“Depois celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota. Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa. Punha-se a toalha grande. Os talheres de cerimónia, os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam-se mil luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham activamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.
Os que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem; os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé de família.
E o nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava um respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela.
Finalmente o bacalhau guisado, como a brandade da Provença, dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia: - Para a mesa! Para a mesa!
Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobra do guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés dos que estavam defronte. Bom aconchego! Belo agasalho! As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude. Que diabo! Exigir mais, seria pedir muito. Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo?
Não é. O primeiro dos convivas que tinha o sentimento dessa imperfeição, era a velhinha sentada ao centro da mesa. Ela, que para nós representava apenas a avó, tinha sido também a filha, tinha sido a irmã, tinha sido a esposa, tinha sido a mãe… No seu pobre coração quantos lutos sobrepostos, quantas saudades acumuladas! Por isso, enquanto os outros riam e conversavam alegremente, a mão dela emagrecida e enrugada tremia de comoção ao tocar no copo, e dos seus olhos cansados despregavam-se silenciosamente duas lágrimas, que ela embebia no guardanapo enquanto a sua boca procurava sorrir e titubear palavras de resignação, de conforto, de felicidade.
Essas lágrimas eram como a evocação do espírito dos ausentes e do espírito dos mortos para aquele banquete. A festa era então interrompida por silêncios graves, pensativos, durante cada um se recolhia em si mesmo e olhava um pouco ao passado e um pouco ao futuro.
Dos que se haviam sentado àquela mesa, em idêntica noite, quantos tinham partido para não voltarem mais! Quantas lacunas dentro dos últimos anos! Dentro de alguns anos mais, quantas outras!
Se havia, como quase sempre sucede, um filho, um neto, um irmão ausente, era em volta da recordação dele que se agrupavam e fixavam esses vagos cuidados dispersos. A mágoa do passado, a incerteza do futuro, acabava por aparecer a cada um sob a figura aventurosa do viajante intrépido ou do trabalhador vigoroso que celebrava aquela noite num país longínquo ou nas águas do mar.
E esse amado ausente era o conviva que cada um sentia mais perto, a essa mesa, junto do seu coração.
suficientemente que o louro menino Jesus que nos sorria no seu bercinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos círios e do perfume das violetas, era o mesmo Deus Só nós, as crianças, é que gozávamos nesta festa uma alegria imperturbável e perfeita, porque não tínhamos a compreensão amarga da saudade nem as preocupações do futuro. Para nós tudo na vida tinha o carácter imutável e eterno. O destino aparecia-nos ridentemente fixado, como no musgo as alegres figuras do presépio. Supúnhamos que seriam eternamente lisas as faces de nossa mãe, eternamente negro o bigode de nosso pai, eternamente resignada e compadecida a decrépita figura de nossa avó, toucada nas suas rendas pretas, no fundo da grande poltrona.
Não tínhamos compreendido ainda todo o sentido do Natal. Não nos haviam explicado descarnado e lívido, coroado de espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e exposto no altar. Repugnar-nos-ia acreditar, se então no-lo dissessem, que o terno e suave bambino de presépio, cercado de amores, de cânticos, de festas, de dádivas, de bonitos, cheio de carícias e de beijos, teria um dia de ser um mártir, um herói, um Deus, mas que para isso haveriam de o perseguir como um rebelde, de o torturar como um criminoso, de o justiçar como um bandido, que ele teria de ser esbofeteado, azorragado, traído, que receberia o beijo de Judas, que seria preso entre os seus discípulos no jardim das Oliveiras, qua mandaria embainhar a espada de Pedro para beber o cálice da amargura, que seria levado de Caifás para Pilatos, que seria condenado, que lhe poriam a coroa de espinhos, que o fariam subir o Calvário sob o peso da cruz, que finalmente o crucificariam entre os dois ladrões aos olhos da sua própria mãe.
Não, a vida não é uma festa permanente e imóvel, é uma evolução constante e rude. O Natal é a festa das lágrimas para todos aqueles para quem ele não é a festa da inexperiência. E todavia pensavam alguns que era útil não deixar de a celebrar. Que importa que o número ou que o nome dos convivas varie em cada ano? Que importa que alguns amados velhos faltem ao banquete? Que importa que nós mesmos faltemos para o ano que vem na festa dos mais novos?
Esta noite de alegria para as crianças será sempre de alguma saudade para os adultos. Assim teremos a esperança terna de sobreviver, por algum tempo, na lembrança dos que amamos – uma boa vez ao menos – de ano a ano.”
(Ramalho Ortigão - As Farpas – Vol. I - O Natal minhoto pág. 71)