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sexta-feira, dezembro 29, 2023

Carminho
* 10 discos de 2023 [3]

* CARMINHO
Portuguesa


A muita antiga dicotomia entre a "tradição" e a "modernização" do fado encontra na trajectória de Carminho uma concretização exemplar, sofisticada, elegante, sem preconceitos — ouça-se O Quarto (Fado Pagem), por ela própria reescrito a partir da música de Alfredo Marceneiro. Aliás, a sua condição de autora de várias letras e músicas é fundamental nesta colecção de 14 temas tratados com grande exigência de produção — por uma vez, a classificação de portuguesa é alheia a qualquer demagogia mediática, já que decorre de uma genuína verdade artística.


* * * * *
Lana Del Rey
Nina Simone

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Novo fado de Carminho

Uma promessa de fado — assim é O Quarto, primeiro tema de Portuguesa, novo álbum de Carminho a ser lançado no dia 3 de março. A letra é da própria Carminho, com música de Alfredo Marceneiro (Fado Pagem) — o video tem assinatura de Giovanni Bianco.

segunda-feira, dezembro 19, 2022

10 discos de 2022 [1]

* Ocupação

Os Fado Bicha — Lila Fadista e João Caçador — são um dos grandes acontecimentos musicais de 2022 (incluindo a sua participação em Casa Portuguesa, o notável espectáculo teatral de Pedro Penim). Em primeiro lugar, através de um discurso realmente original, avesso a clichés, de defesa da representatividade da comunidade LGBTI; depois, pela capacidade de, num misto de ousadia e sensualidade, envolver tal discurso numa revisitação das matrizes clássicas do fado. A nostalgia transfigura-se, neste caso, em celebração do presente e para o presente — exemplo eloquente poderá a sua versão de Fado do Ciúme.


[ Instagram ]

sexta-feira, outubro 22, 2021

Camané na NPR (2015)

Agora que está a chegar Horas Vazias, novo álbum do sempre admirável Camané, eis uma preciosa raridade: o fadista a cantar "apenas" com guitarra portuguesa e guitarra (sem contrabaixo), a cargo de José Manuel Neto e Carlos Manuel Proença, respectivamente. Aconteceu no dia 15 de maio de 2015, numa especialíssima edição dos 'Tiny Desk Concerts', na NPR. No programa estão:

* Abandono (David Mourão-Ferreira, Alain Oulman)
* Cansaço (Fado Tango) (Luís Macedo, Joaquim Campos)
* Saudades trago comigo (António Calém, trad.)

terça-feira, dezembro 01, 2020

Aldina Duarte
— elogio do essencial

Eis o fado devolvido à sua mais radical, e também mais bela, verdade primitiva: uma guitarra portuguesa (Paulo Parreira) e uma viola (Rogério Ferreira), e ainda a esplendorosa aventura de uma voz: Roubados, de Aldina Duarte, é um testemunho fundamental, tornado urgente, de retorno à teatralidade fundadora do fado, celebrando o desafio humano de devolver as palavras à sua solidão primordial — a única que, afinal, pode ser partilhada numa transcrição em disco (ou qualquer outro suporte sonoro), e também no espaço específico de um concerto.
Não simplifiquemos, claro. Não se trata de esquecer, muito menos demonizar, todas as derivações formais através das quais o fado tem sido vivido — e escutado — ao longo de décadas, a começar pelas sofisticadas e alegres variações de Amália. Não podemos esquecer as orquestrações mais ou menos "sinfónicas", como não fará sentido secundarizar as muitas "perversões" experimentadas por exuberantes linguagens que o tempo foi destruindo, a começar pelo teatro de revista.
Trata-se, isso sim, de reconhecer que a essência do fado nada — mas mesmo nada — tem que ver com a sua liofilização para exportação, em grande parte exponenciada por um entendimento pueril da condição de património imaterial da humanidade. Internamente, o principal efeito artístico de tal rótulo foi mesmo a multiplicação de fadistas de dramática incompetência técnica e artística, de facto, sem alma (este é um domínio em que a palavra alma pode e deve ser aplicada com todo o seu valor patrimonial).
Escutando Aldina Duarte em Roubados reencontramos um tempo — aliás, uma duração — em que a vibração da voz não depende da elaboração instrumental que a acompanha. Aliás, dito de outro modo: os instrumentos não "acompanham", antes se definem como elementos vivos de uma cenografia cujo ponto de fuga é sempre a presença cristalina das palavras. Exemplo: Veio a Saudade (António Campos/Jorge Barradas), com Rogério Ferreira na viola.

quarta-feira, julho 01, 2020

Amália, 100 anos

[Museu do Fado]
Amália Rodrigues nasceu no dia 1 de Julho de 1920 — faz hoje 100 anos. A pluralidade e riqueza da sua herança envolve-nos numa fascinante duplicidade: ela encarna uma ideia de canto em que a palavra povo continua a soar como coisa verdadeira, ao mesmo tempo que a sua identidade se tece através do individualismo radical da voz, do ser e do estar. Apenas uma memória breve para este dia: o fado Medo (Reinaldo Ferreira/Alain Oulman) do álbum Segredo (1997), em registo do canal oficial do YouTube.

domingo, abril 05, 2020

Cuca Roseta canta "Lágrima"

Neste ano do centenário de Amália Rodrigues — nasceu a 23 de Julho de 1920, faleceu a 6 de Outubro de 1999 —, Cuca Roseta vai lançar um álbum de homenagem, Amália por Cuca Roseta. Dele se conhece, para já, a versão de Lágrima, fado com letra da própria Amália Rodrigues e música de Carlos Gonçalves: foi tema-título do seu álbum lançado em 1983. Cuca Roseta é acompanhada ao piano por Ruben Alves, sendo o video realizado por José Rato.

Cheia de penas, cheia de penas me deito
E com mais penas, com mais penas me levanto
No meu peito, já me ficou no meu peito
Este jeito, o jeito de te querer tanto

Desespero, tenho por meu desespero
Dentro de mim, dentro de mim o castigo
Não te quero, eu digo que não te quero
E de noite, de noite sonho contigo

Se considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile, estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile e deixo-me adormecer

Se eu soubesse, se eu soubesse que morrendo
Tu me havias, tu me havias de chorar
Por uma lágrima, por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria matar

Uma lágrima, por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria matar

quinta-feira, dezembro 21, 2017

A verdade de Cuca Roseta (2/2)

Com o seu novo álbum, Luz, Cuca Roseta propõe diversos registos, incluindo algumas variações pop: em qualquer caso, é o fado que continua a definir a sua verdade artística — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Dezembro), com o título '"O canto e a sua razão'.

[ 1 ]

Em paralelo com o novo disco Luz, Cuca Roseta publica o livro Poemas (Oficina do Livro), reforçando uma via criativa presente desde o seu primeiro álbum, intitulado apenas Cuca Roseta (2011). Aí, a sua letra de Nos Teus Braços (com música também de sua autoria) surgia como primeiro e exemplar reflexo de um desejo criativo que trabalha a herança do fado através de um misto de nostalgia e inovação [video]. A primeira quadra do primeiro poema do livro, “Versos contados”, será um bom lema: “Do meu fado fiz a letra / E da letra fiz canção / Fado tem sua ciência / Não se canta sem razão”.


Neste trajecto que agora desemboca na luminosidade de Luz (a simbologia não é redundante), deparamos com o mais primitivo fantasma do fado e dos fadistas. A saber: como continuar a tradição num mundo cultural e comercial que, para o melhor ou para o pior, mudou de forma brutal desde que o génio artístico de Amália Rodrigues arriscou todas as experimentações?
Na avalanche que se seguiu ao reconhecimento do fado como património imaterial da humanidade, convenhamos que temos deparado com os mais inconciliáveis contrastes. Acontece que Cuca Roseta se define (também) como uma cantora pop, o que talvez ajude a explicar o fulgor do álbum de estreia, produzido por Gustavo Santaolalla (a meu ver, uma das raras obras-primas absolutas da música portuguesa do século XXI). Sendo Santaolalla um mestre das ligações da música com as imagens de cinema (lembremos apenas a sua banda sonora para Babel, de Alejandro González Iñárritu), talvez possamos dizer que, de modo inusitado e fascinante, o compositor argentino compreendeu as raízes de todo um imaginário português — como se o fado fosse essa perversão que inventámos para sermos estrangeiros dentro da nossa própria história.

sábado, dezembro 16, 2017

A verdade de Cuca Roseta (1/2)

[ FOTO: Orlando Almeida / DN ]
Com o seu novo álbum, Luz, Cuca Roseta propõe diversos registos, incluindo algumas variações pop: em qualquer caso, é o fado que continua a definir a sua verdade artística — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (12 Dezembro), com o título '"O fado é uma forma de procurarmos a nossa verdade"'.

O seu novo álbum, Luz, apresenta contrastes que vão de um velho fado de Amália, Triste Sina (de Nóbrega e Sousa/Jerónimo Bragança) à ligeireza de Balelas (com assinatura sua e de Pedro Silva Martins). Esses extremos reflectem as escolhas artísticas deste trabalho?
Sim, são mesmo as duas músicas mais distantes entre si. Gosto do Balelas, mas é como se fosse a música que está mais “fora” do disco — a editora gostou muito, como se costuma dizer é muito “orelhudo”, e acabou por ficar. Apesar de me sentir fadista — é o fado que me toca de forma mais profunda —, também preciso deste tipo de composições, sobretudo em concerto: há uma seriedade e uma entrega num fado como Triste Sina que necessita do contraste de Balelas. No fundo, creio que é um disco muito eclético. É verdade que depois do Riû (2015) pensei fazer um disco só de fado e estabeleci mesmo um alinhamento. O certo é que começaram a aparecer temas de compositores que admiro muito, como o Pedro da Silva Martins que fez, por exemplo, o Luzinha (que abre o disco) ligados a este conceito de “luz” que atravessa todo o álbum — é uma luz espiritual, interior.

>>> Balelas + Triste Sina [audio].




Há mesmo três temas com os títulos Luzinha, Luz Materna e Luz do Mundo. Aceita que se diga que há uma dimensão religiosa no álbum?
Sim, sou religiosa, sou católica. Há em mim, desde criança, uma dimensão espiritual: gosto da solidão, do contacto com o divino, de rezar, meditar. Este Luz é o meu disco em que a expressão de tudo isso é mais forte. Aliás, tal como acontece agora com Luz do Mundo, todos os meus discos terminam com um tema católico.

No mundo em que vivemos, nomeadamente no consumo da música, as atitudes dominantes serão mais ligeiras, pouco ou nada ligadas a essa dimensão espiritual.
É verdade. Quando dei a ouvir o disco a familiares e amigos, quase todos me disseram que é demais, não faz muito sentido mostrar este lado espiritual. Não concordo, claro, até porque não é esse o tom de todo o disco. Além disso, o fado é uma forma de procurarmos a nossa verdade — vamos buscar os temas e poemas que, num certo sentido, contam a nossa história. É dessa maneira, acredito, que conseguimos chegar aos outros.

Será que pode haver uma verdade do canto, na solidão do estúdio, que não existe nas performances ao vivo?
É bem possível, pelo menos para mim. Em estúdio, sozinhos, por vezes entregamo-nos mais porque, na verdade, ninguém nos vê. No palco, não somos só a alma, somos também o corpo — há uma faceta de “entertainment” que não precisa de existir em estúdio.

A coexistência do fado com temas de outras origens, em particular com a música brasileira, tem suscitado interessantes debates sobre o futuro do fado e até a possibilidade de, desse modo, se apagar a sua especificidade — como encara essa situação?
Não creio que isso vá acontecer. Aliás, a carreira plural de Amália mostra-nos que não há perigo do fado se corromper ou acabar. No meu caso, sempre gostei muito de ouvir o fado tradicional, mesmo não sendo uma fadista tradicional. Canto fado, sem dúvida, mas também canto pop. E este não é um disco inteiramente de fado — por exemplo, Quero (segundo tema do álbum) é pop, mas quando canto Triste Sina não vou deixar que se use um qualquer instrumento que contrarie a essência do tema.

>>> Quero [audio].


As experimentações do fado, em geral, têm aberto novos espaços de divulgação, em particular no estrangeiro?
Creio que sim — e, mais uma vez, o exemplo da Amália é revelador. Nós, fadistas, vamos muito ao estrangeiro e, entre nós, há muitas vezes a ideia de que só cantamos para as comunidades. Ora, já não é bem assim: eu gosto muito de cantar para as comunidades, mas vou mais aos festivais de músicas do mundo — é bom, é positivo sermos embaixadores de Portugal.

domingo, janeiro 24, 2016

Os melhores discos de 2015 [JL]

Aqui, ainda mais do que nos filmes, vejo-me compelido a solicitar a indulgência do leitor: "aquele" disco que outros classificam de incontornável (e não tenho nenhuma razão para duvidar), provavelmente não o ouvi... Em todo o caso, confesso algum cansaço pelo experimentalismo chic que circula um pouco por todo o lado, inevitavelmente favorecido pelos modos virtuais, virtualmente acelerados, de escuta da música.
Por isso também, devo reconhecer, com algum embaraço, mas sem sentimento de culpa, a minha fidelidade aos "velhos" que não páram de nos surpreender (até saíu o 100º álbum oficial de Frank Zappa!). Dito isto, deixo-vos a volatilidade da habitual lista, acompanhada por alguma música com imagens ou, se quiserem jogar com as palavras, alguma música imaginada — Even when the world turns its back on me / That could be a war, but I'm not Joan of Arc...

FADO PORTUGUÊS, Amália Rodrigues
 DANCE ME THIS, Frank Zappa
 REBEL HEART, Madonna
 CREATION, Keith Jarrett
 SAVE YOUR BREATH, Kris Davis Infrasound
 HONEYMOON, Lana Del Rey
 ALGIERS, Algiers
 APOCALYPSE, GIRL, Jenny Hval
 DODGE AND BURN, The Dead Weather
 ABYSS, Chelsea Wolfe

 >>> Lana Del Rey (Music To Watch Boys To) + Algiers (Black Eunuch) + The Dead Weather (I Feel Love (Every Million Miles)).





quinta-feira, maio 14, 2015

Para ler: os 'Romance(s)' de Aldina Duarte

Falei há dias com Aldina Duarte, Maria do Rosário Pedreira e Pedro Gonçalves sobre o álbum Romance(s) que nasce da colaboração entre todos eles. Aldina, a dada altura diz:

"Nunca pensei nem escrevi um disco assim, nem um romance em livro sequer, sempre escrevi e cantei fado a fado, daí a ideia deste disco ser da Maria do Rosário. Enquanto intérprete estive quase um ano a ler a história, poema a poema, sequencialmente e isoladamente, à procura de narrativas e personagens em mim e nos que me rodeiam para poder dar uma vida própria a esta história. Claro que o trabalho de procurar as melodias no espólio musical do Fado Tradicional que melhor poderiam servir o registo emocional da letra é meio caminho andado para uma interiorização mais acertada dos ambientes da história".

Podem ler a entrevista completa aqui.

quinta-feira, junho 27, 2013

Cuca Roseta ou a verdade do fado

JOSÉ MALHOA
O Fado
1910
I - Longa espera: desde o lançamento do primeiro álbum de Cuca Roseta (Cuca Roseta, 2011) não creio que o país se tenha apercebido do facto de ter nascido uma das mais prodigiosas vozes da história do fado — em boa verdade, uma das mais admiráveis cantoras portuguesas, tout court. E por que me atrevo a escrever essa magnânima palavra que é país, porventura incorrendo nos erros de apressadas generalizações? Porque, de facto, quando a população — sobretudo a população com menos hipóteses de diversificação dos chamados "consumos culturais" — está quotidianamente sujeita ao massacre da música pimba e dos horrores da reality TV, é normal (entenda-se: é imposto pela norma) que Cuca Roseta, e muitos mais criadores com um mínimo de seriedade e talento, não sejam assunto preferencial do dia a dia, nem sequer em termos meramente informativos. Que quase todos os políticos, de todas as tendências ideológicas, continuem a mostrar-se indiferentes à gravidade de tal conjuntura — que, muito para além de qualquer caso pessoal, favorece um efeito global de deseducação —, eis o que diz bem do seu vazio de pensamento.

II - Compreende-se, assim, que o concerto em Lisboa para apresentação de Raiz, segundo álbum de Cuca Roseta, não tenha sido um evento badalado por todos os recantos do país. E importa reconhecer, sem dramas, que o Teatro São Luiz (dia 26, 21h00), embora com muitos espectadores calorosos, não esgotou. O certo é que estivemos perante um daqueles eventos que, por si só, define a singularidade de um talento e, sobretudo, a fascinante amplitude da sua expressão.

III - Importa reconhecer que, para Cuca Roseta, o passo não era fácil. Desde logo, porque ela se assume como herdeira de uma tradição que resiste a "modernismos" fáceis, colocando-se sob a referência tutelar de Amália; depois, consequentemente, porque o seu canto dispensa retoques pitorescos, visando o reencontro com uma verdade do fado que nasce da peculiar aliança entre pensar & sentir. Além do mais, não simplifiquemos: sem diminuir, de modo algum, o exemplar rigor da produção de Mário Barreiros, em Raiz, o primeiro álbum de Cuca Roseta tinha resultado de um trabalho invulgar com Gustavo Santaolalla que constitui, por certo, um caso raro de entendimento da universalidade expressiva do fado sem beliscar as suas componentes de... raiz. Aliás, num contexto em que tantas vezes (na música e não só) se exalta de forma simplista e beata a "tecnologia" das mais diversas produções, muito pouco se falou do facto de a produção de Santaolalla constituir uma das contribuições artísticas mais densas, complexas e sofisticadas das últimas décadas da história de toda a música portuguesa.

IV - Acompanhada por Bernardo Couto, Luís Guerreiro e Pedro Viana (guitarra portuguesa), Pedro Pinhal (viola de fado) e Frederico Gato (contrabaixo) — com um tema partilhado ainda com outra fadista, Carolina, e o guitarrista Mário Pacheco —, Cuca Roseta mostrou uma eloquente e complexa maturação do sentido dramático da sua voz. Podemos mesmo dizer que estão praticamente superados alguns desequilíbrios expressivos do concerto que realizou há cerca de um ano, no Tivoli, em particular através de uma maior contenção nas deslocações em palco, a ponto de podermos admitir que, em alguns temas, a performance poderia ainda beneficiar de um microfone fixo. Creio que algum excesso nos elementos "decorativos" (os vasos em fundo e as folhas no chão) desvalorizaram o possível contraste dos dois vestidos usados (cuja presença teria sido intensificada por um fundo neutro), mas, por mim, não gostaria de favorecer o empolar de tais questões — assistimos, não tenho dúvida, a um dos mais belos concertos do ano.

V - O trajecto de Cuca Roseta define-se, assim, a partir de uma imensa vitalidade criativa. E não falo apenas, nem sobretudo, naquilo que será a consolidação de uma "carreira". Falo, isso sim, da fidelidade a um imaginário fadista que recusa diluir-se em eventuais formatações promocionais da world music — nem que seja preciso escrever um fado do contra.

domingo, junho 16, 2013

Cuca Roseta em Lisboa e Porto

O Teatro São Luiz, em Lisboa, e a Casa da Música, no Porto, vão acolher Cuca Roseta para concertos nos dias 26 de Junho e 11 de Julho, respectivamente — tema necessariamente dominante: o segundo álbum da fadista, Raiz, uma proeza tanto mais admirável quanto, para além das subtilezas dramáticas da voz, Cuca Roseta se apresenta também como autora (letra & música) de quase todos os temas. Para ouvir, por exemplo, o Fado do Cansaço.

quarta-feira, maio 08, 2013

Cuca Roseta: tradição e voz

O novo álbum de Cuca Roseta, Raiz, recoloca de forma brilhante a questão da modernidade do fado, aliás, da necessidade de o manter ligado ao mais primitivo da sua tradição — este texto foi publicado publicado no Diário de Notícias (29 Abril), com o título 'A verdade que está na tradição'.

Como definir a voz de Cuca Roseta? Talvez através do cruzamento de quatro valores primordiais: a subtileza romântica de Nat King Cole; a energia dramática de Edith Piaf; a densidade emocional de Chavela Vargas; e ainda, last but not least, o admirável sentido de pose e teatralidade de Frank Sinatra. Razões para evocar estes quatro nomes? Pois bem, vêm da própria Cuca Roseta. Quando lhe perguntei se podia citar uma ou duas referências que a inspirassem, pedi-lhe apenas que não fossem do fado. Sem hesitar, avisou: “Vou dizer-lhe quatro!”
Na verdade, tudo começa na voz. Por mais voltas que possamos dar à tradição, por mais que discutamos a estética, a pertinência ou a legitimidade das variações que têm estado associadas à história do fado nas últimas duas décadas, a sua identidade continua a estar nas vozes. Identidade, quer dizer, raiz – e que o novo e admirável disco de Cuca Roseta se chame Raiz, eis um pormenor cujo simbolismo não será necessário sublinhar.
Que passa, então, no canto de Cuca Roseta? Uma verdade (a palavra é dela) que resiste a todas as formas de pitoresco, e tanto mais quanto o pitoresco se tornou a praga da cultura televisiva dominante (na música e não só). É, acima de tudo, uma verdade que não teme uma relação franca e aberta com a tradição, muito para além dos preconceitos anti-fado que não honram alguns capítulos da nossa história cultural pós-25 de Abril.
Há outra maneira de dizer isto: Cuca Roseta nada tem a ver com os pós-modernismos (que não passam de pós da modernidade) que confundem o fado com os vícios saltitantes, estupidamente sarcásticos, de alguns “shows” televisivos. Podemos, por isso, subscrever o seu sereno voto de “conservadorismo”: a excelência artística vive também destes ziguezagues simbólicos.

>>> Fado do Contra é o single de lançamento de Raiz.

segunda-feira, maio 06, 2013

Cuca Roseta e a raiz do fado (2/2)

Cuca Roseta tem um novo álbum, de seu nome Raiz: pretexto para uma conversa com uma fadista que não abdica da dimensão de verdade que o fado pode conter — este diálogo serviu de base a um artigo publicado no Diário de Notícias (29 Abril), com o título 'É preciso não ter medo de seguir o instinto'.

[ 1 ]

A experiência de palco, depois do primeiro álbum, teve alguns efeitos na concepção deste disco?
É um facto que o Nos Teus Braços era quase sempre o mais aplaudido. E isso surpreendia-me, porque me parece um fado muito simples. Agora, senti necessidade de alargar os meus próprios conhecimentos de música e estou há oito meses a aprender piano... No próximo disco, já vou saber dizer exactamente quais são as notas [risos]. Por isso estou ansiosa de cantar estes novos temas ao vivo: o efeito de Nos Teus Braços não era porque fosse especial; era apenas porque eu me sentia na minha pele. A letra não era, obviamente, tão boa como as de Florbela Espanca ou Vinicius de Moraes, mas era como se me sentisse em casa.

Será que Florbela pode simbolizar um certo sentimento de destino que tem muito a ver, precisamente, com o fado?
É a minha poetisa preferida. Nunca escreverei como ela, mas foi difícil escolher um poema dela para este álbum. No fundo, a letra escolhida (Vaidade) tem a ver com o facto de eu ousar fazer letras e músicas. Cada vez que a digo, começo a chorar: “Sonho que sou a poetisa eleita / Aquela que diz tudo e tudo sabe...”

Foi, por certo, muito diferente da experiência do primeiro álbum, com Gustavo Santaolalla como produtor.
Tenho de reconhecer que, na altura, não tinha a noção do que é gravar um disco. Tive a sorte de poder entregar tudo nas mãos de uma pessoa de tão grande talento. Agora sei como é difícil, a persistência que é preciso. Cheguei a acordar de noite para tomar notas de algumas letras que acabaram por ficar... As ideias podem surgir em qualquer lado, a pessoa está sempre ligada. Além do mais, fizemos o disco todos a gravar ao mesmo tempo. Hoje em dia, por vezes, vai o viola gravar, depois vai o guitarra... E no fado isso, para mim, não é possível – pode resultar bonito, mas fica plástico.

Como foi, e onde foi, a gravação?
Foi de Janeiro a Abril. Gravámos três dias seguidos no Porto e depois, em Oeiras, tivemos mais seis ou sete sessões. É preciso cantar muito os fados para conseguir deixar de pensar e apenas sentir.

Que significa esse “deixar de pensar”?
Depende do que quer dizer “pensar”, não é? [risos] Como fiz tudo, dava comigo a interromper e a dizer que havia uma nota errada... Quando a música ainda não está dentro dos músicos, isso quer dizer que também ainda não está dentro de mim. E há um momento em que é preciso parar de pensar em tudo isso para, realmente, sentir. Por exemplo, acabo sempre com um fado católico: Ave Maria Fadista, no primeiro, e agora Fado da Vida, sobre a morte de Cristo, com letra de José Avillez.

Porquê essa escolha de acabar com um fado católico?
É o meu momento de prece. Houve um trabalho, uma entrega e esse momento de prece é também um agradecimento.

À divindade?
Sim, porque acredito que temos dons e não os temos em vão. Aplicamo-los na procura de uma perfeição que tem a ver com uma verdade que queremos também partilhar com os outros.

Posso pedir-lhe que refira uma ou duas vozes, não do fado, portuguesas ou não, de que goste.
Vou dizer-lhe quatro: Nat King Cole, Edith Piaf, Chavela Vargas e Frank Sinatra.

domingo, maio 05, 2013

Cuca Roseta e a raiz do fado (1/2)

Cuca Roseta tem um novo álbum, de seu nome Raiz: pretexto para uma conversa com uma fadista que não abdica da dimensão de verdade que o fado pode conter — este diálogo serviu de base a um artigo publicado no Diário de Notícias (29 Abril), com o título 'É preciso não ter medo de seguir o instinto'.

De onde vem o título deste novo álbum, Raiz?
Foi um título que demorou a chegar. Por causa do fado Nos Teus Braços, do meu primeiro álbum, as pessoas pediam-me para eu criar mais músicas. Fui compondo temas novos, surgiu um conceito de que não estava à espera e tratava-se de saber como encerrar tal conceito numa só palavra. No primeiro disco, falava do fado como procura da verdade da própria pessoa, de acordo com um princípio de respeito por tudo aquilo que se canta. Aqui, quis ir mais fundo que a procura da própria verdade. Seria “origem”. Ou “essência”. Ficou Raiz.

É uma raiz pessoal, subjectiva?
Sim, mas é mais do que isso: é o encontro com o meu fado. Já cantei outros géneros musicais, mas tenho uma paixão pelo fado. E aqui mostro o que é, para mim, o fado como interpretação, melodia e descrição de experiências de vida.

Em qualquer caso, creio que a primeira interpretação do título terá a ver com uma ideia de regresso a uma raiz, não pessoal, mas do próprio fado.
Também. Há coisas que escrevi porque senti que tinham de estar no disco: uma letra sobre Amália Rodrigues, outra sobre Lisboa, um fado tradicional, um fado menor (que é o meu preferido), uma marcha e uma música mais popular, próxima do teatro de revista. Depois, há uma mais africana, outra mais jazz... mas a raiz do fado tinha de lá estar. É bom adaptarmo-nos ao tempo que vivemos, mas sou também um bocadinho conservadora: por exemplo, não gosto de trazer muitos instrumentos novos: tenho apenas um violoncelo num tema, há cordas no tal hino a Lisboa...

Nos últimos anos, bem ou mal, o fado tem vivido uma história de muitas contaminações, com mais instrumentos para além das clássicas guitarras, algumas variações mais ou menos jazzísticas...
... E não resulta! [risos] Não é por mal que o digo. Aquilo que resulta é... o de sempre! O segredo é esse: o minimalismo, a raiz.

Quando lemos os títulos do alinhamento do álbum, há qualquer coisa de quase didáctico: Fado do Cansaço, Fado da Essência, Fado do Contra... e temos ainda a vaidade, o perdão, a entrega. Como se fossem alíneas de uma filosofia pessoal.
É um bocadinho assim. Cada fado conta uma história diferente da de qualquer outro. O título do álbum podia ter saído de qualquer um deles: esperança, vaidade, perdão, essência, silêncio, vida. O “booklet” do disco, com fotografias de Pablo Corral Vega, foi feito nessa perspectiva: cada fado tem associada uma imagem minha.

Podemos, aliás, perguntar até que ponto alguém que canta (fado ou não) é alguém que inventa uma personagem, como um actor ou uma actriz frente a uma câmara.
É alguém que representa, sem dúvida, mas que representa algo que tem a ver com a sua experiência. Eu não consigo cantar uma letra que, de alguma maneira, não tenha vivido.

Quer isso dizer que há uma dimensão confessional?
Há uma certa exposição, no sentido em que é tudo mais cru e mais transparente. Tem a ver com a tal procura da verdade. É uma exposição interior, em que é preciso não ter medo de seguir o instinto, de sermos únicos. Há uma letra, Fado dos Sentidos, que fala disso: “Não tenhas medo de ser quem és / De teres o mundo contra os teus pés / De ter a coragem a ferro e quente / Firme no chão e no presente / Sê mais que tu, vai mais além / Ao mais alto que o sonho tem.”

[continua]

quarta-feira, fevereiro 27, 2013

Helder Moutinho, opus 4

Chama-se 1987 e é o quarto álbum de Helder Moutinho. Define-se como um trabalho conceptual, sobre o amor, com poemas de João Monge, Pedro Campos, José Fialho e do próprio fadista. O cartão de visita, Venho de um Tempo, é excelente. Aqui fica o video — o respectivo download está disponível no site do Montepio.

quinta-feira, junho 21, 2012

Cuca Roseta: a encruzilhada

1. O concerto de Cuca Roseta no Tivoli foi uma desconcertante ilustração daquilo que pode ser a encruzilhada criativa de uma voz invulgar (por certo das mais extraordinárias de toda a história do fado). Porquê encruzilhada? Desde logo porque, de uma maneira ou de outra, era inevitável antecipar sonoridades ligadas ao admirável álbum da fadista produzido por Gustavo Santaolalla. Depois porque, em vários aspectos, o concerto parece ter sido concebido contra essas sonoridades.

2. O mote foi dado logo a abrir, com uma versão de Rua do Capelão que, em vez da belíssima austeridade do disco, se apresentou com um arranjo saturado e, de algum modo, redundante. Não me interpretem mal: os acompanhantes de Cuca Roseta são invulgarmente dotados, mas dir-se-ia que na produção de quase todos os temas prevaleceu a preocupação de exibir roupagens sonoras algo ostensivas, por vezes francamente supérfluas face aos dotes de tão sublime voz.

3. Tudo isso se agravou através de um "vício" infelizmente corrente em concertos em Portugal: o volume de reprodução do som (da voz e, sobretudo, dos instrumentos) jogava mal com a contenção e, num certo sentido, o pudor que o fado impõe. Em boa verdade, era um volume (até pela sua textura metalizada) adequado para ambiências de pop/rock, não sendo surpreendente que a presença de Pedro Abrunhosa (num belíssimo dueto...) tenha sido o momento em que a concepção sonora do palco mais e melhor se adequou às matérias cantadas. Outro momento em que, apesar de tudo, prevaleceu esse equilíbrio foi a interpretação de Tortura, de Florbela Espanca, com Mário Pacheco (autor da música) na guitarra — por breves instantes, a cumplicidade entre voz e guitarra pôde existir na sua singular depuração.

4. Podemos compreender que o concerto surgia, na trajectória de Cuca Roseta, como um momento emblemático de apresentação/conquista do público lisboeta. E que isso implicaria, inclusivamente, o apoio simbólico de convidados como Abrunhosa, ou ainda Carlos do Carmo e André Sardet. Em todo o caso, há sempre qualquer coisa de potencialmente equívoco em tal estratégia: a intérprete corre o risco de desvirtuar o seu melhor registo (que é, para todos os efeitos, o álbum produzido por Santaolalla), ao mesmo tempo diluindo-se em modelos que, em última instância, lhe são estranhos (mesmo se é verdade que até mesmo a banalidade "romântica" de Sardet parece sublimada pelos poderes encantatórios da voz de Cuca Roseta).

5. Fica, assim, um balanço bizarro, também ele desconcertante: foi um concerto "corrente" de uma cantora absolutamente fora de série (e isso sentiu-se sempre, com ou sem a devida sustentação do aparato técnico). Podemos até considerar que Cuca Roseta — como, infelizmente, a maior parte dos intérpretes portugueses — mostra um limitado trabalho sobre a teatralidade (do corpo e do discurso falado) inerente à presença em palco. Seja como for, essa não é a questão central: a questão central decorre da contradição não resolvida entre o carácter genuíno de uma excepcional intérprete do fado e as características de um espectáculo todo ele limitado pela consagração de uma "ligeireza" de ilusório universalismo.

quarta-feira, novembro 30, 2011

De que falamos quando falamos de fado?

Afinal, quando olhamos imagens emblemáticas como esta (de Stuart Carvalhais), que relação mantemos com as memórias plurais do fado? Participamos de um património em que, de facto, nos reconhecemos ou contemplamos apenas os sinais de algo cuja essência já não conhecemos?
São perguntas tanto mais actuais quanto o recente reconhecimento do fado como Património Imaterial da Humanidade corre o risco de ser confundido com uma efémera agitação mediática. O texto que se segue integrava a segunda parte de um Especial DN sobre o 'Fado a Património'.

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A noção segundo a qual o fado simboliza uma espécie de unidade ideal dos portugueses é uma daquelas evidências que, mais do que nunca, importa discutir. Não que possamos menosprezar os factores que nos aproximem e congreguem, em particular nos domínios específicos de uma cultura popular tão abalada pelo triunfo social do populismo televisivo. Em todo o caso, precisamente contra esse populismo e as suas mais correntes linguagens, talvez seja saudável não embarcarmos em unanimismos redentores que, em boa verdade, apenas acentuam o simplismo de muitas formas sociais de duvidoso ecumenismo.
Não se trata, como é óbvio, de pôr em causa todo o complexo processo que consagrou o fado como património imaterial da Humanidade. Trata-se, isso sim, de regressar à mais básica questão identitária: de que falamos quando falamos de fado?
A história do nosso tão ignorado cinema dá-nos algumas pistas curiosas. Pensemos, por exemplo, no clássico Fado – História de uma Cantadeira, realizado por Perdigão Queiroga em 1947, com Amália Rodrigues no papel central. Pensemos, sobretudo, no modo como esse filme, ainda que menoríssimo no plano formal, acabou por se impor como modelo, não apenas da figura simbólica de Amália, mas da dimensão mitológica do próprio fado. Com as armas narrativas de um cinema limitado pelo seu academismo, Queiroga colocava em cena uma matriz cultural dominada pelo peso incontornável e sedutor de um determinismo musical e nacional: cantar, viver a cantar o fado, ou mesmo morrendo a cantá-lo, seria o cumprimento de um destino.
Muitas décadas depois, em 2008, surgiu Amália – O Filme, de Carlos Coelho da Silva. E o quadro em que tudo acontece é tão diferente que, de alguma maneira, também pode servir de sintoma das muitas convulsões por que passou, não apenas o cinema, mas todo o país. Fado – História de uma Cantadeira era um produto directo de uma conjuntura em que a produção cinematográfica emergia como um valor social e politicamente instalado, e tanto mais quanto a ditadura do Estado Novo tinha apostado no seu desenvolvimento. Amália – O Filme possui um título involuntariamente irónico, já que os seus valores narrativos e toda a sua teia simbólica decorrem de um rotina dramática imposta pelo modelo da telenovela. Na prática, deparamos com um contraste inevitavelmente trágico: no primeiro filme, Amália é um corpo que se confunde com a sua própria voz; no segundo, a intérprete (Sandra Barata Belo) está condenada a seguir o playback que lhe confere uma falsidade corporal que é lei em todos os simulacros televisivos.
Provavelmente, o fado vive nesta encruzilhada social. O facto de, agora, encher manchetes não quer dizer que se mantenha o seu enraizamento no imaginário colectivo. Pode até significar que a sua mais primitiva energia tenha sido devorada pela “festa” mediática que, hoje em dia, tende a enquadrar quase todos os fenómenos colectivos. Podemos formular tal dúvida a partir de uma dicotomia bizarra: é verdade que todos queremos celebrar a gloriosa internacionalização do fado, mas quem sente ainda que a voz rouca de Alfredo Marceneiro [foto] é uma ferida aberta na sua própria alma? Não está na moda falar da alma, mas isso é o nosso fado.