precisamente duas horas no hospital.
Sem conseguir obter respostas,
Karina desistiu e, acompanhada por Pedro e Lucinda, regressou a casa. Ao
chegarem, viram roupa espalhada pelo chão, plantas desenterradas dos vasos,
loiça fora do sítio: toda a pequena casa, uma subcave em Arroios, próxima do
Banco de Portugal, virada de pantanas. Só no dia seguinte, depois da audiência
do filho em tribunal, é que descobriu o que tinha acontecido: Rubens tinha sido
detido entre as 9h30 e as 10 horas, levado para a esquadra do Martim Moniz,
supostamente agredido, forçado a autorizar uma busca a sua casa, levado para
Moscavide e depois para o hospital, onde o encontrou. Para Karina, passou “um
dia de inferno, um dia de surra”.