As saudades que eu já tinha de ler um livro de capa e espada! Zorro, D' Artagnan e os mosqueteiros Athos, Aramis e Porthos, Ivanhoe e Robin dos Bosques a esgrimir as suas espadas em favor dos oprimidos e em defesa do seu bom nome, face a múltiplos adversários mal intencionados e malvados, pois, há quanto tempo? Desde as carteiras de liceu, fora um ou outro novo remake cinematográfico, que se foi espreitar mais por curiosidade, pois a história está visto que se sabe de cor e salteado. Então, a esta fila de heróis, junta-se agora o capitão Alatriste...
O primeiro facto digno de nota nas suas 173 paginas é que, ao contrário das histórias ficcionais de Alexandre Dumas, Walter Scott ou do mais desconhecido Johnston McCulley, o enredo do livro enquadra-se numa época específica e muitos dos seus personagens são reais, sendo que só a trama principal é obra da imaginação do autor. Mais, essas personagens não são só reis, rainhas, príncipes e princesas, mas os membros da corte, os tenebrosos inquisidores, os aguazis (oficiais de polícia), militares, poetas, dramaturgos e pintores da época, com os quais o nosso capitão confraterniza amiúde na Taberna do Turco. Assim, não sendo um livro de História, retrata-a parcialmente, dando também a conhecer a mentalidade das gentes daquele tempo, aparentemente tão tementes a Deus, mas cuja ambição desmedida provoca múltiplos conflitos e atentados. E é aí que entra o nosso capitão, que de capitão só tem alcunha: "Não era o homem mais honesto nem o mais piedoso, mas era um homem valente. Chamava-se Diego Alatriste y Tenorio e tinha lutado como soldado nos antigos terços nas guerras da Flandres. Quando o conheci sobrevivia em Madrid alugando os seus serviços por quatro maradevis em trabalhos de pouca glória, amiúde na qualidade de espadachim por conta de outros que não tinham a destreza ou o arrojo para solucionar as suas próprias querelas."
É assim que certo dia o capitão e um assassino italiano são confrontados perante dois cidadãos embuçados e de alto cargo, que lhes encomendam o serviço de pregar um valente susto a dois ingleses e de lhes roubar a documentação que deverão entregar num local estipulado, em troca de uma boa maquia. Mas a questão complica-se, pois se o funcionário mais importante avisa que o serviço não é para matar nenhum dos homens, já depois deste sair surge o inquisidor frei Emílio Bocanegra a exigir a morte de ambos, ameaçando-os de lhes pôr a Inquisição à perna em caso de incumprimento. Quando está prestes a executar um dos britânicos, algo faz estacar Alatriste, que não só os salva da morte certa, como impede o italiano de a intentar. E agora, como é que o capitão se vai safar das garras da Inquisição ou de apodrecer com os ossos na prisão, por ordem de um alto funcionário do reino?
Há muito que tinha curiosidade de ler Arturo Pérez-Reverte e, como eu, alguns companheiros do Clube de Leitura - que recentemente se alargou a mais dois elementos, daí já não sermos só "meninas" - pelo que a leitura agendada calhou neste "O Capitão Alatriste", o primeiro de uma série de aventuras deste herói por terras de Espanha no século XVII, em pleno reinado filipino. Gostei da escrita, onde por vezes intercala alguns versos genuínos dos poetas daquele tempo (supostos companheiros de tertúlias do capitão), da narração estar a cargo de um puto de 13 anos (Íñigo Balboa, pajem do capitão) que por vezes não entende a realidade que o rodeia, de nos dar a conhecer as intrigas da corte, da análise que não deixa de fazer à sociedade da época, além da história que, não sendo igual à dos clássicos, também não destoa do género. Destaque-se ainda que se supõe que o escritor resolveu escrever este livro ao constatar, no livro de História da filha, que este período tão conturbado não merecia mais de página e meia... En garde!
CITAÇÕES:
"Uma Espanha ainda temível no exterior mas que, apesar da pompa e do artifício, do nosso jovem e simpático rei, do nosso orgulho nacional e dos nossos heróicos feitos de armas, se deitara a dormir confiante no ouro e na prata que traziam os galeões das Índias. Mas esse ouro e essa prata desapareciam nas mãos da aristocracia, do funcionalismo e do clero, preguiçosos, corruptos e improdutivos, e esbanjavam-se em empresas vãs, como a manutenção da dispendiosa guerra reatada na Flandres, onde colocar um pique, ou seja um novo piqueiro ou soldado, custava os olhos da cara. [...] Aragoneses e catalães escudavam-se nos seus foros, Portugal continuava preso por alfinetes, o comércio estava na mão de estrangeiros, as finanças eram de banqueiros genoveses, e ninguém trabalhava excepto os pobres camponeses, exauridos pelos cobradores da aristocracia e do rei."
"Nem ele [Felix Lope Vega Carpio], nem dom Francisco de Quevedo, nem Velázquez, nem o capitão Alatriste, nem a época miserável e magnífica que então conheci, existem já. Mas resta, nas bibliotecas, nos livros, nas telas, nas igrejas, nos palácios, ruas e praças, a marca indelével que aqueles homens deixaram a sua passagem pela Terra. [...] Mas o eco das suas vidas continuará a ressoar enquanto existir esse lugar impreciso, mistura de povos, línguas, histórias, sangues e sonhos traídos: esse cenário maravilhoso e trágico a que chamamos Espanha."
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A próxima sessão do Clube de Leitura foi agendada para dia 12 de Maio, com o livro "A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol", de Haruki Murakami.