Ringo Nogueira cresceu com défice de atenção agudizado pelo excesso de estímulos que os sons lhe causavam, mas aprendeu a concentrar-se graças à prática de goalball, uma modalidade exclusivamente de invisuais que o acompanhou como brincadeira até aos 12 anos, altura em que se tornou numa atividade séria e entrou para o Clube Atlético Cultural da Pontinha. “O jogo tem três pessoas em campo, uma encontra-se do lado esquerdo, outra no direito e a restante no meio. Temos uma bola com guizos que lançamos pelo chão com a mão. Estamos, mais ou menos, de gatas e o objetivo é não deixar a bola entrar na baliza, recorrendo, sobretudo, à audição e ao tato. O goalball ajudou-me a abstrair-me dos sons. A treinadora colocava música no treino – oficialmente é para estar tudo em silêncio a fim de poder ouvir a bola – e disse ‘não podem ligar à música, mas simplesmente ao som da bola no jogo’. A partir daí, consegui passar a focar-me durante mais tempo e com mais critério.”
No mesmo desporto, mas ao serviço do Sporting Clube de Portugal, Tomás Delfim, 18 anos, nasceu com uma má formação no nervo ótico do olho direito que acabaria com um descolamento de retina. Mais tarde, sofreu uma retinoblastoma no olho esquerdo que lhe roubou a visão aos quatro anos. O pouco tempo que viu ainda hoje o ajuda a orientar-se no espaço. “Atualmente, já não me consigo lembrar detalhadamente de uma cara, de familiares ou de amigos da época, pois já foi há muito tempo e a imagem vai-se perdendo, mas se precisar de imaginar, é mais fácil porque, como consegui ver, ainda tenho ideia da cor da pele, dos olhos, que é algo inconcebível para um cego de nascença. A visão, apesar de efémera, deu-me me bases para conseguir imaginar.”
Dados da Organização Mundial de Saúde revelam que existem 39 milhões de pessoas cegas em todo o Mundo, cerca de 35 mil em Portugal. Para quem nunca esteve privado de visão, é difícil conceber a ideia de que é possível ser feliz, ter uma vida plena e sem vazios quando não se consegue observar o que nos rodeia. Mesmo sem visão ou outra limitação, os estudos da neurociência provam, no entanto, que o ser humano tem uma capacidade de adaptação incrível que lhe permite derrubar obstáculos e adaptar-se ao meio em que se encontra. Com recurso aos quatro sentidos, os cegos conseguem sonhar com imagens e ter uma noção visual do ambiente envolvente. Podem não ter olhos de lince, mas têm a audição, o tato, o olfato e o paladar bem mais apurados do que qualquer um de nós, que cresceu demasiado dependente da visão.
Na verdade, segundo a neurociência, no mundo dominado pela imagem, os invisuais recorrem ao que vivem no dia a dia para compreender aquilo a que não conseguem aceder através do olhar. Alexandre Castro Caldas, neurologista e diretor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, explica como é que estas imagens se formam no cérebro e como, na ausência de visão, os sons também contribuem para este processo: “A imagem mental resulta da ativação, no domínio consciente e por vontade própria das regiões do cérebro que se acionam perante a perceção, pelos sentidos, do objeto imaginado. Ver uma árvore ou ouvir um galo a cantar promove a ativação de um certo complexo de estruturas. Se nós ativarmos as mesmas regiões na ausência da árvore ou do galo, temos a imagem mental”.
À semelhança do que aconteceu com Ringo Nogueira, o goalball, uma modalidade paralímpica, também mudou a vida de Tomás Delfim. “É mágico. Treino três vezes por semana. Quando entro em campo, não existe mais nada à minha volta, só o jogo interessa. O desporto é algo que puxou muito por mim e me desenvolveu nos mais diversos sentidos. Deu-me autonomia e como é preciso ter muita orientação dentro de campo, depois transferi essa capacidade para o exterior. Também fiz amigos, criei relações. Não me imagino a viver sem o goalball.” O momento que recorda com mais felicidade foi a vitória no campeonato europeu de sub-23, na Finlândia, onde a sua equipa ganhou a medalha de ouro. “Não dá para pôr em palavras o que senti. Acabei a chorar de emoção.”
Além de partilharem o fascínio pelo goalball, Tomás e Ringo ainda são colegas no 1.º ano de Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa. A dar asas ao futuro, cada um tem um programa de podcasts com entrevistas no YouTube.
Usar o som para compreender os locais e os outros
O ambiente familiar e o suporte que têm em casa são muito importantes para estes jovens. A mãe de Ringo Nogueira é o pilar e estimula-o a nunca impor limites a si próprio, se estiver em causa o seu desenvolvimento. Mesmo sem a possibilidade de ver, o jovem descreve a progenitora exatamente como ela é: “Uma mulher alta, de cabelos longos…”. “Tento imaginar a pessoa pela voz, no caso da minha mãe, também pelo tato. Ao falar, apercebo-me de que ponto vem a voz, o que me dá uma noção da sua altura. Ao bater com a bengala e o som faz ricochete nos objetos, também me apercebo da sua dimensão, algo a que chamamos de ecolocalização”, partilha.
O mar é outro encantamento de Ringo Nogueira. “Quando estou na praia, não imagino tanto o mar junto à areia, mas o mar profundo por causa de uma viagem que fiz da Holanda para Portugal, onde estive cinco dias sem ir a terra. Aprendi a imaginar o mar porque ouvia as ondas, o vento e foi uma boa experiência que me permitiu ter uma ideia do mar mais profundo.” Viajar muito está no seu horizonte. “Quando terminar o curso, pretendo parar um ano para apenas viajar. O melhor de uma viagem nunca será a paisagem, mas os cheiros, a comida e a língua. Uso também os sons para ter uma adaptação mais rápida ao local. Por exemplo, tento perceber o que alguém está a comer num restaurante pelo som, se estão a picar no prato ou a cortar algo com a faca. Quando enchem o copo, percebo se a bebida tem ou não gás. Mas, para ter esta perceção total do lugar e da sua envolvência, é preciso estar muito atento aos sons e cheiros que me rodeiam. Da mesma forma, quando ouço música, tento imaginar a história. Gosto muito de me pôr no lugar dos outros e quando um tema descreve alguma paisagem ou situação, imagino essa paisagem, mas não com imagens, mas sim pelos cheiros e sons.”
Estimulação constante para evitar a preguiça
Entrar no cérebro de uma pessoa cega para tentar perceber se forma ou não imagens mentais que lhes permite recordar, sonhar ou prever uma situação futura é um enigma, mas com possibilidade de resolução. Sílvia Figueiredo, 46 anos, é professora de Braille, no Centro Helen Keller, há cerca de 20 anos. Desde o nascimento que tem baixa visão, problema que se foi acentuando aos nove anos e, com maior gravidade, depois dos 17. “Sempre fui evidenciando, tal como a maioria das crianças com alguns resíduos visuais, grande interesse por tudo aquilo que brilhava, piscava ou era mais colorido. Felizmente, os meus pais e outros familiares sempre me estimularam para que fosse descobrindo tudo o que me rodeava, utilizando os quatro sentidos que tinha bem desenvolvidos e aqueles resíduos visuais que ainda tenho. Essa estimulação constante, também muito por parte dos professores que me acompanharam, é fundamental para que a visão não se vá tornando preguiçosa.”
Se no caso de Sílvia Figueiredo as imagens se tornaram cada vez mais ténues e difusas, muitos dos alunos a quem ensina braille têm, como Ringo, glaucoma congénito, um processo de invisibilidade total geralmente causado, segundo Luís Gouveia Andrade, médico oftalmologista, “pelo aumento da pressão intraocular durante a vida intrauterina, causando atrofia de ambos os nervos óticos e consequente cegueira”.
Do contacto de duas décadas com alunos e até pela experiência pessoal de ter de se ajustar ao Mundo exterior, Sílvia Figueiredo não tem dúvidas de que “os cegos, mesmo de nascença, conseguem formar imagens mentais, tendo em atenção os cinco sentidos. A diferença é que as pessoas cegas e com baixa visão não têm acesso à visão e utilizam, assim, mais preponderantemente os outros sentidos. A descrição que os outros vão fazendo dos objetos, situações, experiências também ajuda a que os cegos formem uma perceção do Mundo. A tudo o que rodeia essa pessoa, vão acrescentando mais e mais pormenores e enriquecendo a imagem, situação ou experiência”.
Se estimulados, os cegos tendem a absorver toda a informação que lhes permita compreender e imaginar o ambiente. “Ao longo da minha vida, fui desenvolvendo estratégias para me adaptar o mais possível a esta sociedade em que, como se diz, uma imagem vale mais do que mil palavras. Assim, muitas vezes, peço aos que me rodeiam para me descreverem determinados objetos, situações ou atividades que não consigo apreender de imediato e com clareza”, detalha.
Quando os cegos cruzam a informação sensorial com os dados adquiridos na experiência do quotidiano, cada minuto ou instante transformam-se num mapa que se pode aproximar da realidade. Como descreve Luís Gouveia Andrade, “uma pessoa invisual não pode ver, mas consegue perceber quais as relações entre os objetos. Mesmo na ausência de visão, é possível construir um mapa espacial para a localização de objetos, com base em sons, temperaturas e cheiros. E é desse modo que um invisual constrói o Mundo, as memórias e, provavelmente, os sonhos. E, sendo a visão um processo dependente do cérebro, é possível que este produza estímulos que se assemelham a clarões mesmo em quem nunca viu luz”.
Alexandre Castro Caldas desvenda a que mecanismos o cérebro recorre para que, mesmo sem janelas visuais abertas para o exterior, seja possível deixar entrar a luz interior: “Embora na escola nos ensinem que existem cinco sentidos, é mentira, pois temos muitos mais. O cérebro adapta-se à informação que entra. Quando não entra informação visual, o córtex visual participa na visão do Mundo. Forma imagens interiores. Durante a fase de maturação do sistema nervoso, ainda no útero, os invisuais já têm uma quantidade de informação que entra fisiologicamente, uma vez que a visão surge no fim. Quando um bebé nasce e abre os olhos é que recebe uma enorme quantidade de informação que nunca tinha acontecido antes e que é muito organizadora do nosso sistema de memorização. Ficamos muito visuais”.
Sem a capacidade para ver o que o rodeia, continua o neurologista, o cérebro recorre a “três motores de busca” na parte sensorial: “Temos o motor claramente sensorial, dentro dos sentidos; temos outro emocional; e outro racional, que são os organizadores de tudo isto”. E quando falta um, há um processo de reorganização “para ter o máximo de informação possível”. “Com a noção do volume, do movimento, daquilo que vou sentindo, os invisuais conseguem perceber as coisas e ter imagens visuais. Há cegos que são capazes de desenhar e até fazer estudos de cor. Sabem que aquilo é daquela cor e, portanto, apercebem o conceito da cor com uma matriz cerebral. Se perguntarmos a um cego onde é que está uma determinada pessoa, ele é capaz de responder ‘ainda não o vi hoje’ com a maior naturalidade. Eles conseguem adaptar-se ao mundo, mesmo sem a visão”, sublinha Castro Caldas.
No mundo dos sonhos
A capacidade de formar imagens mais ou menos próximas da realidade depende, naturalmente, do grau de visibilidade que se teve ao longo da vida ou da sua ausência total. Sem memórias visuais será, no entender de Luís Gouveia Andrade, difícil que o subconsciente se sirva da visualidade para sonhar. “De um modo geral, admitimos que quem perdeu a visão antes dos cinco anos terá muita dificuldade em processar imagens ou sonhar com imagens. Igualmente, será impossível para alguém com cegueira congénita sonhar com pessoas, formas ou lugares. Mas, mesmo nesses casos, os sonhos podem ser acompanhados de experiências visuais, fruto do modo como o cérebro interpreta a informação que lhe é fornecida pelos outros sentidos. Na realidade, crê-se que o conteúdo dos sonhos de quem não vê seja semelhante ao de quem vê. A diferença reside no modo como esses conteúdos são experienciados.”
Sem o conhecimento da ciência, mas com a experiência no Centro Helen Keller, Sílvia Figueiredo acredita que “os sonhos de quem nunca viu, ou viu muito pouco, desde que nasceu refletem as vivências tal qual são vividas no dia a dia, formando imagens tendo em conta todos os sentidos, exceto obviamente a visão”. E partilha a confissão de uma menina que nunca esqueceu, mas que a ajudou a perceber como este Mundo que pensamos ser de escuridão se ilumina: “Uma vez, uma aluna contou-me que tinha sonhado que via bem e imaginou o Mundo cheio de luz, brilho e muita cor: a cor de laranja era quente como os raios de sol que sentia na praia, o azul era frio como a água do mar no inverno e o branco era fofinho como se fosse algodão”.
A experiência é quase sempre a base dos sonhos dos invisuais. Ringo Nogueira confessa que sonha sempre com situações que já viveu ou outras que gostava de ter. No fundo, como qualquer pessoa dotada de visão, o subconsciente serve-se da experiência como processo de memória e também se alimenta, segundo a teoria do histórico psiquiatra Sigmund Freud, do desejo: “Nos meus sonhos, as imagens são algo irrelevante por que tento sempre guiar-me pelos sons. Um dia, sonhei que não precisava da bengala para andar, mas que tinha um eco sonar como os morcegos. Foi um sonho que me marcou muito porque corria imenso e, quando aparecia um poste, desviava-me. Era algo parecido com a visão, mas usando os sons para me guiar”.
Tomás Delfim ainda hoje desperta as memórias para conseguir sonhar: “Não posso considerar que vejo, mas tenho imagens, cores porque me lembro das cores e, basicamente, o que aparece nos meus sonhos é uma idealização do que acho que são as coisas, juntando com aquilo que sei. Consigo ver pessoas, mas nada é muito concreto. Se idealizar alguém de cabelo castanho, é o que me aparece no sonho. Tenho imagens, cores e, depois de acordar, consigo lembrar-me de imagens”.
Ultrapassar os limites e as noções de belo e feio
Para que os invisuais não se sintam perdidos e fechados num mundo que pode ser de trevas, é preciso, alerta Sílvia Figueiredo, ter o acompanhamento necessário ao longo da vida: “As crianças e os jovens invisuais ou com baixa visão terão tanto maior sucesso escolar quanto maior for o acompanhamento dos pais nas tarefas escolares e, principalmente, proporcionando-lhes o contacto com a vida fora de casa, incluindo o convívio com diversas pessoas e a possibilidade de experienciar situações e sensações. É importante que, na escola e em casa, a criança ou adolescente cego ou com baixa visão seja incentivado a deslocar-se dentro do espaço que o rodeia com autonomia e também na rua, utilizando transportes públicos, etc. Tudo isto é fundamental para que, mais tarde, seja um adulto autónomo, que com ou sem imagens tenha uma enorme facilidade de se orientar no Mundo”.
E ser invisual não é sinónimo de limitação. O ser humano passou a sobrevalorizar a visão, enquanto muitas vezes descura os outros sentidos. “Ao contrário de quem tem visão, damos mais atenção aos pormenores que nos envolvem, mesmo sem que sejam visíveis”, destaca Ringo Nogueira.
A capacidade de percecionar detalhes, de valorizar mais o conteúdo do que a forma, resulta num modo único de encarar a vida e os outros. “Não é por não vermos que não conseguimos idealizar o que é bonito ou feio. Surge pela impressão. Baseia-se muito na sensação que a pessoa transmite através da voz e da personalidade. Somos muito sensitivos e acabamos por desenvolver outros sentidos. O belo e o feio deixam de ser algo físico ou palpável para passarem a ser abstrato. É, aliás, uma vantagem os cegos não julgarem ninguém pela aparência física”, sustenta Tomás Delfim.