"O livro deverá dar ideia de um outro jornal, mostrar como, durante um ano, eu me esforcei para realizar um modelo de jornalismo independente de qualquer pressão, dando a entender que a aventura acabou mal porque não era possível dar vida a uma voz livre. Para isto, preciso que você invente, idealize, escreva uma epopeia, não sei se me faço entender..." É esta a proposta que Simei, o diretor de um jornal que nunca irá sair, faz a Colonna, um jornalista e escritor pouco conhecido, que ronda os cinquenta anos: que seja uma espécie de ghost writter do livro que publicará após a experiência gorada, enaltecendo a sua dedicação ao projeto de jornalismo livre e independente. Que, está bem de ver até pelo teor da proposta, é mera ficção - os números zero do jornal serão financiados por um tal de comendador Vimercate, um indivíduo que tem um império multifacetado entre hotéis, casas de repouso, televisões locais e publicações variadas, mas cuja ambição desmedida pretende levá-lo mais longe, nomeadamente a entrar no mundo da alta finança, como por exemplo em bancos, grandes jornais diários ou canais televisivos. Os números zero do referido jornal servirão assim os seus interesses, podendo eventualmente ser mostrados às pessoas certas, em momentos oportunos. Como forma de pressão, para não falar em chantagem...
É assim que de um dia para o outro a redação do "Amanhã" se instala no open space de um palácio no centro de Milão, onde se cruzam jornalistas que acreditam piamente em todas as teorias da conspiração havidas e por haver, que apesar da sua inteligência são despachados para a astrologia e necrologia pelo facto de serem do sexo feminino, ou até aquele que se desconfia ser espião não se sabe bem de quem, mas que convém tratar com algum cuidado. Nenhum destes elementos está a par do contrato entre as "chefias" e Colonna, também ele um pobre diabo que acaba por aceitar o seu humilhante papel, para aumentar o seu até então parco pé de meia.
Se o romance de Umberto Eco tivesse sido escrito no tempo em que decorre a ação (de 6 de abril a 11 de junho de 1992) poder-se-ia dizer que se tratava de uma premonição de como muitos meios de comunicação social iriam descambar numa espécie de pasquins dos poderosos, que através deles tentam influenciar a opinião pública. Mas não, o escritor escreveu o livro em 2015, pelo que no fundo retrata ironicamente uma realidade cada vez mais notória, explicando também o descrédito que alguns desses meios hoje têm junto do grande público ou, pelo menos, do mais informado. Em suma, como a contracapa do livro indica "este é o manual perfeito para o mau jornalismo que, gradualmente, nos impossibilita de distinguir uma invenção de um directo".
A temática pode não ser muito original, mas a história em forma de romance aligeira um pouco a crítica evidente, enquanto a ironia sempre patente nestas 163 páginas contribui para tornar a leitura mais prazeirosa, quiçá até um pouco alucinada. Muito bom!
Citações:
"A questão dos telemóveis não pode durar. Primeiro, são caríssimos e só poucos têm meios para os comprar. Segundo, as pessoas irão descobrir em breve que não é indispensável telefonar a toda a gente a todo o momento, sofrerão com a perda de conversação privada, cara a cara, e no fim do mês vão aperceber-se de que a conta atingiu cumes insustentáveis. É uma moda destinada a esgotar-se no espaço de um ano, no máximo, dois."
"Isto é, seria bom sugerir que, em vez de dizer caralho todas as vezes que se quer exprimir surpresa ou desapontamento, se deveria dizer «Oh, órgão externo do aparelho urinário masculino em forma de apêndice cilíndrico inserido na parte anterior do períneo, roubaram-me a carteira!»"
"A questão é que os jornais não são feitos para difundir, mas para encobrir as notícias. Acontece o facto X, não podes deixar de falar nele, mas embaraça demasiada gente, e então, nesse mesmo número, metes grandes títulos de fazer eriçar os cabelos, mãe degola os quatro filhos, talvez as nossas poupanças acabem reduzidas a cinzas, [...] e por aí fora, a tua notícia afoga-se no grande mar da informação."