Tentemos, então, ir por partes, para percebermos o que se passa na relação das crianças com a leitura. Em primeiro lugar, todas as crianças são inteligentes. Eu sei que uma afirmação como esta pode parecer próxima do básico. Sobretudo porque, em determinados momentos, as diferenças individuais, em relação a certas matérias, são claras e, até, expressivas. Não nos esqueçamos, todavia, que, se todas elas são sensíveis e inteligentes (e, portanto, "apanham" a realidade nos seus mais delicados pormenores) não deixa de ser verdade que o modo, mais ou menos restritivo, como são educadas na família, a forma como a escola lida com as suas dificuldades pontuais, ou o seu próprio perfil, diante de dificuldades muito específicas, que se vão sedimentando, aos poucos, podem contribuir para que as suas "dores", diante de uma disciplina, se vão "enquistando" para que, se prosseguirem dois anos consecutivos, o seu rendimento diante dessa área de conhecimento ou desse conteúdo possa ficar, irreparavelmente, comprometido.
Seja como for, não há crianças que nasçam "limitadas" para o português e para a leitura. Ler com os olhos e ler com o coração são "equipamento de base" - sofisticadíssimo, aliás - de todas as crianças. Por mais que ler com os olhos, com o coração e com a boca sejam um "3 em 1" que, por vários motivos, se pode estragar. Ou porque aquilo que as crianças leem com o coração e com os olhos não tem as devidas "legendas" pela leitura que os pais fazem, a propósito disso, com os seus próprios olhos. Ou porque essas legendas são "exatamente ao lado" daquilo que as crianças leem. Ou porque os pais censuram essas leituras clarividentes dizendo que elas estão enganadas. Ou porque a escola as põe a somar, sobretudo, os sons, num primeiro momento, e só, muito mais tarde, as desafia a interpretar textos. E muitos outros "ous", certamente. Mas se há aspetos para os quais as crianças são, naturalmente, aptas, a leitura virá em primeiro lugar.
Sendo assim, talvez a gestão das dificuldades das crianças diante da leitura, feita pelos pais e pela própria escola - quer em relação à leitura como a propósito de outras áreas de conhecimento - alimenta-as, muitas vezes, mais do que as resolve. Porque, regra geral, se supõe que não há nada que não se resolva com mais horas de trabalho, o que não é verdade, sobretudo quando prevalece uma aparente "distração" a propósito da qualidade e da configuração da própria dificuldade. Porque, vezes demais, essa distração traz mais pessoas para a mesma dificuldade com a leitura ou com o português (outros professores, explicadores, pais ou uma avó que já foi professora), cada uma delas com pontos de vista e formas muito diferentes de pensar cada um dos conteúdos que tenta explicar, transformando uma mesma dificuldade na língua materna em "vários português" diferentes. E, ainda, porque escasseia uma compreensão global da dificuldade relacionada com outros conteúdos o que, sendo feita, nos permitiria eleger a operação mental subjacente ao raciocínio em dificuldade, mais do que as dificuldades avulsas, fazendo com que os problemas no português se resolvessem com a matemática, por exemplo. Ou vice-versa.
Sem prejuízo de voltar várias vezes a este tema, a mim preocupa-me que não seja, frequentemente, claro, para os mais diversos agentes educativos, que as crianças, quando "passam" por um texto, primeiro o sentem, o intuem e o compreendem - por outras palavras, primeiro interpretam - e, só depois (e só por isso) o leem. Quando é assim, preocuparmo-nos, entre outros aspetos, com o número de palavras que elas leem (por exemplo, 80 por minuto, no 3º ano) podendo não ser completamente absurdo, faz com que, em muitas escolas, se cronometre a leitura (!!) muito mais do que se perceba se a leitura será expressiva, em primeiro lugar (com tudo o que isso traz de audiovisual para dentro dela que quase a transforme numa espécie de "geometria descritiva") e, depois, compreensiva (que permite que, em tempo real, uma criança vá do sentimento à palavra). Mais importante que ler depressa é ler "por dentro". E ler bem!
Ora é aqui que tudo se complica na leitura. Antes de mais, porque as crianças não têm tanta educação física e tanta educação musical como deviam. Logo, não sentem tanto o corpo e não se expressam através dele como precisam de o fazer para que a imaginação surja como uma consequência de um corpo que formata sons, formas e significados. Ou seja: movimento ritmado, educado e com som = letras; sons, formas e significado que se ligam = palavras; imagem + significado = símbolos; símbolo + som + significado = compreensão. Se preferirem de um outro modo: é da forma como se educa o corpo e o ouvido que se chega à motricidade fina com que se desenha. É da forma como ele se expressa, em movimentos e formas articuladas, que se vai do som até à relação, e da relação ao significado. Isto é: o desenho e a música estimulam o raciocínio matemático. Ou seja, quem não sabe construir símbolos, não sabe raciocinar a matemática; quem não raciocina a matemática, não constrói um enredo; e quem não é expressivo, não intui a ligação das metáforas entre si nas quais um símbolo assenta, não o descontrói ao mesmo tempo que o sente e não o formula em palavras.
Se a matemática é indispensável para o português, este é essencial para que, com ela, se vá da formulação de um problema à sua explanação e às operações mentais com as quais se resolve. Sendo certo que sem corpo, sem educação visual e sem educação musical o português e a matemática parecem ser enclaves, sem se coligarem num pensamento que abstrai, intui e se expressa de forma sintética (sintético não é lacónico mas intersectável), através dos sentimentos, pela palavra.
Por outro lado, fomos criando esta ideia - um bocadinho pateta - de que as histórias "ficam bem" na infância mas que a sua utilidade será esdrúxula. As histórias são pré-escola! São a "propedêutica" para todas as operações mentais do mundo. Porque formulam problemas e propõem a sua resolução. Porque costuram sentimentos e os legendam de forma expedita e com uma intencionalidade empreendedora. Porque ajudam a pensar de forma económica, ligando complexidade e simplicidade, de uma forma intuitiva e quase óbvia. Ou seja, quem não escuta histórias não lê o mundo! Primeiro, pelos olhos, pelo coração e pela boca dos pais. Para que, depois, as leia por esses instrumentos prodigiosos dos educadores. Quem não escuta histórias, não interpreta. E quem não interpreta, "engasga-se" quando lê!
Para complicar tudo isto, ler implica trazer para dentro de nós outros pontos de vista, outros sentimentos, outras personagens e outros enredos. Logo, implica ir do estranho ao sentido, e do sentido à palavra. Como pode, então, uma criança que não brinca, que não convive com a leitura permanente dos outros, e com a consequente formulação e resolução de problemas que eles colocam, fazer (em tempo real) uma leitura de um texto que a leve a acolher uma estranheza e, mediando-a pela curiosidade, a transforme numa experiência de mistério através da qual se vai do desconhecido à empatia e ao maravilhoso? E como pode, não sendo expressiva e compreensiva na forma como a concretiza, ir da leitura descritiva à compreensão, à interpretação e à síntese - com princípio, meio e fim - que fará dela?
Sendo assim, e considerando o bem precioso que é a leitura, é importante que, num primeiro momento, sempre que as crianças leem, escutem as palavras ditas por si próprias, porque é assim que se vai do som à forma e de ambos ao significado. Por outras palavras: depois de lerem, uma primeira vez em silêncio (para sentirem, intuírem, compreenderem e interpretarem um texto), é importante que tentemos escutar aquilo que elas pensam de um texto. Para que, em seguida, leiam em voz alta, para o pai ou para a mãe (porque a forma como elas leem será meio caminho andado para chegarmos ao modo como interpretam, e vice-versa).
A seguir, (com a ajuda de um marcador fluorescente, se isso ajudar), é bom que uma criança sublinhe, com a ajuda de quem a ensina, as "ideias fortes" que marcam uma determinada ação, e que são balizadas por verbos (sejam quais forem os seus tempos de conjugação). Na verdade, nesse momento, uma criança estará a aprender a fazer uma análise de conteúdo sem ter a noção do que isso representa.
Depois, ganha se pegar nos tais verbos (que, entretanto, selecionou), unindo-os como se seguisse uma daquelas imagens a que se chega depois de se ligar, através de um traço, os pontos 1, 2, 3, etc. Isto é, não se trata de seriar acontecimentos mas de lhes atribuir uma sequência lógica. Por mais empírico que isso seja. Ao ligar acontecimentos, não é pecado que o faça à boleia de um "e depois", e outro "e depois". Na verdade, não se trata de enumerar acontecimentos mas de, podendo parecer assim, levá-la a que passe para um raciocínio mais descritivo.
Para além dos tais tempos verbais, é importante que uma criança associe aos verbos a sensibilidade e a imaginação. Isto é: "o que é que eu senti" ou "do que é que eu gostava" têm um valor rigorosamente idêntico ao dos verbos. Esses conteúdos "vão, portanto, a jogo" em condições de igualdade. Serão, digamos assim, os pontos 4, 5 e 6 que se têm de ligar uns aos outros. Ligando tudo com tudo.
Chegados aqui, estamos em condições de ligar leitura, expressão verbal e expressão escrita. Corpo, "alma" e cabeça. Matemática, português, história, educação visual e educação musical. Por outras palavras, quem pensa que a leitura se faz só de português está enganado. Sendo certo que, quando as crianças a "constipam" aos poucos, se não lhes "desmontarmos" um bocadinho a cabeça, percebendo como é que elas "encaixam" as várias "pecinhas" com que se ligam aos conhecimentos, as suas dificuldades têm muito mais a ver connosco: com o modo como não as percebemos e com a forma como esperamos muito mais que elas venham ao nosso encontro, em vez de sermos nós a aceitar as dificuldades que nos colocam, pensando-as e, com a sua ajuda, resolvendo-as, uma a uma. Ou seja: as crianças só não gostam da leitura quando nós as lemos de "pernas para o ar".
Eduardo Sá