1. O concerto de Cuca Roseta no Tivoli foi uma desconcertante ilustração daquilo que pode ser a encruzilhada criativa de uma voz invulgar (por certo das mais extraordinárias de toda a história do fado). Porquê encruzilhada? Desde logo porque, de uma maneira ou de outra, era inevitável antecipar sonoridades ligadas ao admirável álbum da fadista produzido por Gustavo Santaolalla. Depois porque, em vários aspectos, o concerto parece ter sido concebido contra essas sonoridades.
2. O mote foi dado logo a abrir, com uma versão de Rua do Capelão que, em vez da belíssima austeridade do disco, se apresentou com um arranjo saturado e, de algum modo, redundante. Não me interpretem mal: os acompanhantes de Cuca Roseta são invulgarmente dotados, mas dir-se-ia que na produção de quase todos os temas prevaleceu a preocupação de exibir roupagens sonoras algo ostensivas, por vezes francamente supérfluas face aos dotes de tão sublime voz.
3. Tudo isso se agravou através de um "vício" infelizmente corrente em concertos em Portugal: o volume de reprodução do som (da voz e, sobretudo, dos instrumentos) jogava mal com a contenção e, num certo sentido, o pudor que o fado impõe. Em boa verdade, era um volume (até pela sua textura metalizada) adequado para ambiências de pop/rock, não sendo surpreendente que a presença de Pedro Abrunhosa (num belíssimo dueto...) tenha sido o momento em que a concepção sonora do palco mais e melhor se adequou às matérias cantadas. Outro momento em que, apesar de tudo, prevaleceu esse equilíbrio foi a interpretação de Tortura, de Florbela Espanca, com Mário Pacheco (autor da música) na guitarra — por breves instantes, a cumplicidade entre voz e guitarra pôde existir na sua singular depuração.
4. Podemos compreender que o concerto surgia, na trajectória de Cuca Roseta, como um momento emblemático de apresentação/conquista do público lisboeta. E que isso implicaria, inclusivamente, o apoio simbólico de convidados como Abrunhosa, ou ainda Carlos do Carmo e André Sardet. Em todo o caso, há sempre qualquer coisa de potencialmente equívoco em tal estratégia: a intérprete corre o risco de desvirtuar o seu melhor registo (que é, para todos os efeitos, o álbum produzido por Santaolalla), ao mesmo tempo diluindo-se em modelos que, em última instância, lhe são estranhos (mesmo se é verdade que até mesmo a banalidade "romântica" de Sardet parece sublimada pelos poderes encantatórios da voz de Cuca Roseta).
5. Fica, assim, um balanço bizarro, também ele desconcertante: foi um concerto "corrente" de uma cantora absolutamente fora de série (e isso sentiu-se sempre, com ou sem a devida sustentação do aparato técnico). Podemos até considerar que Cuca Roseta — como, infelizmente, a maior parte dos intérpretes portugueses — mostra um limitado trabalho sobre a teatralidade (do corpo e do discurso falado) inerente à presença em palco. Seja como for, essa não é a questão central: a questão central decorre da contradição não resolvida entre o carácter genuíno de uma excepcional intérprete do fado e as características de um espectáculo todo ele limitado pela consagração de uma "ligeireza" de ilusório universalismo.