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sábado, dezembro 07, 2024

#SeAcabó
— o futebol como poderoso fenómeno cultural

O "Caso Rubiales" foi muito mais do que um banal "incidente" futebolístico

O chamado “Caso Rubiales” surge agora no filme #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol, um documentário produzido e difundido pela Netflix. É importante ver e pensar o jogo para lá da aceleração quotidiana das notícias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 novembro).

Eis uma boa notícia. Por uma vez, através do filme #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol (produzido e difundido pela Netflix), há uma proposta mediática capaz de gerar uma reflexão sobre a dimensão realmente cultural do futebol. Entenda-se: sobre o futebol como fenómeno que transporta, consolida e transfigura valores que são transversais a todo o tecido social.
Foi preciso um facto extremo, realmente fracturante, para que tal acontecesse: o chamado “Caso Rubiales”. A saber: no dia 20 de agosto de 2023, nas celebrações da vitória da Espanha no Mundial Feminino de Futebol, Luis Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, beijou na boca a jogadora Jenni Hermoso numa atitude, no mínimo, desrespeitadora. Mais do que isso: como mostra o filme realizado por Joanna Pardos, tal atitude não pode ser desligada de um sistema de relações com as jogadoras enraizado em mecanismos de regular instrumentalização emocional e rebaixamento moral.
Evitemos, por isso, relançar as histerias “militantes” que, na altura, foram promovidas por alguns discursos mediáticos, sobretudo de natureza televisiva. Não se trata de apelar a generalizações gratuitas sobre a condição masculina (ou feminina), como se o comportamento abusivo de um homem implicasse automaticamente “todos” os homens, obrigando cada um deles a demonstrar que não é um abusador de mulheres.
O filme de Joanna Pardos distingue-se por uma postura realmente pedagógica, não cedendo às facilidades com que se inventam “temas” polémicos apenas para instalar uma gritaria social que, em poucos dias, é descartada… sendo rapidamente substituída por uma nova barulheira concebida de forma igualmente gratuita e sensacionalista. O que está em jogo não se esgota no carácter irresponsável ou maligno de um homem, sendo exposto e analisado como um conjunto de regras (ou da falta delas) que contaminam (ou contaminaram) toda a organização do futebol feminino em Espanha.
Deparamos com uma visão que evita a facilidade, não só descritiva, mas moral, de tratar o “Caso Rubiales” como uma espécie de “prós & contras” da dupla Hermoso/Rubiales. Através dos depoimentos de várias jogadoras — e também da análise do tratamento noticioso do caso —, o filme expõe a perversa teia de comportamentos que permite perceber o “episódio do beijo” como mais, muito mais, do que um incidente descartável. Esta é também a história do nascimento do #SeAcabó, movimento que abalou a sociedade espanhola muito para lá do universo específico do futebol.

Parar para pensar

Daí que sejamos levados a reflectir sobre as regras de qualquer abordagem deste teor: não há um universo “específico” do futebol. Pensar o futebol (feminino ou masculino) como uma “ilha” temática será uma maneira de recalcar o seu imenso poder simbólico e económico, numa palavra, cultural — e isto em qualquer contexto social, incluindo o português.
A conjuntura retratada por #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol é tanto mais significativa quanto a sua análise implica também um desafio ao próprio trabalho crítico. A pergunta é esta: como lidar com filmes que, de alguma maneira, retomam aquilo que já foi matéria de destaque no interior da aceleração informativa em que vivemos (ou somos obrigados a viver)?
A metódica realização de Joanna Pardos é eloquente. Trata-se de revisitar imagens que passaram pelo dia a dia das notícias, recusando agora a velocidade anedótica com que, por vezes, foram tratadas. Aquietar a vertigem pueril do olhar, parar para pensar, recusar transformar cada notícia em pretexto para um obsceno “tribunal popular” — eis algumas hipóteses clássicas do documentarismo cinematográfico cujo valor permanece intacto.

sexta-feira, março 01, 2024

We Are the World
— memórias épicas de uma canção

Lançada em 1985 para angariar fundos para combater a fome em África, a canção We Are the World foi um verdadeiro fenómeno global. Agora, na Netflix, A Grande Noite da Pop faz o retrato fascinante da sua concepção e gravação.

Imaginemos um filme cujo elenco possa incluir, entre outros, os nomes de Ray Charles, Bob Dylan, Michael Jackson, Cindy Lauper, Lionel Richie, Diana Ross, Paul Simon, Bruce Springsteen, Tina Turner, Stevie Wonder… Em boa verdade, esse filme existe desde 1985 — trata-se do teledisco de We Are the World, canção criada para angariar fundos para combater a fome em África. Agora, através de um notável documentário intitulado A Grande Noite da Pop, disponível na Netflix (título original: The Greatest Night in Pop), podemos descobrir aquilo que apetece chamar a “versão longa” do teledisco.
A Grande Noite da Pop faz uma revisitação de We Are the World em parte semelhante à proposta que encontramos na série The Beatles - Get Back (Disney+), de Peter Jackson. Tal como Jackson trabalhou a partir dos registos inéditos das gravações do álbum final dos Beatles (Let it Be), também Bao Nguyen, realizador americano de ascendência vietnamita, pôde aceder a uma espantosa colecção de imagens registadas durante a gravação da canção.


Reconhecemos, claro, as imagens do teledisco, mas as novidades são fascinantes. Há também diversos depoimentos filmados agora, surgindo Lionel Richie como principal narrador: é ele que começa por recordar a origem da canção, primeiro com o impulso decisivo de Harry Belafonte, depois através do envolvimento de Bob Geldof que, no Reino Unido, no Natal de 1984, tinha organizado um projecto humanitário semelhante, dando origem à canção Do They Know It’s Christmas? Seja como for, o essencial são as largas dezenas de minutos (mais de metade do documentário que dura 01h 36m) em que assistimos ao labor de cerca de quatro dezenas de cantores — incluindo o coro que, além de Geldof, integra, por exemplo, Sheila E., Bette Midler e Smokey Robinson — durante uma noite realmente épica.
O título A Grande Noite da Pop é para ser tomado à letra. A partir do momento em que Lionel Richie e Michael Jackson começaram a compor a canção, tendo garantido que a produção estaria a cargo de Quincy Jones (personagem decisiva em toda esta aventura), tratava-se de saber como organizar a logística de uma gravação que, além de outros convidados, iria integrar vários dos participantes nos American Music Awards, a realizar, também em Los Angeles, na mesma noite do dia 28 de janeiro de 1985… e com apresentação de Lionel Richie.
Deparamos com toda uma colecção de pormenores inesperados ou desconcertantes — desde o mal estar inicial de Bob Dylan perante a altura das notas que Quincy Jones estava a pedir, até ao comportamento errático de Al Jarreau, consumindo mais do que o aconselhável das garrafas que começaram a aparecer no estúdio, passando pelos ruídos na gravação da voz de Cindy Lauper… por causa dos exuberantes colares que usava nessa noite. Em qualquer caso, A Grande Noite da Pop não se esgota numa acumulação de elementos mais ou menos pitorescos, impondo-se como um testemunho exemplar de um trabalho colectivo que, escusado será sublinhá-lo, resistiu ao tempo, às modas e às próprias transformações do audiovisual nas décadas que se seguiram.

quarta-feira, janeiro 03, 2024

O passado e o nosso presente

Viagem ao Sol
— tempos de guerra, memórias portuguesas e austríacas


Depois da Segunda Guerra Mundial, muitas crianças austríacas foram acolhidas por famílias portuguesas. Com assinatura de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, Viagem ao Sol é uma belíssima revisitação das suas memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 dezembro).

O menos que se pode dizer da filmografia de Susana de Sousa Dias é que nos propõe formas de ver e pensar que contêm uma crítica metódica dos modos de não ver e não pensar a que a “sociedade mediática” nos habituou (ou quer habituar). Lembro o exemplo modelar desse filme de 2010 que se intitula “apenas” 48, desenhando um mapa de imagens de prisioneiros da ditadura salazarista que resiste, ponto por ponto, às descrições militantes e apologéticas que acabam por nos afastar da complexidade da nossa história. O mesmo se dirá de Viagem ao Sol, co-realizado com Ansgar Schaefer (doutorado em História Contemporânea de Portugal, co-fundador e produtor da empresa Kintop) — datado de 2021, só agora chega às salas comerciais… mas valeu a pena esperar.
O pano de fundo é o Portugal da segunda metade da década de 1940, portanto depois do fim da Segunda Guerra Mundial, mas os protagonistas pertencem a um “lá fora” que tem tanto de trágico como de imaginário. Assim, a condição de país neutral durante o conflito conferiu a Portugal o estatuto de cenário adequado para acolher muitas crianças austríacas traumatizadas pela guerra e também, por vezes, por razões de saúde, necessitando de algum tipo de recuperação em clima de mais sol e calor.
Tal como no citado 48, o espectador é convocado para uma clara dissociação de imagens e sons. Não se trata de coleccionar imagens de arquivo para lhes “sobrepor” uma voz off que, por assim dizer, vem “explicar” tudo o que estamos a ver — não estamos, de facto, perante o modelo corrente de “notícias” que, em última instância, instrumentalizam as imagens como mera “justificação” do que está a ser dito.
Claro que, na história dos documentários, podemos citar muitos e brilhantes títulos em que uma determinada voz off conduz a narrativa, ajudando-nos a contextualizar as imagens. Seja como for, a singular energia de Viagem ao Sol, por vezes a sua descarnada comoção, enraiza-se num dispositivo de contrastes e complementaridades a que, porventura extrapolando em excesso, apetece chamar cubista.
Ouvimos vozes dos que viveram essa experiência de “migração”, mas o tempo de tais vozes — entenda-se: o tempo do seu registo — é, obviamente, o da própria produção do filme. Dito de outro modo: não se trata de usar palavras para “esgotar” o que estamos a ver, antes de gerar uma dialéctica que pode ter tanto de trágico como de sensual, levando-nos a pressentir (ver & ouvir) o turbilhão das histórias individuais e colectivas.
O minucioso trabalho de recolha, montagem e remontagem de materiais de arquivo (também uma revisitação de um Portugal que não pode ser reduzido ao pitoresco de algumas memórias televisivas) resulta tanto mais envolvente quanto as imagens não são “acumuladas”, mas olhadas com a precisão — e também o desejo — de um olhar genuinamente cinematográfico. Como? Por exemplo, através da amostragem obsessiva de certos fragmentos das fotografias. Ou ainda tratando os registos filmados com uma “câmara lenta” capaz de sugerir que a fugacidade de cada instante apela à eternidade das emoções.

sábado, dezembro 23, 2023

A propósito do documentário
ETA - Conversas com um Terrorista

Josu Urrutikoetxea no filme Marius Sánchez/Jordi Évole:
memórias trágicas

Produzido e difundido pela Netflix, ETA - Conversas com um Terrorista é aquilo que o título anuncia: um diálogo com um homem que foi membro da ETA. Os seus trunfos cinematográficos são o cuidado informativo e a serenidade da linguagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 dezembro), com o título 'Histórias individuais e colectivas'.

O menos que se pode dizer de um filme como ETA - Conversas com um Terrorista (Netflix), realizado pela dupla espanhola Marius Sánchez/Jordi Évole, é que tudo aquilo com que nos confronta tem tanto de complexo como de perturbante. Traduzindo aproximadamente o título internacional, Face to Face with ETA: Conversations with a Terrorist, o título português é para ser tomado à letra: a matéria central é uma entrevista com Josu Urrutikoetxea (à beira de completar 73 anos), membro da organização separatista basca que, como é referido na legenda de abertura do filme, foi responsável pelo assassinato de 852 pessoas, causando 2661 feridos, entre 1968 e 2010, tendo anunciado a sua dissolução em 2018.
À partida, dir-se-ia que estamos perante um convencional “especial” televisivo, mesmo se, como é óbvio, as singularidades do entrevistado estão longe de ser indiferentes para o resultado. Até porque a situação de entrevista envolve uma tensão inevitável: os dois realizadores (sendo Jordi Évole o que conduz o diálogo e também o único que aparece nas imagens) não podem deixar de confrontar Urrutikoetxea com as memórias dos atentados e o seu rol de vítimas, procurando também perceber como é que ele se sente (e sentiu) face à brutalidade da violência da ETA.
Como o espectador descobrirá, Urrutikoetxea tenta manter um discurso de contrastes, com uma clara prudência defensiva. A evolução da sua própria situação no interior da ETA traduz-se num ziguezague de informações e comentários que vai do reconhecimento da lógica perversa de alguns atentados, nomeadamente na proliferação de vítimas civis, até outras situações em que, segundo ele, não compreende “o que passou pela cabeça” dos que planearam determinadas formas de violência. É significativo que ele diga ao entrevistador que não quer ser tratado pelo seu nome de combate, Josu Ternera — o título espanhol é mesmo No me Llame Ternera [Festival de San Sebastian].
Nada disto resvala para o pitoresco sensacionalista que, por vezes, contamina as narrativas televisivas da mesma família. Sublinhe-se, em particular, o modo como a pedagógica inserção das imagens de arquivo permite reconhecer as marcas da violência da ETA e também os seus efeitos em cadeia na esfera política e, claro, na sociedade espanhola. O certo é que este resumo do filme está longe de dar conta da fundamental subtileza que o faz funcionar.
É uma subtileza, não televisiva, mas cinematográfica. Assim, o frente a frente com Urrutikoetxea não é a única conversa que o filme apresenta: existe um outro diálogo, com Francisco Ruiz, que foi membro da segurança do presidente da câmara de Galdakao, morto num atentado da ETA, a 9 de fevereiro de 1976 — Ruiz estava de serviço, mas, apesar de ter sido atingido por várias balas, sobreviveu. Ora, ETA - Conversas com um Terrorista organiza-se como um confronto (talvez possamos aplicar uma clássica expressão da linguagem dos filmes: um campo/contracampo) entre as imagens dos dois homens. Em resumo: através de um sóbrio didactismo, este é um trabalho capaz de nos convocar para a infinita complexidade das histórias individuais e colectivas.

segunda-feira, dezembro 04, 2023

Pompeia, o telefilme

O menos que se pode dizer de um filme como Pompeia - Cidade do Pecado, de Pappi Corsicato, é que... não é um filme. Estamos, de facto, perante um convencional produto televisivo, com chancela da Sky Arts, que se insere num modelo académico de "divulgação" histórica. A saber: a partir das matrizes correntes do documentário de "artes & letras", trata-se de revisitar as memórias épicas da cidade de Pompeia, através das suas impressionantes ruínas, evocando um tempo — e uma civilização — cujos ecos e influências os séculos não rasuraram.
As boas intenções do projecto são evidentes. Desde logo através de três componentes: uma cuidada qualidade fotográfica, sobretudo no tratamento das cores das casas e dos frescos que restam de Pompeia; uma colecção de especialistas capazes de contextualizar a história que perpassa por todos esses elementos; enfim, o convite a uma figura tão prestigiada como Isabella Rossellini para desempenhar as funções de narradora (in e off).
Resta dizer que tais intenções não bastam para contrariar a banalidade da narrativa, involuntariamente caricatural quando Pappi Corsicato entende criar cenas de "reconstituição" histórica cujos lugares-comuns "poéticos" pertencem mais a uma banal estética publicitária do que a qualquer desejo de cinema. Além de que a sobrecarga de "informação" académica contraria o simples gosto — e o seu tempo — de poder olhar para as coisas sem ser através da aceleração postiça de uma câmara sem destino.
Claro que as raízes televisivas de Pompeia - Cidade do Pecado não justificam qualquer suspeição, muito menos demonização — afinal de contas, esse filme admirável que é A Tomada do Poder por Luís XIV, realizado em 1966 pelo pai de Isabella Rossellini, é também um telefilme. O que está em causa é a (in)capacidade de construir um olhar de genuíno interesse pelo mundo à sua/nossa volta.

segunda-feira, outubro 30, 2023

Na cozinha de Frederick Wiseman

Menus Plaisirs - Les Troisgros:
gastronomia francesa filmada por um grande documentarista americano

Desta vez em terras francesas, o americano Frederick Wiseman faz um filme saboroso (é a palavra exacta…) sobre restaurantes e gastronomia: Menus Plaisirs - Les Troigros integrou a programado do Doclisboa, na secção “Da Terra à Lua”.

[FOTO: Wolfgang Wesener]
Um novo filme de Frederick Wiseman é sempre um acontecimento singular, realmente sem equivalente. Desta vez na secção “Da Terra à Lua”, o Doclisboa apresentou Menus Plaisirs - Les Troisgros, revelado há poucas semanas no Festival de Veneza. Para (não) variar, esta é uma proposta que se distingue por uma duração invulgar: quatro horas em torno das pessoas, das rotinas e da fascinante engenharia gastronómica da família Troisgros, proprietária de três lendários restaurantes na região central de França, um deles (chamado Troisgros, precisamente) criado há quase um século e, nos últimos 55 anos, detentor de três estrelas Michelin.
A filmografia de Frederick Wiseman está pontuada por estes exercícios cujo tempo desafia as normas correntes do consumo cinematográfico — para nos ficarmos por aquele que, a todos os níveis, me parece o exemplo mais emblemático, lembremos o prodigioso Near Death (1989), sobre o acompanhamento de doentes terminais num hospital de Boston, com uma duração recorde de seis horas (menos dois minutos…).
Em todo o caso, evitemos o pitoresco. Há uma diferença substancial entre as horas repetitivas, redundantes e monótonas de muitas produções dos estúdios Marvel e o trabalho de alguém como Wiseman, “apenas” interessado em esmiuçar o labor filosófico de quem está apostado em discutir todas os possíveis prós e contras de um suave sabor de amêndoa num molho concebido para um prato de peixe…
À pergunta clássica sobre as eventuais dificuldades para filmar em determinado ambientes muito codificados, por vezes envolvidos em algum secretismo, Wiseman responde sempre com a revelação da sua primeira regra para penetrar em tais ambientes: “Peço autorização.” Assim aconteceu com o restaurante Troisgros que ele conheceu, no verão de 2020, levado por um amigo. De tal modo encantado com a comida e o ambiente, Wiseman perguntou ao Chef, César Troisgros, se o deixaria fazer um filme sobre os seus restaurantes. A resposta chegou meia hora mais tarde: “Porque não?”
Curiosamente, é o próprio Wiseman que, num breve texto de apresentação escrito para Veneza, nos chama a atenção para o cerne criativo do seu trabalho. É certo que fazer um filme sobre um restaurante com 3 estrelas Michelin sempre foi uma das suas “fantasias”. Mas há mais: “Pensei também que um filme sobre um restaurante podia ter relações com a minha série de filmes sobre instituições.”
Lembremos também, por isso mesmo, exemplos modelares como High School (1968), Blind (1987) ou Ballet (1995), respectivamente sobre um liceu, um jardim de infância para crianças cegas e o American Ballet Theatre. Para Wiseman, o “institucional” não é uma chancela mais ou menos oficial, mas sim o sistema de regras e comportamentos de uma entidade pensada e organizada para cumprir tarefas muito específicas. Nesta perspectiva, os restaurantes de Menus Plaisirs existem muito para lá da sedução turística que os possa envolver.
O cinema de Wiseman é mesmo o rigoroso contrário de qualquer banalidade turística. Para ele, não se trata, de modo algum, de recolher imagens “decorativas” para alimentar os nossos olhares viciados nos lugares-comuns do Instagram, mas sim de observar, testemunhar e compreender as infinitas subtilezas de um colectivo humano. Neste caso, a chave de tudo isso estará, talvez, na palavra “plaisirs” que o título integra — para lá do prazer dos cozinheiros e, sem dúvida, dos clientes, somos também convocados pelo prazer de um cineasta que sabe, como poucos, cozinhar as imagens e os sons que regista. Construir um olhar livre é o seu método.

sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Imagens e memórias da Ucrânia

Nas ruínas de Mariupol, ou a tragédia interior do tempo

Consagrado como Melhor Documentário do Cinema Europeu de 2022, Mariupolis 2 é um poderoso testemunho sobre a resistência do povo ucraniano à agressão russa. Ou o cinema a registar os sinais de um tempo trágico — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'A tragédia de Mariupol' (23 fevereiro).

Mantas Kvedaravicius
Não é possível compreender um filme apenas através da história da sua gestação, mas há casos em que essa história se revela essencial para conhecer as raízes, e também os valores, do respectivo projecto. Assim acontece com Mariupolis 2, do cineasta lituano Mantas Kvedaravicius (1976-2022): revelado em maio do ano passado no Festival de Cannes, venceu o Prémio de Melhor Documentário do Cinema Europeu, sendo esta semana lançado nas salas portuguesas.
O “2” do título remete para um primeiro Mariupolis, rodado em 2014-15, no qual Kvedaravicius registou o dia a dia da população de Mariupol, na região ucraniana do Donbass, então visada pelos ataques dos separatistas apoiados pela Federação Russa. Mariupolis 2 resultou do regresso do realizador à cidade, agora bombardeada pelas tropas de Vladimir Putin, promovendo a metódica destruição de muitas zonas de habitação.
É um filme póstumo, já que Kvedaravicius — cineasta, antropólogo e professor da Universidade de Vilnius — foi morto por soldados russos no dia 2 de abril de 2022, quando tentava sair de Mariupol. A sua companheira, Hanna Bilobrova, assumiu a herança do seu trabalho, primeiro conseguindo preservar o material das filmagens, depois organizando-o com a colaboração da montadora Dounia Sichov.
O menos que se pode dizer de Mariupolis 2 — a meu ver, desde já, um dos acontecimentos fulcrais deste ano cinematográfico — é que nos compele a repensar a presença (aliás, deveremos dizer a omnipresença) da guerra da Ucrânia no nosso quotidiano audiovisual e, mais concretamente, nas reportagens televisivas. Desde logo, porque aqui não encontramos a figura do “narrador” em frente da câmara — observador supostamente omnisciente, microfone na mão, braço a apontar para o horizonte — que constitui a unidade de linguagem mais utilizada pelas televisões de todo o mundo.
Tal demarcação não significa que o filme (ou este texto) pretenda “culpabilizar” os modelos dominantes do trabalho televisivo — importa não esquecer que as respectivas imagens têm sido também fundamentais para conhecermos a brutalidade da agressão russa contra o povo ucraniano. Acontece que as matrizes dominantes da informação audiovisual tendem a privilegiar a acumulação de fragmentos breves, por vezes descontextualizados, capazes de gerar alguma emoção imediatista ou, pior um pouco, um simbolismo simplista.
Que falta a tais matrizes? A tragédia interior do tempo — o tempo vivido, o tempo de coexistência com os sinais da morte. Aliás, devemos completar a palavra tempo com uma outra que, por assim dizer, lhe serve de espelho existencial. A saber: duração. Que é a duração? É essa intimidade do tempo em que tudo parece tornar-se inapelavelmente realista e insustentável — da observação do detrito de uma bomba que ainda queima as mãos até à descoberta de dois cadáveres “esquecidos” no meio dos detritos, passando pela tentativa de atrair alguns pombos à deriva… Mariupolis 2 testemunha a obscenidade da agressão e, por isso mesmo, a tenacidade da resistência.

quinta-feira, janeiro 05, 2023

10 filmes de 2022 [10]

* DAS PROFUNDEZAS 
Michelangelo Frammartino

Neste tempo de artifícios desregrados, ignorantes da ligação do prazer do simulacro à pulsação do real, que bom que é reencontrar a vontade primitiva dos Lumière. A saber: redescobrir e, num certo sentido, reinventar o cinema como instrumento prático para dar a ver o que não conhecemos. Michelangelo Frammartino, autor desse filme misterioso e envolvente que é As Quatro Voltas (2010), revisita a Itália da década de 1960, marcada por uma "revolução" económica de obscena ostentação — construía-se o mais alto edifício do mundo como símbolo da prosperidade do Norte do país —, encenando a odisseia de um grupo de espeleólogos que, mais ao Sul, na região da Calábria, exploram pela primeira vez aquela que é tida como a gruta mais funda (700 metros) do continente europeu. A pulsação documental tem tanto de intenso como de detalhado, mas está longe de esgotar o verdadeiro milagre de imagens e sons que Frammartino nos oferece: esta é uma aventura, rara e concisa, do espírito de descoberta do ser humano que, por assim dizer, se duplica no próprio exercício cinematográfico que nos é dado partilhar — se os balanços de fim de ano exigem que definamos uma hierarquia de valor (mesmo sabendo da sua imprecisão e futilidade), então digamos que, no mercado português, Das Profundezas pode exibir o rótulo de melhor filme de 2022.


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[ Moonage Daydream ]   [ Pathos, Ethos, Logos ]  [ Um Filme em Forma de Assim ]  [ Irmão e Irmã ]

quinta-feira, agosto 04, 2022

Moonage Daydream: 15 de setembro!

Foi um dos grandes acontecimentos de Cannes/2022...
Quem supôs, pressentiu ou especulou que Moonage Daydream (incluindo o responsável por este texo) poderia não chegar às salas portuguesas estava totalmente enganado. Segundo informação da respectiva distribuidora, Cinemundo, o filme de Brett Morgen sobre David Bowie já tem estreia marcada para o dia 15 de setembro. Mais do que isso: estará disponível em salas tradicionais e também em IMAX!

sábado, julho 02, 2022

A civilização dos GIF

Annie Ernaux e os filhos: memórias em película Super 8

Agora através do cinema, a escritora francesa Annie Ernaux não desiste de cultivar e partilhar o tempo das memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 junho), com o título 'A civilização das imagens repetidas'.

O que é um GIF? Mesmo que qualquer um de nós nunca tenha dado atenção a tal sigla, já todos fomos expostos à infinita variedade dos GIF que proliferam na Net. São ficheiros (Graphics Interchange Format) que permitem autonomizar um determinado movimento, de imagens de qualquer origem, repetindo-o continuamente — uma espécie de desenho animado de breves segundos que permanece, repetindo-se. Usando os termos da própria net, dir-se-ia uma mensagem instantânea da família de um “emoji” ou “smiley”, com a diferença de, no caso do GIF, haver movimento.
E se a civilização que construímos (e todos os dias reproduzimos) fosse uma espécie de espectáculo global de incontáveis GIF? Vivemos, de facto, um tempo em que a infinita repetição de algumas imagens seleccionadas passou a ser o regime dominante de quase todas as linguagens audiovisuais, do jornalismo à publicidade, passando pela política.
Descobrimos aquele anúncio do automóvel eléctrico que promete libertar-nos das agruras dos combustíveis fósseis e, ao longo do dia, podemos revê-lo em todos os nossos ecrãs, até mesmo a abrir um qualquer video do YouTube… Vemos novas imagens de devastação na Ucrânia e essas mesmas imagens vão-nos acompanhando, também ao longo do dia, como fantasmas de algo que, em boa verdade, já não estamos a olhar… Por vezes, entre perplexidade e sonambulismo, as incessantes repetições levam-nos até a reconhecer que determinada notícia “de última hora” surge “ilustrada” com imagens que já tínhamos visto há dois ou três dias.
Que acontece, então? Abdicamos de conhecer e querer conhecer. Trocamos o gosto primordial da curiosidade pelo efeito hipnótico da repetição. Como se já não fôssemos capazes de sentir, ainda menos desejar, a dimensão radical que o olhar e a escuta podem envolver: encaramos o mundo como uma colagem interminável de GIF, desfrutando a felicidade mórbida de não pensar, instalados que estamos na espera inconsciente das mesmas imagens.
Como sair deste torpor? Talvez que as imagens se possam revoltar e contribuir para o nosso despertar. Creio que é algo dessa esperança que está num dos filmes que, fora da competição para a Palma de Ouro, mais me impressionou no recente Festival de Cannes (17-28 maio) — refiro-me a Les Années Super 8, de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, apresentado na Quinzena dos Realizadores.


Annie Ernaux é a escritora de romances admiráveis como Uma Paixão Simples e O Acontecimento (o primeiro está editado pelos Livros do Brasil, tradução de Tereza Coelho), ambos adaptados ao cinema com resultados excepcionais, respectivamente em 2020 e 2021, com realização de Danielle Arbid e Audrey Diwan. Com a ajuda de um dos filhos, David Ernaux-Briot, decidiu revisitar as imagens — em formato amador Super 8, como o título refere — que pertencem ao património da sua família: “Ao rever os nossos filmes Super 8 rodados entre 1972 e 1981, compreendi que constituíam um arquivo familiar, mas também um testemunho sobre as formas de lazer, o estilo de vida e as aspirações de uma classe social ao longo da década que se seguiu a 1968.” Daí o método de revisitação: “Face àquelas imagens mudas, senti o desejo de as integrar numa narrativa cruzando o íntimo, o social e a história, expondo o gosto e a cor daqueles anos” (o comentário do filme é escrito e lido pela própria Annie Ernaux).
Que está em jogo? Pois bem, precisamente o contrário da ideologia dos GIF: não a redução do tempo a uma rotina de preguiçosos “mini-espectáculos”, prisioneiros de uma significação determinista, antes o empenho em não abdicar da riqueza histórica e do valor simbólico da memória.
De tal modo que no grão daquelas imagens, sinal de um tempo de outras tecnologias (observe-se o fotograma aqui reproduzido), podemos sentir a vibração insubstituível do tempo que passa, do amor que por ele passou. No limite, tal vibração faz-nos pressentir a fronteira compulsiva da morte. E o seu contrário: a energia vital de existir — em regime solitário, procurando alguma relação com outros.
Nesta perspectiva, a narrativa de Les Années Super 8 não é estranha ao romance autobiográfico Os Anos, distinguido com o Prémio Marguerite Duras de 2008 (Livros do Brasil, tradução de Maria Etelvina Santos). Annie Ernaux inicia-o, aliás, com uma frase que poderia servir de epígrafe ao seu filme: “Todas as imagens irão desaparecer”. Porquê? Porque através delas aprendemos o misto de urgência e vulnerabilidade de que se faz qualquer memória. Agora, na era dos GIF, ignoramos a singularidade de cada imagem, menosprezando o tempo de contemplação que ela pode exigir — queremos apenas passar à imagem seguinte.

segunda-feira, junho 20, 2022

Ziggy Stardust, 50 anos [9/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a nona, Ziggy Stardust.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]  [ 6 ]  [ 7 ]  [ 8 ]

Ziggy played guitar
Jamming good with Weird and Gilly
And the Spiders from Mars
He played it left hand
But made it too far
Became the special man
Then we were Ziggy's band

Ziggy really sang
Screwed-up eyes and screwed-down hairdo
Like some cat from Japan
He could lick 'em by smiling
He could leave 'em to hang
They came on so loaded, man
Well-hung and snow-white tan

So where were the spiders
While the fly tried to break our bones?
With just the beer light to guide us
So we bitched about his fans
And should we crush his sweet hands?

Ziggy played for time
Jiving us that we were voodoo
The kids were just crass
He was the nazz
With God-given ass
He took it all too far
But, boy, could he play guitar


Making love with his ego
Ziggy sucked up into his mind, ah
Like a leper messiah
When the kids had killed the man
I had to break up the band



>>> A canção tal como foi interpretada no espectáculo final de Ziggy Stardust, a 3 de julho de 1973, no Hammersmith Odeon (Londres). As imagens pertencem ao filme que regista esse espectáculo, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de D. A. Pennebaker (lançado em 1979).

terça-feira, janeiro 04, 2022

10 filmes de 2021 [5]


Sergei Loznitsa

Proeza rara no universo documental: recolher os documentos de outros para elaborar um novo discurso sobre a sua linguagem — há uma experiência do mesmo teor em Autobiografia de Nicolae Ceausescu (2010), de Andrei Ujica, centrado na herança social e simbólica do ditador romeno. Loznitsa expõe o sistema comunista a partir das cerimónias, rituais e discursos que, em março de 1953, encenaram a morte de outro ditador, Josef Estaline, expondo um modus operandi em que a noção de "povo" envolve, de uma só vez, a manipulação política e a chantagem moral. O cinema reafirma-se, assim, não apenas como linguagem com imagens, mas também espelho crítico das próprias imagens.
 

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1 - West Side Story / 2 - Time / 3 - Being the Ricardos / 4 - Spencer

sexta-feira, dezembro 31, 2021

10 filmes de 2021 [2]


Garrett Bradley

Acontecimento raro, prodígio narrativo: para dar conta — documentar é a palavra certa — da odisseia de uma mulher que tenta por todos os meios obter a redução da pena de prisão do marido (60 anos, por ter participado num assalto a um banco), Garrett Bradley utiliza os registos em video da sua protagonista, organizando uma viagem que tem tanto de exercício intimista como de metódica problematização dos mecanismos da lei. Muito para lá de qualquer cliché televisivo, obviamente alheio às estratégias do "escândalo" e do "choque", eis um objecto que exalta os valores de um genuíno gosto documental.
 

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1 - West Side Story

terça-feira, agosto 03, 2021

"Os Homens do Presidente"
— a verdade e as suas narrativas

Dustin Hoffman e Robert Redford
Os Homens do Presidente (1976)

Os Homens do Presidente (1976), sobre o escândalo Watergate, é um filme sempre actual: em cena está a elaboração narrativa da verdade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 junho), com o título 'A verdade dos factos e o seu drama'.

A estreia do filme romeno Colectiv - Um Caso de Corrupção relançou na actualidade algum pensamento crítico sobre o jornalismo. Retomando também um desafio cinematográfico: como figurar o trabalho jornalístico?
A questão é tanto mais pertinente quanto há toda uma ideologia político-mediática que passou a alimentar formas pueris de heroicização do jornalista. Em algumas das suas variantes, o labor específico do jornalismo — conhecer a complexidade do mundo — passou a ser confundido com a instauração de tribunais “populares” de que o jornalista seria o juiz sem recurso e, no limite, o demiurgo inimputável.
O filme debruça-se sobre a tragédia vivida, em 2015, num clube noturno de Bucareste (de nome Colectiv), quando um incêndio provocou a morte imediata de 27 pessoas. Nas semanas seguintes, o falecimento de mais 37 pessoas que tinham ficado feridas, algumas delas sem gravidade, veio expor toda uma teia de corrupção no sistema hospitalar da Roménia, em particular através da venda de desinfectantes cuja composição tinha sido viciada.
O impacto do filme realizado por Alexander Nanau é tanto maior quanto a sua estratégia documental evolui em paralelo com a própria investigação jornalística — a equipa de Nanau viveu e conviveu com os jornalistas da Gazeta Sporturilor que expuseram os factos. Daí a sugestiva evocação de outros filmes que, não necessariamente em registo documental, tratam esse modelo de investigação, suas opções e limites — entre tais filmes emerge o clássico Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula.
Tratou-se, neste caso, de evocar a investigação de Bob Woodward e Carl Bernstein, para o jornal The Washington Post, sobre o chamado escândalo Watergate — Robert Redford, também produtor do filme, interpreta Woodward, estando a personagem de Bernstein entregue a Dustin Hoffman. Em termos esquemáticos, lembremos que, em 1972, um assalto à sede do Comité Nacional Democrata, nos edifícios Watergate, em Washington, suscitou suspeitas que foram envolvendo vários membros da administração de Richard Nixon. A confirmação dessas suspeitas, apontando para “todos os homens do presidente” (para usarmos a expressão do título original, All the President’s Men), desembocaria na resignação de Nixon, no verão de 1974, cerca de dois anos depois do assalto.
Vale a pena lembrar a celeridade da produção do filme: a sua estreia ocorreu, nas salas dos EUA, a 4 de abril de 1976 (chegaria a Portugal em janeiro de 1977), tendo Nixon resignado a 9 de agosto de 1974. Não é, entenda-se, uma banal curiosidade: vivia-se um tempo ainda não contaminado pela ilusória aceleração informativa do presente, com o cinema a funcionar como elemento criativo da “consciência popular” da política. Ou ainda: um tempo em que as redes do tecido social não estavam confinadas aos mecanismos do virtual.
Adaptado do livro que a dupla Woodward/Bernstein escreveu sobre a sua investigação, o extraordinário argumento assinado por William Goldman confere especial importância a essa questão do tempo jornalístico. Há mesmo vários momentos do filme em que a intensidade dramática nasce de uma dúvida pacientemente formulada e reformulada por Ben Bradlee (Jason Robards), o lendário editor executivo de The Washington Post (em 2017, a sua personagem foi interpretada por Tom Hanks no filme The Post, de Steven Spielberg). Assim, para Bradlee, não se trata apenas de discutir a pertinência, isto é, a veracidade confirmada das informações que vão sendo recolhidas por Woodward e Bernstein; importa também avaliar o momento em que tais informações adquirem consistência e coerência para serem tratadas como matéria para publicação.
Nesta perspectiva, Os Homens do Presidente é um objecto de cinema cuja riqueza filosófica excede a clássica dicotomia “verdade/mentira”. Entenda-se: ninguém menospreza, como é óbvio, a procura da verdade dos factos — em última instância, seria o valor cristalino dessa verdade a provocar a resignação de Nixon. Acontece que nenhuma narrativa jornalística pode dispensar uma permanente reflexão sobre as linguagens que sustentam a sua relação com os factos. Talvez seja essa a dimensão mais contundente, porque mais perturbante, do admirável filme de Pakula: a verdade não existe, disponível, imóvel e unívoca, num altar imaculado, enraiza-se no movimento das narrativas que nos fazem ser animais sociais.

quinta-feira, julho 08, 2021

Woodstock 1999, documentário

"Peace, love & music", dizia o lema de Woodstock. Foi em 1969. Trinta anos depois, as comemorações deslizaram da nostalgia para um aparatoso e inquietante desastre — um verdadeiro pesadelo logístico, humano e cultural. As memórias de Woodstock 1999 são agora tema de um documentário, realizado popr Garret Price, que a HBO vai lançar a 23 de julho. Eis o trailer de Woodstock 99: Peace, Love, and Rage.

quinta-feira, abril 29, 2021

Billie Eilish
— a menina dos cabelos verdes

Vem aí o segundo álbum de Billie Eilish [Happier Than Ever] e o seu visual já mudou. Em todo o caso, os cabelos verdes ficaram como emblema de um período de especial criatividade; símbolo juvenil de âmbito universal, fenómeno singular do mundo da música, ela está retratada num belo documentário assinado pelo veterano R. J. Butler — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 março).

De que falamos quando falamos de Billie Eilish? O título do documentário agora em streaming [AppleTV+] pode ajudar-nos a lidar com a dificuldade da resposta: Billie Eilish: O Mundo Está um Pouco Turvo provém de um verso (“The world is a little blurry”) de uma canção do seu primeiro, até agora único, álbum de estúdio, When We All Fall Asleep, Where Do We Go? (2019).
Até certo ponto, estamos perante aquilo que na gíria comercial se designa como “making of”. Acompanhamos as sessões de gravação do álbum, protagonizadas pela cantora e o irmão, Finneas O’Connell, ou apenas, artisticamente, Finneas. As situações vão sendo pontuadas por referências ao síndrome de Tourette de Billie Eilish, e também aos períodos de depressão que viveu, embora o essencial seja sempre a música e a sua produção, incluindo a canção No Time to Die (do filme de James Bond ainda por estrear).
Com algumas nuances: assim, quase tudo acontece no quarto de Finneas, uma pequena divisão em que pouco mais cabe, para lá da cama, instrumentos musicais e computadores… Estamos na casa da família, com os pais a surgirem como personagens regulares, escutando os ensaios, dando as suas opiniões, discutindo as convulsões da vida da filha, estrela do YouTube (137 milhões de seguidores), 19 canções no Top 100 da revista Billboard… enfim, 17 anos de idade!
É verdade. Se o leitor passou os dois últimos anos em viagem por outra galáxia, permito-me informá-lo de três factos objectivos: Billie Eilish tinha 17 anos na altura do lançamento do seu álbum, ganhou cinco prémios nos Grammys de 2020 (incluindo revelação e álbum do ano) e no próximo dia 18 de dezembro completará 20 radiosas primaveras. Daí a maravilhosa descoberta que é este trabalho documental assinado por R. J. Butler. Vale a pena lembrar que ele é um veterano destas andanças, tendo produzido, por exemplo The War Room (1993), da dupla Chris Hegedus/D. A. Pennebaker, sobre a campanha presidencial de Bill Clinton, e realizado The September Issue (2003), um retrato de Anne Wintour enquanto editora da revista Vogue.
Agora, ele tem a agilidade — e também o pudor — de lidar com Billie Eilish como uma pessoa que não se esgota na fabricação de “hits” (tema que, em qualquer caso, não está ausente). Dir-se-ia que assistimos a um home movie em que cada um, face à música e através da música, se expõe como personagem de um labirinto de muitos afectos, enigmas e revelações. Além do mais, recusando qualquer visão “pitoresca” da adolescência.
Nas relações de cinema e música, não creio que haja muitos filmes capazes de assumir este misto de intimidade e candura. Penso, inevitavelmente, no emblemático Na Cama com Madonna (1991), de Alek Keshishian, sem esquecer uma diferença fundamental: enquanto Madonna surgia como autora hiper-sofisticada das suas próprias imagens, Billie Eilish vive um drama realmente juvenil. A saber: até que ponto as imagens que produzo ilustram (ou mascaram) aquilo que sou? Sem esquecer que assistimos também ao começo do uso dos cabelos pintados de verde.

terça-feira, março 02, 2021

"Berlim - A Sinfonia de uma Capital"
— com música de Craig Michael Davis


Berlin - Die Sinfonie der Großstadt (1927), de Walter Ruttmann, habitualmente identificado em português como Berlim - A Sinfonia de uma Capital, é um daqueles clássicos que, em tempos remotos, abriu uma espantosa multiplicidade de hipóteses para o chamado registo documental — Manoel de Oliveira, por exemplo, citava-o como inspiração muito directa para o seu Douro, Faina Fluvial (1932).
Há neste retrato de Berlim uma musicalidade do olhar e da montagem que, de facto, apela... à música. De tal modo que, ao longo das décadas, a sua projecção tem sido acompanhada pelas mais variadas partituras. Em 2017, o pianista, compositor e maestro americano Craig Michael Davis apresentou a sua versão para as imagens de Ruttmann, numa performance disponível no YouTube — para redescobrir um clássico, sempre moderno.

domingo, fevereiro 28, 2021

Dick Johnson, viver, morrer e filmar

Dick Johnson filmado por Kirsten Johnson

Em Dick Johnson Is Dead (Netflix), Kirsten Johnson filma a morte do pai que, pormenor importante, está vivo... ou como o documentário pode integrar elementos de comédia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 fevereiro), com o título 'Bolo de chocolate é melhor que morrer'.

É bem verdade que a abundância da oferta das plataformas de streaming não significa que os filmes mais originais ou, pelo menos, mais consistentes tenham a visibilidade que merecem. Aí está o exemplo de Dick Johnson Is Dead (Netflix). Foi David Fonseca quem, também no DN, na rubrica “7 dias, 7 propostas” (16 janeiro), primeiro chamou a atenção para as suas singularidades. Entretanto, a realização de Kirsten Johnson adquiriu especial visibilidade na corrida para os Óscares: Dick Johnson Is Dead integra a chamada “short list” dos quinze títulos que poderão chegar a uma das cinco nomeações na categoria de melhor documentário.
Vale a pena, por isso, perguntar de que modo tal facto se reflecte na vida comercial do filme. Não para reduzir as plataformas de streaming ao maniqueísmo mais banal: não se trata de as santificar… porque nos dão a ver “tudo”, mas também não creio que nos conduza muito longe a sua demonização… porque estão a “matar” o mercado clássico. Sem deixar de recordar que a complexidade dos problemas em jogo não cabe neste texto, permito-me apenas observar que nem mesmo o facto de Dick Johnson Is Dead poder vir a ganhar um Oscar (ou apenas obter uma nomeação) mudou o que quer que seja na triste banalidade da sua promoção. Aliás, uma vez mais, sem ceder a nacionalismos balofos, importa também perguntar: já nem sequer há a preocupação de, pelo menos nos casos em que isso é linearmente possível, traduzir os títulos originais?
Kirsten Johnson fez um filme que faz jus ao seu título: “Dick Johnson Morreu”. Com uma ironia saborosa. Entenda-se: Dick Johnson, pai da realizadora, sofre de demência, mas com a festiva cumplicidade da filha está apostado em proclamar que a notícia da sua morte é francamente exagerada… Até porque, antes que aconteça qualquer despedida, convenhamos que há ainda muitos bolos de chocolate para comer em pachorrenta degustação.
Assim mesmo: estamos perante um documentário que, sem complexos puristas, se assume também como comédia familiar. Literalmente: a realizadora vai dando conta da discreta multiplicação dos sinais da doença no quotidiano, desde logo pondo em causa a actividade profissional do pai (psiquiatria); ao mesmo tempo, com a sua bem disposta participação, cria cenas de desconcertante artificialismo cujo tema é… a morte de Dick Johnson.
Deparamos, assim, com um duplo risco: primeiro, encarando o trabalho documental não como uma “transcrição” do que quer que seja, antes como uma matriz narrativa que, com imaginação e rigor, pode integrar as mais diversas componentes, incluindo as que provêm da comédia burlesca; depois, resistindo a formas correntes de abordagem (cinematográfica e não só) das doenças em que predominam a vitimização compulsiva dos doentes ou a culpabilização automática dos médicos (muitas vezes, as duas coisas). Morrer não é uma boa notícia, mas Dick Johnson Is Dead é a prova muito real de que o cinema pode ser um salutar exercício de pensamento e partilha afectiva.

domingo, janeiro 24, 2021

10 filmes de 2020 [10]

Waad Al-Kateab e Edward Watts

Há uma dimensão pessoal, de supremo intimismo, na saga de sobrevivência de Waad Al-Kateab: o seu registo do cerco de Aleppo, na Síria, é tanto mais tocante quanto envolve o nascimento da sua filha, Sama. Ao mesmo tempo, este é um exemplo precioso de um cinema que existe como genuíno gesto de acção & pensamento. Nem que seja através da ligeireza atribulada de um telemóvel, trata-se de registar situações que, pela sua especificidade e duração, escapam à (falta de) lógica de qualquer fragmento "viral", televisivo ou online — raras vezes o documentário foi tão visceral e, até às mais drásticas consequências, realista.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ] [ 5. American Utopia ]