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terça-feira, dezembro 13, 2022

DAVID CRONENBERG:
"Não há maneira de escapar ao corpo" (3/3)

Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O filme chegou às salas poucos dias depois de o cineasta canadiano o ter apresentado no LEFFEST — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema'.

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Cerca de oito anos antes de Crimes do Futuro, publicou Consumed, o seu primeiro romance em que corpo e Internet são questões centrais. Terá sido também um passo intermédio para chegar a este novo filme?
Sim, creio que sim. Na verdade, pensei que poderia não voltar a fazer filmes.

Podemos saber porquê?
Escrever um romance é uma experiência muito solitária, o que nem sempre é uma coisa boa, mas é muito menos “Sturm und Drang”, se assim me posso exprimir... Isto porque um filme envolve centenas de pessoas e não tinha a certeza se queria voltar a isso. Fazer o filme continuava a ser agradável, mas montar o projecto, obter financiamento, discutir o argumento, escolher os actores... comecei a pensar que eram coisas que não queria voltar a fazer. Não que eu considerasse que a minha vida criativa tinha chegado ao fim, mas talvez preferisse escrever outro romance. Até que o Robert Lantos me sugeriu que voltasse a ler o argumento de Painkillers. Não sei explicar de outra maneira. Primeiro, não foi nenhuma postura filosófica, apenas a sensação de que talvez não precisasse de fazer mais filmes... Depois, enfim, deu-me prazer, foi divertido e agora quero fazer mais.

E como foi dirigir Viggo Mortensen, Léa Seydoux ou Kristen Stewart? Escusado será dizer que não seria possível pedir-lhes que interpretassem Crimes do Futuro como se fosse a sua vida de todos os dias...
Não lhes disse isso [riso]! Gostaram do argumento, mas para um actor não é necessariamente todo o argumento que os mobiliza, mas a personagem que vão representar, qualquer coisa de excitante e revelador que a personagem lhes traz. Por isso, não precisámos de ter uma conversa de duas horas em que eu lhes explicasse a filosofia por trás do filme — não funciona assim.

A sua anterior longa-metragem, Mapas para as Estrelas, surgiu em 2014, mas pelo meio há curta que se chama A Morte de David Cronenberg. Nela podemos vê-lo prostrado junto a uma cama onde está o seu próprio cadáver. Apesar disso, e também apesar do título, talvez se possa dizer que é quase uma pequena comédia...
Será uma comédia ou uma tragédia, não tenho a certeza [riso]! Quem tiver uma visão mais pesada do assunto, dirá que se trata de Cronenberg a confrontar-se com a realidade da sua própria morte, o que até pode fazer sentido. A verdade é que nasceu do facto de eu ter participado como actor numa série sobre “serial killers”, intitulada Slasher. A minha personagem morre e, por isso, construiram aquele cadáver, modelado a partir do meu corpo, que acaba numa câmara frigorífica. Como é óbvio, eu não necessitaria de estar na rodagem daquela cena, já que o meu cadáver estava a representar a minha personagem... Mas quando mo mostraram, tive uma reacção muito intensa, senti uma estranha afinidade, afeição e ternura — daí a ideia de me filmar com o meu cadáver. Reconheço esse factor cómico, mas também é verdade que há pessoas que ficam muito perturbadas.

domingo, dezembro 11, 2022

DAVID CRONENBERG:
"Não há maneira de escapar ao corpo" (2/3)

Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O filme chegou às salas poucos dias depois de o cineasta canadiano o ter apresentado no LEFFEST — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema'.

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Poderá ser um jogo de palavras, mas será que, por vezes, a tecnologia é responsável pelos crimes do presente?
Creio que não é boa ideia cair em generalizações. Seria hipócrita dizê-lo porque há tanta tecnologia que me dá prazer. Hoje em dia, há inúmeras pessoas que têm a sua vida no telemóvel: quando perdemos o telemóvel, sobretudo à medida que vamos envelhecendo, é como se perdêssemos o nosso passado — o meu telemóvel passou a ser uma parte importante da minha memória e, nesse sentido, do meu cérebro. Quantas vezes não nos aconteceu não nos lembrarmos do nome de um actor, mas apenas do título do filme em que o vimos... Que fazemos? Pegamos no telemóvel! Ora, não me parece que queiramos desistir disso. A tecnologia alargou a nossa vida, a nossa condição de seres humanos, inclusive na forma como lidamos com as inevitáveis crises de saúde. Eu tenho 79 anos, quase 80, e não sinto a minha idade [riso]! Por isso, não me parece possível considerar que toda a tecnologia seja criminosa... Mas gosto da ideia [riso]!

Recentemente, Matthew Ball publicou um livro intitulado O Metaverso que, com grande optimismo, anuncia uma nova era para a humanidade, considerando que, nomeadamente através de uma complexa evolução do 3D, se irá superar a Internet tal como a conhecemos — quando desenvolve as suas histórias sobre a tecnologia, pensa também nessas questões?
Sim e não. De momento, o Metaverso, tal como nos chega enquanto projecto do Facebook, não me impressiona especialmente, o que não quer dizer que não possa haver uma versão do Metaverso que possa ser útil. Confesso que não penso muito nisso. Durante a pandemia, por exemplo, muitas pessoas descobriram o Zoom e as reuniões com verdadeiros seres humanos foram substituídas por conferências através do Zoom... Claro que sei disso e, em boa verdade, também tirei partido disso, mas não será propriamente a mesma coisa que os dirigentes do Facebook estão a tentar promover como uma filosofia que vai abalar tudo e todos. Para mim, não vai acontecer.

Como realizador, como encara o facto de haver espectadores que vão ver o seu novo filme numa sala escura, outros num ecrã caseiro?
Eis um exemplo: brevemente, vai ser lançada uma nova cópia do meu filme Naked Lunch/O Festim Nu (1991). Para verificar as cores e a qualidade da transcrição para 4K, vi o filme no meu iPad, não precisei de ir a uma sala. Isto porque a qualidade passou a ser magnífica e controlável. Não sinto a falta do cinema e, honestamente, não vou ao cinema: somos obrigados a ver anúncios, depois há pessoas ao telemóvel, enfim, a maior parte das vezes não é uma experiência agradável. Penso que a pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema. E penso também que vai haver cada vez menos grandes ecrãs e grandes salas de cinema. Creio que quem veja Crimes do Futuro no seu iPad terá uma experiência genuinamente cinematográfica.

quinta-feira, dezembro 08, 2022

DAVID CRONENBERG:
"Não há maneira de escapar ao corpo" (1/3)

[FOTO: Paulo Alexandrino]

Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O filme chegou às salas poucos dias depois de o cineasta canadiano o ter apresentado no LEFFEST — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema'.

David Cronenberg esteve no LEFFEST para acompanhar a apresentação do seu filme mais recente, Crimes do Futuro. Revelado no passado mês de maio, no Festival de Cannes, trata-se de um acontecimento tanto mais empolgante quanto o cineasta canadiano reconhece que, depois de Mapas para as Estrelas (2014), encarou seriamente a hipótese de não voltar a filmar. Na raiz do projecto está a ideia “futurista” segundo a qual os corpos podem começar a gerar órgãos “selvagens”, sem função aparente na dinâmica da própria existência humana. De tal modo que as performances do artista interpretado por Viggo Mortensen têm como matéria principal a contemplação desses órgãos. Ou como diz a personagem de Kristen Stewart: “A cirurgia é o novo sexo”. Para o cineasta que encenou muitas e surpreendentes transformações da figura humana — de A Mosca (1986) a eXistenZ (1999), passando por Irmãos Inseparáveis (1988) ou O Festim Nu (1991), este inspirado em William S. Burroughs —, as histórias do presente, tanto quanto as fábulas do futuro, envolvem sempre as relações entre corpos e tecnologia.

No dossier de imprensa de Crimes do Futuro encontramos uma curiosa afirmação de Viggo Mortensen. Diz ele que o filme “poderá ser a história mais autobiográfica de Cronenberg” — como encara esta afirmação?
Creio que ele não está a dizer que o filme seja “autobiográfico” no sentido de estar a contar histórias da minha vida, a minha infância ou o meu dia a dia em Toronto. Obviamente, não é isso. Mas o facto de ele próprio interpretar a personagem de um artista que, literalmente, oferece ao espectador as suas entranhas leva-me a supor que me encara como um artista que dá sempre tudo, absolutamente tudo, sem censura, sem se preocupar com qualquer tipo de política, seja política de género ou política social.

Sente-se assim? Como alguém que dá tudo dessa maneira?
Não exactamente, parece-me que ele estava a tentar ser provocador.

Porque decidiu repetir o título de um filme que tinha realizado em 1970?
Na verdade, foi algo de muito simples. O título original era Painkillers [“Analgésicos”], escrevi-o em 1998. O certo é que, depois disso, houve pelo menos uns quatro filmes Painkillers e mais três séries de televisão com o mesmo título... Robert Lantos, o meu produtor, chamou-me a atenção para tal vulgarização, dizendo-me que iríamos precisar de outro título. Ele próprio sugeriu que “roubássemos” o título ao meu velho filme. Fazia sentido. Esse filme era, realmente, sobre “crimes do futuro”, mas as coincidências ficam por aí: o novo filme não é um “remake” nem uma adaptação.

Ainda assim, talvez possamos fazer um contraponto, dizendo que o primeiro Crimes do Futuro tinha a ver com dermatologia e cosmética, o exterior do corpo, a pele, enquanto agora se trata de ir mesmo ao interior do corpo.
Há alguma verdade nisso, mas alguém me recordou algo que tinha mais ou menos esquecido. De facto, no primeiro filme há uma cena num laboratório em que um homem está a apresentar órgãos do corpo humano que foram criados sem qualquer função específica...

Será que estamos a perder o conhecimento do nosso corpo? Ou aquilo que está em jogo é algum tipo de libertação do próprio corpo?
Não, não creio que alguma vez possamos libertar-nos do nosso corpo. Nem sequer penso que isso pudesse ser uma coisa boa. Provavelmente, já toda a gente me ouviu dizer isto em algum contexto, mas como um existencialista, ou alguém que por vezes se vê como um existencialista, acredito que o corpo é aquilo que somos: é uma coisa fantástica, mas é também a única coisa. Ou seja: não há vida depois da morte, não há vida antes da morte — é algo difícil de aceitar, mas é essa a realidade, a realidade existencial. Ou ainda: não há maneira de escapar ao corpo.

Podemos, então, perguntar: que corpo?
Podemos, de facto, discutir como é que estamos a transformar o corpo. Um animal, na floresta, não controla a sua evolução, mas nós assumimos o controle da nossa própria evolução, talvez sem estarmos muito conscientes do que estávamos a fazer. A começar pelo facto de não aceitarmos que, quando o sol se põe, tenhamos escuridão: temos luzes, temos calor... E estamos a pôr muitos químicos no interior dos nossos corpos, seja porque os recebemos da atmosfera, seja de forma deliberada, como medicina — incluindo nas crianças. Daí as respostas evolutivas por parte do corpo, tentando acomodar tudo isso. Julgo que esse é, de certo modo, o tema de Crimes do Futuro. Seja como for, sem querer ser tão extremado como aquilo que o filme conta, creio que os nossos corpos, os seus órgãos, neurónios, etc., não são nem de longe nem de perto como os corpos gregos, há 3000 anos. Nem sequer como há 200 anos, desde a Revolução Industrial: os nossos corpos mudaram em resposta ao que fizemos ao ambiente, primeiro com as cidades, depois no próprio planeta. Seria interessante que pudéssemos dizer que estamos, agora, conscientes do facto de sermos responsáveis pela nossa própria evolução. E perguntássemos: o que queremos que, realmente, nos aconteça? Será que isso pode acontecer sem ser demasiado perigoso ou catastrófico?

sábado, abril 23, 2022

Informação / desinformação [citação]

[New York Times]

>>> Estou convencido de que, neste momento, uma das maiores razões para os crescentes ataques contra a democracia, nos EUA e globalmente, é a mudança que está a acontecer no modo como comunicamos e consumimos informação. As mesmas tecnologias que tornam possível ligarmo-nos, em tempo real, com praticamente qualquer pessoa do mundo, estão a ser cada vez mais usadas para criar realidades alternativas que espalham o fogo da violência étnica, promovem o autoritarismo e espalham teorias da conspiração. O resultado tem sido uma gradual erosão da confiança nos representantes públicos, nas organizações mediáticas e nas instituições políticas que são necessárias para que a democracia funcione.

BARACK OBAMA
21 abril 2022

segunda-feira, dezembro 02, 2019

"O Irlandês"
— o cinema, a morte, o silêncio

O IRLANDÊS
> na foto: Lucy Gallini e Al Pacino
Em O Irlandês, através de memórias do sindicalismo, da Mafia e da política, Martin Scorsese coloca em cena o equilíbrio instável entre o que somos e o que desejamos ser. Não há nada mais humano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Novembro).

Nas cenas finais de O Irlandês, de Martin Scorsese, Frank Sheeran (Robert De Niro), que foi homem de mão de uma família mafiosa, vive as rotinas de um lar para a terceira idade. Um dia, quando uma enfermeira (Dascha Polanco) verifica a sua tensão arterial, Sheeran mostra-lhe algumas fotografias de tempos remotos. Numa delas está a sua filha Peggy (Lucy Gallini) na companhia de Jimmy Hoffa (Al Pacino), o líder do sindicato dos camionistas de que ele próprio foi guarda-costas e conselheiro. Sheeran pergunta à enfermeira se ela não está a reconhecer Hoffa, figura cuja lenda nacional cresceu tanto mais quanto as condições do seu desaparecimento nunca foram oficialmente esclarecidas. Ela olha para a imagem e não o reconhece — em boa verdade, não sabe quem foi Jimmy Hoffa…
Martin Scorsese
Um grande filme é isto mesmo: um objecto em cujos momentos, mesmo os aparentemente mais anódinos, ecoam as principais linhas de força de uma narrativa que não é possível reduzir às suas peripécias mais ou menos “agitadas”. Neste caso, trata-se de colocar em cena essa duplicidade existencial em que a memória de Sheeran se cruza com o desconhecimento da sua enfermeira. Aquilo que os pode aproximar é também aquilo que os afasta. A saber: as medidas íntimas do tempo.
O Irlandês é uma saga americana que, através da ligação Hoffa/Sheeran, revisita um período convulsivo da história “made in USA” em que a obscura teia de relações entre sindicatos, organizações criminosas e instituições políticas tem como pano de fundo a presidência de John F. Kennedy. Impossível, em qualquer caso, reduzi-lo a um filme de género (sobre a Mafia, precisamente). Desde logo, porque Scorsese não é, nunca foi, um mero “ilustrador” de modelos mais ou menos estáveis; depois, porque através da violência, explícita ou apenas pressentida, que circula pelo filme vamos ganhando consciência daquela ambivalência do tempo, da vulnerabilidade de ser, desejando ser outra coisa.
Em paralelo com o lançamento de O Irlandês, Scorsese tem dado conta do seu desinteresse pelos filmes de super-heróis com chancela dos estúdios Marvel. Infelizmente, nos EUA, a agitação motivada pelas suas palavras foi-se fixando numa expressão que ele usou, considerando que os filmes Marvel “não são cinema”, recalcando duas ideias essenciais ligadas a tal afirmação: primeiro, que a ocupação dos mercados globais liderada pela Marvel está a asfixiar as possibilidades de difusão de todos os filmes que não correspondam aos seus modelos; depois, que nos filmes de super-heróis prevalece um academismo (a palavra é minha) que omite qualquer surpresa ou perturbação, apenas se repetindo os números formatados de um “parque de diversões”.
Ora, o que faz do cinema uma arte nobre é a capacidade de convocar o espectador para uma aventura interior que está para além da banal ostentação de proezas da tecnologia digital (o que, entenda-se, não impede O Irlandês de ser um objecto revolucionário em tal domínio, nas cenas do passado “rejuvenescendo” os seus actores principais, precisamente através dos recursos dessa tecnologia). Através de momentos de contida vibração emocional como o breve diálogo de Sheeran com a sua enfermeira, O Irlandês convoca-nos para ver — entenda-se: viver — o cinema como experiência irredutível, envolvida com os enigmas das relações humanas.
Qualquer filme de super-heróis consegue destruir um planeta inteiro em poucos segundos, multiplicando explosões e ruídos ensurdecedores. De facto, na maior parte dos casos, nada acontece a não ser a aplicação de um preguiçoso programa informático. Vemos as fotografias envelhecidas nas mãos de Sheeran e compreendemos que o labor da memória é também uma forma de desenhar uma barreira entre os gestos do dia a dia e o silêncio infernal da morte. O grande cinema sabe contemplar esse silêncio.

terça-feira, julho 23, 2019

A luz de "O Rei Leão"

Eis um video exemplarmente didáctico. Jon Favreau, realizador de O Rei Leão, analisa os princípios gerais de encenação do filme, por um lado, comparando-o com a versão de 1994, por outro, sublinhando as especificidades do seu tratamento da imagem e, muito em particular, da luz — sem esquecer a contribuição do veterano Caleb Deschanel na direcção fotográfica. Está incluído na série 'Notes on a scene', da Vanity Fair.

sábado, julho 14, 2018

Ingmar Bergman — 100 anos

De que falamos quando falamos de Ingmar Bergman? Um século depois do seu nascimento — a 14 de Julho de 1918, em Uppsala, na Suécia — os filmes que nos legou continuam a acompanhar os nossos silêncios mais radicais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Julho), com o título 'O inferno pode esperar'.

Quando fez aquela que viria a ser a sua derradeira longa-metragem, Saraband, Ingmar Bergman (1918-2007) mostrou-se fascinado pela possibilidade de utilizar câmaras digitais verdadeiramente revolucionárias. Estava-se em 2003 e tais câmaras eram uma excepção, não sendo fácil antecipar, da produção à difusão, a globalização do digital que viria a consumar-se em poucos anos. Bergman usou um conjunto de quatro câmaras HDTV - Thomson 6000, três para rodagem, uma de reserva (na altura, em todo o mundo apenas existiam cinco).
A produção resultava da associação de entidades televisivas de Alemanha, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Itália, Noruega e Suécia (com a Sveriges Television, de Estocolmo, a coordenar o projecto). Em boa verdade, Bergman tomou tais câmaras “à letra”, quer dizer, como objectos específicos de televisão. De tal modo que recusou liminarmente a possibilidade de o filme ser convertido em cópias de película, de modo a garantir a sua difusão nas salas escuras.
Liv Ullmann, protagonista do filme ao lado de Erland Josephson, deu a conhecer tal exigência quando apresentou Saraband, em Outubro de 2004, no Festival de Nova Iorque: sim, era verdade que Bergman autorizara a projecção em sala, mas apenas a partir de cópias digitais — de tal modo que Saraband acabou por ser um título pioneiro na reconversão tecnológica do mercado, sendo exibido em alguns países (incluindo Portugal) através de projecção digital.
Na biografia de um autor como Bergman, na altura um veterano de 86 anos, tal episódio pode parecer um preciosismo técnico. Mas talvez não seja bem assim. Agora que comemoramos o centenário do seu nascimento (a 14 de Julho de 1918, em Uppsala, cerca de 70 quilómetros a norte de Estocolmo), vale a pena lembrar que o seu envolvimento com a televisão foi muito mais importante do que algum fundamentalismo cinéfilo nos pode levar a supor.
A par de Roberto Rossellini, em Itália, ou Jean-Luc Godard, em França, Bergman foi um dos primeiros a encarar a televisão como espaço de produção que importava explorar, por certo em permanente articulação com as linguagens cinematográficas, mas sem recusar as suas especificidades. Afinal, Da Vida das Marionetas, habitualmente encarado como o seu derradeiro trabalho de cinema e para cinema, era uma produção de raiz televisiva e foi rodado em 1980 (durante o seu exílio alemão, motivado por problemas com o fisco sueco). A partir daí, a obra de Bergman é toda ela televisiva, incluindo títulos tão famosos como Fanny e Alexandre (1982) ou Depois do Ensaio (1984), a par de outros menos conhecidos como Na Presença de um Palhaço (1997), prodigioso retrato de um criminoso que utiliza os cenários do hospital psiquiátrico em que está internado para encenar um... filme.
Este simples inventário de títulos envolve uma verdade programática, de uma só vez cultural e política, que o ruído social das efemérides tende a escamotear. A saber: Bergman foi um dos que acreditou na televisão como instrumento de trabalho, logo veículo de expressão, em que a noção de popular poderia não ser cúmplice dos horrores do populismo.
O reencontro das personagens de Saraband — Marianne (Ullmann) e Johan (Josephson) —, três décadas depois do seu divórcio corresponde, afinal, a uma reescrita simbólica da obra de Bergman: Marianne e Johan, interpretados pelos mesmos actores, eram as figuras centrais de Cenas da Vida Conjugal, um filme de 1973 que começou por ser uma... mini-série televisiva.
Dir-se-ia que Bergman organizou a sua visão do mundo através de uma demanda em ziguezague, de uma só vez técnico e artístico. De tal modo que podemos reler a sua obra como uma reescrita obsessiva de algumas inquietações primordiais: de O Sétimo Selo (1957) a Paixão (1969), é a nitidez indizível da morte que se consolida nos gestos humanos; de O Silêncio (1963) a Lágrimas e Suspiros (1972), compreendemos que o corpo que habitamos é também uma prisão de que a divindade não nos quis libertar; enfim, de Luz de Inverno (1963) a O Ovo da Serpente (1977), descobrimos que a divindade se ausentou perante a possibilidade do inferno. Ainda assim, filmar suspende essa possibilidade.

>>> Cena de abertura de Persona/A Máscara (1966).


>>> Cena de abertura de Lágrimas e Suspiros (1972).


>>> Curta-metragem sobre Ingmar Bergman, produção de The Criterion Collection.


>>> Ingmar Bergman em Senses of Cinema.
>>> 17 clássicos de Ingmar Bergman no Sound + Vision.

quinta-feira, maio 24, 2018

Godard em Cannes (aliás, na Suíça)

Cannes, 12 Maio 2018
Memória incontornável de Cannes/2018: a conferência de imprensa de Jean-Luc Godard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Maio), com o título 'Reaprender a olhar com Godard'.

O melhor “filme” de Cannes/2018 dura 45 minutos e pode ser visto em diversos espaços da Net, incluindo o site do festival, o YouTube ou o DailyMotion: é o registo da conferência de imprensa de Jean-Luc Godard sobre Le Livre d’Image (adquirido para o mercado português pela Midas Filmes). Num ritual revelador das maravilhas e ambiguidades do nosso mundo de imagens (e sons), Godard respondeu aos jornalistas a partir de sua casa, na Suíça, via telemóvel [video].
Que aconteceu? Nada a ver com uma celebração beata do fascínio tecnológico. Afinal, o dispositivo virtual (FaceTime, lançado pela Apple em 2010) é uma ferramenta que passou a fazer parte do dia a dia de muitos cidadãos. Para Godard, ainda e sempre um aplicado artesão, trata-se de saber se, através dos instrumentos de que dispomos, alguma comunicação passa ou pode passar. À maneira do ténis, como ele gosta de dizer: quando lançamos a bola, aguardamos a sua viagem de regresso…
Em boa verdade, Godard limitou-se a chamar a atenção para um facto corrente que, por distracção ou cinismo, tentamos esquecer: falamos cada vez menos uns com os outros, iludindo-nos com o facto de falarmos para as imagens dos outros (facultando-lhes também as nossas imagens). O filme Le Livre d’Image constitui uma magistral lição sobre a percepção da história através de tal aparato audiovisual. Lição de olhar, sem dúvida, lição preciosa para pensarmos este planeta triste que transformou o Facebook na forma dominante de “comunicação”.
Claro que a demagogia de cineastas como Nadine Labaki, explorando a “fotogenia” da miséria em Capharnaüm, se vende melhor nas plataformas noticiosas de todo o mundo (o que deixa em aberto a possibilidade de alguma reflexão jornalística sobre esse perverso poder de difusão). Ainda assim, alguns grandes filmes de Cannes partilharam a exigência “godardiana” de perguntar como são as imagens da nossa vida, como vivemos com elas e através delas – melhor ou pior, conhecendo ou ignorando o nosso semelhante.
Tal dinâmica marca, por exemplo, o prodigioso BlacKkKlansman, do americano Spike Lee, centrado na experiência real de Ron Stallworth, um polícia que, em 1979, conseguiu infiltrar-se na organização racista Ku Klux Klan. Pormenor irónico, infinitamente cruel: sendo Stallworth um homem de pele negra (os seus contactos foram sempre feitos por telefone), a moral da história diz-nos que não será possível pensar o racismo sem ter em conta a sua existência enquanto política das imagens. Olhamos, logo fazemos política.

domingo, maio 20, 2018

Na intimidade do Facebook

[TIME]
De que falamos quando falamos do Facebook? Ou ainda: porque é quando especulamos sobre aquilo que o Facebook devia ser, quase ninguém se confronta com aquilo que o Facebook é? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Maio).

Vejo e revejo as imagens de Mark Zuckerberg, sentado, em postura oficial, a responder a uma comissão do Congresso dos EUA. São imagens reproduzidas vezes sem conta, ligadas às mais contrastadas considerações sobre o passado, presente e futuro dessa entidade a que ele deu o nome emblemático, entretanto mitológico, de Facebook.
Num tempo em que proliferam as “análises” sobre os elementos mais irrisórios do nosso mundo, não encontro qualquer empenho em pensar a própria designação de “rede social”. Perguntando, por exemplo, o que é que aconteceu para que, em poucos anos, a noção de “social” tivesse passado a existir como equivalente único dos links que podemos estabelecer com o vizinho do lado ou o anónimo do outro lado do planeta.
São cada vez menos os que se lembram que o “social” começa na soleira da nossa porta, não na ligação virtual que, eventualmente, nos permite perceber que um cidadão de uma remota aldeia dos confins de um continente de outro hemisfério consome a mesma marca de bolachas… Deprimente social.
A Rede Social
Não terei a ousadia de demonizar a felicidade dos que, todos os dias, vivem tais rituais de conhecimento virtual. Ainda assim, cinéfilo impenitente, não posso deixar de reparar como as recentes peripécias da vida de Zuckerberg têm servido para denegrir o filme que David Fincher realizou, em 2010, sobre o nascimento do Facebook – e que se chama, justamente, A Rede Social.
Admirável filme, digo eu. Mas não é um mero juízo de valor que está em causa. O que me parece desconcertante é o facto de tal reavaliação fazer parte de um processo mais geral de que Zuckerberg, sintomaticamente, tem sido o principal porta voz. A saber: importa superar todo este drama – 87 milhões de pessoas cujos dados pessoais foram tratados como mercadoria –, criando melhores condições técnicas de gestão dos elementos privados…
Evitemos as generalizações fáceis. Não rasuremos o facto de, melhor ou pior, o Facebook existir como factor incontornável do sistema contemporâneo de organização do espaço vivo dos humanos. O certo é que estamos a falar do triunfo de uma cultura (entenda-se: um sistema de relações e valores de vida) que considera “normal” que os dados mais pessoais – incluindo as imagens – sejam expostos e, de alguma maneira, doados como elementos de partilha global. Desde quando esta brutal reconversão da própria noção de intimidade (e dessa coisa outrora respeitada que e o pudor) se tornou um banal problema técnico? Onde esta um político para colocar essa pergunta?

domingo, abril 01, 2018

"Phubbing": tele-desumanização

[ PsyBlog ]
A palavra — phubbing — não é nova. Terá mesmo surgido em 2012, segundo o dicionário de Oxford. Em qualquer caso, define um comportamento que, de excepção bizarra, se foi transformando em regra monstruosa — ilustrativa da nossa monsturosidade humana, entenda-se.
Phubbing resulta da fusão de "phone" e "snubbing" (do verbo snub: desconsiderar, menosprezar, secundarizar) e refere-se a uma situação em que alguém se alheia da sua companhia, em situações supostamente de convívio e diálogo, para dar atenção ao seu telemóvel. Mais do que uma interrupção circunstancial ou distracção momentânea, trata-se de uma prática cuja frequência implica um esvaziamento das relações — dos lugares profissionais aos espaços mais íntimos. A Time aborda a questão num eloquente artigo, propondo ainda este video.

sexta-feira, dezembro 15, 2017

O desaparecimento de "Star Wars"

Que está a acontecer com os primeiros filmes da saga "Star Wars", em particular o título fundador, lançado em 1977? Pois bem, num certo sentido, estão a desaparecer: as sucessivas intervenções digitais, apagando ou acrescentando elementos das imagens (e da banda sonora), modificaram muitas cenas das primeiras três longas-metragens (episódios IV, V e VI):
De tal modo que há fãs da saga que, em nome da preservação das características dos originais, se empenham em reconstituir as versões com que os filmes foram lançados nas salas (antes das modificações "impostas" pelas edições em DVD e Blu-ray). O assunto é tanto mais interessante quanto reflecte as perplexidades inerentes a qualquer processo de preservação e restauro do património cinematográfico — neste caso, aliás, com a contribuição contraditória do próprio George Lucas que autorizou tais intervenções depois de, nos anos 80, ter condenado com veemência a "colorização" de clássicos de Hollywood.
O jornal Le Monde fez um esclarecedor ponto da situação — eis o respectivo video, sob o mote: "Porque já não é possível ver a primeira trilogia na sua versão original".

sexta-feira, outubro 06, 2017

Os olhos e os seus ecrãs

Trata-se apenas de uma mensagem publicitária, aliás inteligentemente concebida pela secção londrina da agência Havas — a protecção dos olhos é, afinal, um princípio sagrado. O certo é que, nos seus breves e contundentes 40 segundos, este anúncio coloca em cena, literalmente, um dos mais assustadores fantasmas do nosso mundo tecnológico. A saber: o de, socialmente, já não vermos as imagens difundidas pelos mais variados ecrãs, uma vez que os nossos próprios olhos se transformaram em clones dos ecrãs que nos vigiam — eis um pequeno e involuntário filme de terror.

domingo, setembro 25, 2016

Snowden, Stone, política & tecnologia

Oliver Stone encena a saga de Edward Snowden num filme de fascinante complexidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro), com o título 'Como “purificar” as relações entre política e tecnologia?'.

Para o melhor ou para o pior, Edward Snowden inscreveu o seu nome na história política do século XXI. Ao divulgar, em 2013, dados de segurança interna dos EUA e, em particular, dos mecanismos de vigilância da National Security Agency (NSA), o ex-funcionário da CIA transformou-se em pólo necessariamente polémico de uma questão do nosso mundo global: o cruzamento do exercício do poder com a integração das novas tecnologias de detecção de mensagens. O filme de Oliver Stone, Snowden, aponta ao núcleo crítico de tal discussão.
Em boa verdade, mesmo que o discurso de Stone siga noutra direcção, o seu filme está longe de ser um mero panfleto. Há nele uma respiração dramática que evoca os modelos clássicos do cinema liberal de Hollywood. Isto sem esquecer que a palavra (“liberal”) corre sempre o risco de suscitar muitos equívocos, quanto mais não seja porque o que está em jogo não é uma simples posição política, muito menos partidária. É, isso sim, a tensão que se estabelece entre a acção de um indivíduo e o contexto institucional que o enquadra.
Nesta perspectiva, Snowden pode ser considerado um descendente directo de “thrillers” das décadas de 60/70, assinados por cineastas como John Frankenheimer, Alan J. Pakula ou Sydney Pollack (recorde-se o caso exemplar de Três Dias do Condor, de Pollack, em que Robert Redford interpretava um funcionário da CIA perseguido pela própria instituição).
Por mais desconcertante que isso possa parecer, este retrato de Edward Snowden acaba por ser uma variação sobre o mesmo paradoxo existencial que Stone já encenara em títulos como JFK (1991) ou Nixon (1995). No primeiro caso, da investigação sobre o assassinato de John F. Kennedy emergia a figura do procurador Jim Garrison (Kevin Costner), protagonizando um processo que se vai diluindo na encruzilhada de muitos testemunhos e outros tantos silêncios; no segundo, a revelação dos abusos de poder de Richard Nixon (Anthony Hopkins) acabava por lhe conferir uma perturbante emoção trágica.
Cada espectador reagirá de modo diferente (e com toda a legitimidade) às decisões que levaram Edward Snowden a revelar os documentos que revelou. Seja como for, em defesa do trabalho cinematográfico que temos à nossa frente, importa sublinhar a ambivalência dramática que se instala: no limite, Snowden é uma peça solitária de um aparato global que transfigurou todas as relações humanas. Ele que entrou na CIA “para ajudar o seu país”, é, afinal, um filho pródigo de uma paternidade ambivalente, no filme representada pelas personagens do seu austero chefe (Rhys Ifans) e de um sarcástico veterano (Nicolas Cage).
Num plano estritamente ideológico (se é que a fascinante complexidade do filme permite tal separação), podemos questionar Stone pela quase ausência de algum contraponto histórico (que começa, obviamente, na herança do 11 de Setembro). A saber: porque é que a história de Snowden quase não refere a conjuntura geopolítica em que se processa a sua odisseia? O certo é que esse “silêncio” faz parte da visão do mundo do próprio Snowden que, ingenuamente ou não, parece acreditar numa espécie de utópica “purificação” das relações entre política e tecnologia.
Evitando reduzir o mundo a uma dicotomia de “bons” e “maus”, o filme de Stone acaba por possuir o valor radical de uma crónica sobre as contradições do nosso tempo. A notável interpretação de Joseph Gordon-Levitt é um espelho cristalino da saga de Snowden. Em boa verdade, ele queria apenas ser ouvido — o filme confirma que o conseguiu.

sábado, dezembro 26, 2015

Medo [citação]

>>> Tanto a religião como o ocultismo retiram muito do seu poder da estimulação e manipulação simultânea do medo: ansiedade que atormenta os limites constantemente em mudança da personalidade e, em especial, os confins da morte. Quando as novas tecnologias reconfiguraram essas mesmas fronteiras, as sombras e as trevas que assombram a identidade humana começaram a verter do eu e muitas foram alojar-se nos espaços virtuais abertos pelas novas tecnologias.

ERIK DAVIS
Editorial Notícias, 2002

terça-feira, julho 15, 2014

Para ler: os 50 anos do comboio-bala

O famoso comboio-bala japonês Shinkansen faz hoje 50 anos de vida. Vale a pena ler (e ver as imagens) do trabalho publicado pela BBC.

Podem ler aqui.