sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Pela primeira vez desde o 25 de abril, “os filhos podem ter uma educação pior que os pais”. E a culpa é de "todos nós"

Um investigador, um professor e um aluno concordam que há muito a mudar na educação em Portugal – nomeadamente, em temas como a disciplina de cidadania ou os manuais digitais, que deviam ter "menos importância". São necessárias “medidas estruturais”, principalmente para responder à falta de professores que pode aumentar o fosso entre ricos e pobres nos próximos anos.

De quem é a culpa se a escola pública nos próximos anos não ajudar a reduzir as desigualdades? “De todos nós”. Miguel Herdade, especialista em educação e desigualdades e convidado desta semana do Geração Z da Renascença/EuranetPlus, não tem dúvidas de que a falta atual de professores – “o mais importante nas escolas” – pode levar a um “aumento desse fosso [entre alunos mais pobres e mais ricos] e isso vê-se, por exemplo, no resultado dos exames PISA ou TIMSS”.

Este investigador, que também já fundou duas ONG sobre educação, aponta que um aluno atualmente no sexto ano de escolaridade “não teve ainda um único ano normal na escola” – primeiro por culpa de pandemia, agora devido à falta de professores. Esta é uma situação “preocupante” e que é capaz de fazer encravar o elevador social que a escola pode ser para os alunos mais carenciados.

“Por cada ano de escola, vão-se gerar melhores ordenados nessas crianças quando elas crescem. Quando nós tiramos tempo de escola, a sua capacidade de combater a pobreza é menor. Nós estamos a tirar o futuro de não serem pobres e de terem uma vida melhor do que aquela em que nasceram”, defende, para a seguir deixar o alerta: a situação nunca foi tão perigosa como agora.

“Se há coisa que Portugal conseguiu fazer desde o início da democracia foi levar a escola a mais gente e com muito mais cuidado. Agora, 90% dos jovens frequenta o ensino secundário. (…) Mas agora também, pela primeira vez desde o dia 25 de Abril, as crianças podem ter um sistema de ensino pior do que o dos seus pais, o que é uma coisa lamentável”, avisou.

Apesar de assumir que os governantes podiam “fazer mais” para resolver o problema, Miguel Herdade coloca as culpas “em todos nós”. Acredita que a sociedade civil podia ter uma voz mais ativa, “organizar-se em instituições (…) e ajudar outras pessoas”, em vez de arranjar alguém que “arca com todas as culpas”.

Neste trabalho “de pressão” ainda por fazer – “para que os nossos impostos ajudem a melhorar as condições dos professores” –, há discussões que “só nos tiram o foco”. A principal, diz, é a polémica em torno da disciplina de cidadania.

Cidadania e manuais digitais: estamos a dar-lhes demasiado destaque?

Apesar de considerar que a disciplina é “muito importante para uma sociedade onde há cada vez mais adversidade”, Miguel Herdade considera uma “pena” que uma das grandes questões dos últimos anos tenha sido a disciplina de cidadania e não “o flagelo” de problemas que o setor da educação atravessa.

André Simões, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, alinha-se nesta perspetiva. Este académico olha para a polémica “como um problema dos políticos e não da escola” e teme que a revisão da disciplina seja um instrumento “para que os votos não fujam para uma determinada classe política”.

No painel, há também quem lide com a disciplina no dia-a-dia. É o caso de João Lopes, de 17 anos e aluno do 12.º ano de escolaridade num colégio em Lisboa. Aplaude a existência da disciplina que “gira à volta de conselhos e realidades muito práticas” e onde aprende coisas tão diversas e “úteis”, como o que fazer em situações de incêndios e outras emergências.

Ainda assim, e apesar de saber que é uma questão que gera dúvidas, assinala que um dos pontos mais positivos passa pela “autonomia” que as escolas têm sobre a disciplina, nomeadamente quando dão espaço aos alunos para “desabafarem” sobre questões que acontecem dentro da escola e da turma.

“É quando temos a oportunidade de dizer: ‘Esta semana foi uma semana em que tivemos quatro avaliações e sentimo-nos muito sobrecarregados. Como é que podemos melhorar isto? É na cidadania que temos, por exemplo, a oportunidade de entrar em contacto com algumas campanhas de voluntariado ou de ajuda a associações. E tudo isso passa não só por uma parte de valorização académica, que é um bocado o fundo da escola, mas passa também por uma valorização da pessoa”, acredita.

Para Miguel Herdade, há ainda outra discussão que “não é prioritária” nas escolas – a passagem para os manuais digitais. Este especialista diz olhar “com preocupação” para a intenção do anterior governo (que lançou um programa piloto há cinco anos), numa altura em que “há estudos que mostram que os alunos mais desfavorecidos perderam mais de 60% nas aprendizagens do que os de outros contextos” durante o ensino a distância.

Não há evidência científica do benefício da medida, mas João Lopes, cuja escola está integrada no projeto piloto, faz um balanço positivo, “apesar de ainda ser muito cedo”. Há vários meses a fazer “login” nos sites das editoras diariamente, o jovem prefere destacar as mais valias pela entrada dos computadores na sala de aula – e distanciar-se de quem critica “de forma ignorante” a medida.

“Conseguimos obter uma aprendizagem mais diversificada e mais integrada”, resume. “Pode parecer um bocadinho redutor, mas nós vamos sair da faculdade, trabalhar para uma empresa e não andamos à procura de enciclopédias para descortinar como devemos resolver algum tipo de problema. Dizermos que, só por estarmos a expor os jovens a mais tempo de ecrã, estamos a prejudicá-los automaticamente parece-me uma perspetiva ignorante”.

O Reino Unido aqui tão perto como exemplo para o ensino superior

Desde a pandemia, o sistema dos exames nacionais e de acesso ao ensino superior tem sofrido várias alterações, mas, para Tiago Herdade, essas mudanças não tornaram o processo mais justo e equitativo.

Este especialista considera que boas notas e rendimentos andam de mãos dadas e que um sistema que se baseie em sucesso escolar não resulta em Portugal. E puxa da sua experiência para ilustrar o argumento.

“Se formos ao meu grupo do WhatsApp, somos 10 rapazes, de um meio muito privilegiado, lisboeta e todos andámos na universidade”, começa, para logo depois dar um salto para a ponta oposta. “Mas, se olharmos para o mesmo grupo de rapazes nascidos numa região pobre de Portugal e pais pobres, só um desses dez rapazes é que vai andar na universidade”.

O primeiro passo para resolver o problema é, por isso, "desmistificar o problema em Portugal", que não está relacionado com as propinas, mas sim com “toda a desigualdade que começa antes da universidade”, nomeadamente com a dificuldade em suportar custos para alunos deslocados, como a habitação.

Miguel Herdade sugere que, em vez de reduzir as propinas, Portugal adote sistemas, como o do Reino Unido, em que o Estado paga as propinas e os alunos podem ir devolvendo o dinheiro a partir do momento em que são empregados.

Apesar de concordar com a ideia, André Simões é mais ambicioso – e pede ao governo para reforçar o valor das bolsas que concede, a fundo perdido, aos estudantes desfavorecidos.

“Se eu tiver uma família em que o pai ganha mil euros e a mãe também, é um pouco acima do ordenado mínimo, mas eu não sei se é o suficiente para manter um ou dois filhos no ensino superior. O Estado devia fazer mais também no que diz respeito a residências para estudantes. Não são só as propinas que impedem que as pessoas com recursos mais baixos estudem”, defende.

E Bruxelas devia ser mais interventiva na política educativa?

Miguel Herdade é rápido na resposta: não.

“Quem sabe o que é melhor para as famílias e para os alunos é quem está mais próximo deles. Não é, portanto, um sistema muito centralizado. Se nós em Portugal já no queixamos que as coisas são todas decididas no Ministério da Educação, imagina o que seria agora na Europa toda”, argumenta.

Este investigador assinala, no entanto, que Bruxelas pode fazer um esforço por se tornar mais relevante nos estudos sobre educação, relembrando que grande parte dos dados conhecidos hoje são elaborados por outras organizações internacionais, como é o caso dos exames Pisa, organizados pela OCDE.

No caso do ensino superior, e apesar de valorizar o impacto de programas de intercâmbio como o Erasmus+, André Simões pede um reforço das verbas – e, principalmente, a revisão das regras nos programas de investigação financiados por Bruxelas.

“Muitas vezes acontece termos na avaliação professores que não são da área. E dessas notas depende do financiamento que vem em parte do Governo português, mas também em grande parte da Europa. Portanto, deveria haver algumas mudanças nesse sentido, além de não se dever tratar as áreas das letras e das ciências sociais – entre as quais a educação, a pedagogia e a didática – como ciências exatas”, remata.

Fonte: RR por indicação de Livresco

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