Mesmo não apreciando livros ou filmes de terror, abro uma excepção para romances históricos. Por mais gloriosa e feérica que a História nos possa parecer, há sempre algo que nos escapa sobre a vivência dos nossos antepassados, nomeadamente os múltiplos e tenebrosos julgamentos que a Inquisição levou a cabo em Portugal (e também em Espanha, Itália e vários outros países europeus), implantada por D. João III e que perdurou durante cerca de dois séculos, atirando para as fogueiras todos os suspeitos de heresia. E é o tema deste livro de Ana Cristina Silva - simplesmente aterrador!
Assim, ao longo de 186 páginas encontramos Sara de Leão que, acusada de apostasia (abandono da fé cristã), se vê encerrada numa masmorra de Évora durante largos meses. No silêncio e escuridão do cárcere recorda a história da sua família judia, que após fugir de Sevilha durante o reinado dos reis católicos (D. Isabel de Castela e D. Fernando de Aragão), se instala em Alenquer. A sua avó, Ester Abecanar, então com apenas 4 anos de idade, teria sido posteriormente baptizada como cristã-nova, com o nome de Ester Baltasar, mas mesmo assim as perseguições não cessaram na amarga diáspora do povo judeu.
"Quanto às cabeças das gentes do povo, acontecia-lhes o mesmo que aos estômagos: ambos vazios há demasiado tempo, devoravam com idêntica intemperança alimentos podres e ideias feitas. Com a mesma voracidade com que saciava o bandulho com tubérculos e raízes, enchiam-se as cabeças de ignaras superstições sobre os judeus, os infiéis e as temíveis feiticeiras. Tudo isso porque, como sempre, tinham de se atribuir todas as adversidades do mundo a alguém, e os marranos vindos de Espanha, feitos cristãos tão à pressa, pareciam naturalmente culpados."
Apesar de aterrorizada com os constantes massacres, a família de Sara cumpria em segredo os rituais da sua fé, enquanto - conjuntamente com o poderoso comerciante Francisco Mendes e a sua jovem mulher Beatriz Luna*, "o espírito ou a alma daquela a quem um dia os judeus da Europa chamariam a Senhora, ainda não era mais do que um perfume, mas já se fazia sentir intensamente no ar" - congeminava esquemas para fazer sair de Portugal todos os perseguidos pela Inquisição. A que nem o médico da corte escapara "por causa da sua inclinação pelos astros e pela incerta ciência dos seus presságios", que se revelaram sinistros no futuro do príncipe herdeiro, que veio a falecer, o que foi encarado pelos soberanos como um prenúncio "daqueles sacrifícios mágicos de que as feiticeiras e magos detinham a especialidade", nem o historiador e humanista Damião de Góis, cujas crónicas não agradaram a todos.
Resumindo, a escritora entrecruza personagens reais e ficcionais neste romance, tendo a odiosa figura do Inquisidor o papel de representar a hipocrisia e a pérfida crueldade vigentes na Igreja da época. Ao folhear as páginas deste livro folheamos também um passado histórico, que não se resumiu à epopeia dos Descobrimentos! Daí ter gostado, embora simultaneamente seja deprimente constatar o que o Homem foi (e é) capaz de fazer em nome da religião...
* Beatriz Luna era o nome cristão desta mulher, nascida em Portugal em 1510, que após ter sido perseguida por vários países do continente europeu se instalou em Constantinopla, onde finalmente pôde professar a sua religião abertamente, voltando a usar o seu verdadeiro nome judaico: Grácia Nasi. O facto de ter herdado uma enorme fortuna do seu marido, aguçou ainda mais o apetite dos seus perseguidores!