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sábado, dezembro 07, 2024

#SeAcabó
— o futebol como poderoso fenómeno cultural

O "Caso Rubiales" foi muito mais do que um banal "incidente" futebolístico

O chamado “Caso Rubiales” surge agora no filme #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol, um documentário produzido e difundido pela Netflix. É importante ver e pensar o jogo para lá da aceleração quotidiana das notícias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 novembro).

Eis uma boa notícia. Por uma vez, através do filme #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol (produzido e difundido pela Netflix), há uma proposta mediática capaz de gerar uma reflexão sobre a dimensão realmente cultural do futebol. Entenda-se: sobre o futebol como fenómeno que transporta, consolida e transfigura valores que são transversais a todo o tecido social.
Foi preciso um facto extremo, realmente fracturante, para que tal acontecesse: o chamado “Caso Rubiales”. A saber: no dia 20 de agosto de 2023, nas celebrações da vitória da Espanha no Mundial Feminino de Futebol, Luis Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, beijou na boca a jogadora Jenni Hermoso numa atitude, no mínimo, desrespeitadora. Mais do que isso: como mostra o filme realizado por Joanna Pardos, tal atitude não pode ser desligada de um sistema de relações com as jogadoras enraizado em mecanismos de regular instrumentalização emocional e rebaixamento moral.
Evitemos, por isso, relançar as histerias “militantes” que, na altura, foram promovidas por alguns discursos mediáticos, sobretudo de natureza televisiva. Não se trata de apelar a generalizações gratuitas sobre a condição masculina (ou feminina), como se o comportamento abusivo de um homem implicasse automaticamente “todos” os homens, obrigando cada um deles a demonstrar que não é um abusador de mulheres.
O filme de Joanna Pardos distingue-se por uma postura realmente pedagógica, não cedendo às facilidades com que se inventam “temas” polémicos apenas para instalar uma gritaria social que, em poucos dias, é descartada… sendo rapidamente substituída por uma nova barulheira concebida de forma igualmente gratuita e sensacionalista. O que está em jogo não se esgota no carácter irresponsável ou maligno de um homem, sendo exposto e analisado como um conjunto de regras (ou da falta delas) que contaminam (ou contaminaram) toda a organização do futebol feminino em Espanha.
Deparamos com uma visão que evita a facilidade, não só descritiva, mas moral, de tratar o “Caso Rubiales” como uma espécie de “prós & contras” da dupla Hermoso/Rubiales. Através dos depoimentos de várias jogadoras — e também da análise do tratamento noticioso do caso —, o filme expõe a perversa teia de comportamentos que permite perceber o “episódio do beijo” como mais, muito mais, do que um incidente descartável. Esta é também a história do nascimento do #SeAcabó, movimento que abalou a sociedade espanhola muito para lá do universo específico do futebol.

Parar para pensar

Daí que sejamos levados a reflectir sobre as regras de qualquer abordagem deste teor: não há um universo “específico” do futebol. Pensar o futebol (feminino ou masculino) como uma “ilha” temática será uma maneira de recalcar o seu imenso poder simbólico e económico, numa palavra, cultural — e isto em qualquer contexto social, incluindo o português.
A conjuntura retratada por #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol é tanto mais significativa quanto a sua análise implica também um desafio ao próprio trabalho crítico. A pergunta é esta: como lidar com filmes que, de alguma maneira, retomam aquilo que já foi matéria de destaque no interior da aceleração informativa em que vivemos (ou somos obrigados a viver)?
A metódica realização de Joanna Pardos é eloquente. Trata-se de revisitar imagens que passaram pelo dia a dia das notícias, recusando agora a velocidade anedótica com que, por vezes, foram tratadas. Aquietar a vertigem pueril do olhar, parar para pensar, recusar transformar cada notícia em pretexto para um obsceno “tribunal popular” — eis algumas hipóteses clássicas do documentarismo cinematográfico cujo valor permanece intacto.

quarta-feira, dezembro 04, 2024

Portugalex inaugura presépio...

Lembremos a ficha: os textos são de Patrícia Castanheira, as vozes de António Machado e Manuel Marques. Dito de outro modo: que seria de nós sem o Portugalex? Como seria possível resistir à violência da estupidez lusitana (que falta Sena nos faz) sem termos o simples, mas tão raro, conforto da inteligência?
Satisfazendo a riqueza das nossas tradições, hoje é dia de inauguração do presépio...
 

sexta-feira, novembro 22, 2024

St. Vincent canta em espanhol

É um dos grandes lançamentos de 2024: All Born Screaming, sétimo álbum de estúdio de St. Vincent tem, desde 15 de novembro, a sua edição em espanhol — Todos Nacen Gritando. Eis a canção-título: una maravilla muy especial.
 

Martin Scorsese
— a solidão radical do cinema

Foi no começo da década de 1960 que Martin Scorsese teve, pela primeira vez, a ideia de filmar uma vida de Jesus — o livro Conversas sobre a Fé (ed. Casa das Letras), formado por diálogos entre o realizador e o jesuíta e teólogo Antonio Spadaro, evoca esse facto, cruzando-o com uma reflexão plural sobre a filmografia do cineasta.

Martin Scorsese
Procurando esclarecer os muitos cruzamentos do cinema e da fé na vida de Martin Scorsese, a certa altura Antonio Spadaro questiona-o sobre o facto de ter pensado “num filme sobre Jesus desde os anos sessenta”. Numa longa resposta, Scorsese recorda que cresceu numa família em que “ninguém lia livros” em paralelo com o facto de, desde muito cedo, o levarem a ver filmes com regularidade. Fala da conjugação, no seu olhar, da “arte na igreja” com o “movimento num ecrã”, recorda os estudos no Washington Square College (que se tornou a New York University) e refere esse projecto do começo da década de 1960: “Naquela altura queria fazer a história de Jesus: 16 mm, a preto e branco, nos dias de hoje, filmado no Lower East Side, nos prédios degradados e em Bowery, culminando na crucificação nas docas do rio Hudson, junto à West Side Highway… que já lá não está.”
Para Scorsese, a aproximação cinematográfica da personagem de Jesus começou, assim, pontuada por um desejo de realismo indissociável da sensibilidade de uma nova geração de cineastas que terá tido a sua “bandeira” na primeira longa-metragem de John Cassavetes, Shadows/Sombras (1959), uma crónica novaiorquina rodada em 16 mm, a preto e branco.
Scorsese acabou por desistir do projecto, em 1964, quando viu O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, reconhecendo que o autor de Accattone (1961) e Mamma Roma (1962) já tinha concretizado aquilo que, para ele, não passou de um sonho. Permaneceu o essencial: o fascínio por personagens, não autobiográficas, mas com ecos muito pessoais e obsessivos, vivendo as convulsões de uma tragédia íntima centrada na possibilidade (ou na impossibilidade) do triunfo do Bem e, mais do que isso, na reconciliação de cada uma dessas personagens com os seus próprios fantasmas — encarnação exemplar de tal lógica dramática seria Johnny Boy, em Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto (1973), primeira presença de Robert De Niro no universo de Scorsese.
Scorsese é o primeiro a reconhecer e sublinhar que, antes mesmo de ter realizado a sua “trilogia religiosa” — A Última Tentação de Cristo (1988), Kundun (1997) e Silêncio (2016) —, encontramos na sua filmografia várias personagens assombradas por uma missão, concreta ou imaginada, que os ultrapassa e, mais do que isso, ameaça destruir. É o caso do motorista de taxi Travis Bickle, em Taxi Driver (1976) e do pugilista Jake La Motta, em O Touro Enraivecido (1980), este múltiplas vezes evocado no livro com Spadaro. Com duas colaborações que estão longe de ser secundárias na dinâmica temática e narrativa de toda a obra de Scorsese: são personagens interpretadas por Robert De Niro e ambos os filmes têm como base argumentos de Paul Schrader (no segundo, com a colaboração de Mardik Martin).

Dois romances

No centro de tudo isto está, obviamente, A Última Tentação de Cristo, adaptando o romance de Nikos Kazantkakis (disponível com o título A Última Tentação, Edições 70, 2023). O Cristo interpretado por Willem Dafoe é um ser empenhado em afirmar uma irredutibilidade divina que não emana de nenhuma entidade institucional, nem se aquieta num conceito geográfico, nacional ou político. Como diz Dafoe, a certa altura, questionando a multidão dos seguidores de Cristo: “Pensam que Deus vos pertence? Não pertence. Deus é um espírito imortal que pertence a todos, a todo o mundo. Pensam que são especiais? Deus não é um israelita!”
É na impressionante cena da crucificação que o Cristo de Scorsese enfrenta o silêncio do Céu com a pergunta da mais radical solidão: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” É a mesma pergunta que Shusaku Endo destaca no seu Uma Vida de Jesus (edições Asa, 2002), precisamente o romance que deverá servir de base a um filme (A Life of Jesus) que Scorsese tem vindo a preparar e adiar ao longo das últimas décadas. Daí também a incompreensão manifestada pelos discípulos face à tenacidade, e à recusa de espectáculo, com que Jesus defende o primado do Amor. Ou como escreve Endo: “Decididamente, o discípulos eram exactamente como nós, um punhado de homens banais, fracos e cobardes.”

sexta-feira, novembro 15, 2024

A morte quotidiana do pudor

Carol (Todd Haynes, 2015): Cate Blanchett e Rooney Mara

No espaço público, há quem fale ao telemóvel como se estivesse no recato de sua casa: a solidão já não é o que era — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 outubro).

Cena do quotidiano nº 1: num autocarro cheio, um passageiro marca um número no telemóvel e começa a falar com alguém que poderá ser um parente próximo; falam de uma pessoa de família limitada por uma saúde precária, situação que coloca problemas em relação à sua assistência diária e também à gestão da sua conta bancária — a conversa dura a totalidade dos 50 minutos da viagem.

Cena do quotidiano nº 2: num comboio, alguém atende uma chamada no telemóvel, encetando um diálogo pormenorizado por causa de um problema suscitado por uma pessoa que trabalha numa escola; parece haver um enorme mal-estar gerado pelo não cumprimento das regras hierárquicas — a conversa começa algures no meio do país e dura mais de uma hora, até à entrada na estação onde termina a viagem.

Cena do quotidiano nº 3: numa carruagem do metro, ouve-se um telemóvel que é atendido por uma voz ansiosa, em tom algo agastado, perguntando de imediato se a encomenda já foi entregue; segue-se uma altercação que faz supor que, do outro lado, está alguém que não consegue explicar o que aconteceu — o passageiro sai meia dúzia de estações mais à frente, sem interromper o telefonema, continuando a dialogar com a mesma energia.

* * * * *
Que fazer com estes sons que habitam o nosso quotidiano? Não estou a colocar uma questão banalmente pessoal, quanto mais não seja porque, como é fácil perceber, estive longe de ser o único a escutar tais conversas — em boa verdade, a ser socialmente coagido a escutá-las na companhia de uma pequena multidão involuntária e relutante.
Também não quero suscitar qualquer especulação pueril sobre o facto de o telemóvel ser uma aquisição cujo misto de utilidade e fascínio não está em causa. Além do mais, todos temos consciência das funções paradoxais que um telemóvel pode desempenhar, seja na futilidade de uma rixa de namorados, seja num momento trágico em que pode estar em jogo a sobrevivência de seres humanos.
A minha pergunta é: onde está o pudor? Que é feito desse equilíbrio de exposição e contenção que aprendemos também no cinema, através de filmes como Esplendor na Relva (Elia Kazan, 1961), Beijos Roubados (François Truffaut, 1968), Olhos Negros (Nikita Mikhalkov, 1987), A Idade da Inocência (Martin Scorsese, 1993) ou Carol (Todd Haynes, 2015)?
Ao formular tal pergunta, sei dos muitos equívocos que posso atrair, em parte semelhantes aos que, ciclicamente, algumas almas sofridas tentam relançar, preocupados com o “sexo e violência” que se vê nos filmes. Num livrinho muito interessante sobre a evolução dos conceitos de pudor, anterior à idade digital em que estamos a viver (Histoire de la Pudeur, ed. Olivier Orban, 1986), Jean Claude Bologne lembrava o óbvio: qualquer figuração ou narrativa do pudor existe historicamente determinada. Com serena ironia, refere, por exemplo, que “uma mulher nua no século XVII pode ser mais pudica que uma mulher vestida”. Por isso mesmo, não confundamos o assunto com a miséria jornalística da imprensa “cor-de-rosa”, massacrando o seu público com o inventário dos centímetros de pele nua revelados por uma qualquer vedeta de telenovelas.
Perguntar onde está o pudor é, antes do mais, reconhecer as convulsões que têm abalado o chamado espaço público. A obscenidade do Big Brother televisivo e a estupidez social em rede violentaram as coordenadas — mais do que isso: os valores — da privacidade. No limite, muitas pessoas passaram a ignorar, para não dizer menosprezar, o mínimo de recato em relação à sua vida privada.
Os exemplos de utilização dos telemóveis não passam de uma gota de água num oceano de relações humanas em que o pudor é quotidianamente assassinado em nome de uma indiferença visceral. Indiferença em relação aos outros, sem dúvida, mas também indiferença de cada um em relação às singularidades e enigmas da sua própria identidade. Na sua dimensão mais perturbante, são histórias de uma terrível solidão: aquela que não reconhece a solidão do outro.

sexta-feira, novembro 01, 2024

Patti Smith / Halloween

Apesar do barulho dos vizinhos, ou precisamente por causa disso, Patti Smith celebra o Halloween — é mais um video no seu espaço na plataforma Substack, desta vez na companhia do seu pequeno morcego...

Happy Halloween by Patti Smith

Things are Batty

Read on Substack

terça-feira, outubro 29, 2024

Em tempo real

Metropolis (1927): a tragédia do trabalho e do tempo

Nos ecrãs caseiros, o directo televisivo passou a ser o retrato simplista das nossas vivências sociais — ete texto foi publicado no Diário de Notícias (1 setembro).

Cada vez que ouço um leitor de notícias televisivas, ou um dos seus repórteres, a proclamar que aquilo que nos está a ser mostrado acontece “em tempo real”, sinto vontade de lhes perguntar: quando é que o tempo é irreal?
Meio século depois do 25 de abril, a democracia gerou este invencível tabu: não se fazem perguntas sobre o dia a dia na televisão, não se discutem as suas linguagens e os respectivos efeitos sociais. Para lá de muitos contrastes interiores (por vezes fascinantes, não é isso que está em causa), a paisagem televisiva impôs — democraticamente, sem dúvida — uma cultura feita de avalanches de novelas, futebol e Reality TV. A reflexão sobre o tratamento do tempo esbarra, assim, na mesma pueril vulgaridade com que, noutro domínio (mas talvez seja o mesmo…), continuamos a usar a expressão “sexo explícito”, também sem perguntar, por exemplo, que qualidades reconhecemos no “sexo implícito” das telenovelas.
Nada disso interessa os regentes do nosso imaginário audiovisual, quase todos empenhados na mesma tarefa ideológica: garantir que as linguagens do pequeno ecrã não possam ser assunto de reflexão, consagrando-as como produto de um “naturalismo” sem alternativa. Daí o simplismo da expressão “em tempo real” — estar em tempo real seria o triunfo de um qualquer directo televisivo.
O directo televisivo passou mesmo a ser aplicado como apoteose do próprio “conceito” de televisão. Todos os dias, nas televisões de todo o mundo, há exemplos de “enviados especiais” a muitos milhares de quilómetros de distância, protagonizando directos em que se limitam a repetir as mesmas informações que ouvimos pela boca do “pivot” em estúdio. Porquê? Sobretudo: para quê? Para os vermos num cenário alternativo… em tempo real.
Há outra maneira de dizer isto, perversamente marxista nas suas raízes, ainda que as esquerdas tenham desistido de enfrentar a sua complexidade, enquanto as direitas, heroicamente, se dão ao luxo de nunca terem pensado no assunto. É uma maneira que decorre da lógica dominante dos mercados: o tempo, sobretudo se for possível colar-lhe o adjectivo “real”, é uma mercadoria altamente rentável. Veja-se o futebol: pagamos quantias obscenas para ver os jogos em directo porque, em boa verdade, o “tempo real” é, neste caso, de modo muito literal, uma insubstituível mais-valia.
Para mal dos nossos pecados, o tempo obstina-se em ser sempre visceralmente real. Porquê? Porque o tempo de um desastre tratado em apocalípticas horas de imagens e palavras redundantes é tão real para todos nós, consumidores, quanto o tempo do pesadelo mais perturbante é real para o seu incauto sonhador.
Não há maneira de “irrealizar” o tempo porque também não há maneira de dele sair. Quem gosta de cinema, sabe isso: a vertigem de uma comédia burlesca de Woody Allen ou uma aventura galáctica filmada por Stanley Kubrick são o que são porque acontecem no interior de uma duração temporal da qual não há saída possível — mesmo a ficção mais delirante partilha connosco o tempo de uma experiência inevitavelmente real.
Recordemos o exemplo modelar do clássico mudo Metropolis (1927), de Fritz Lang: as barreiras materiais e simbólicas que separam operários e patrões são, certamente, evidentes, mas se tais barreiras alimentam as convulsões da tragédia, isso decorre do carácter inelutável do tempo em que todos existem e que, de alguma maneira, partilham — sem esquecer que, no filme, os relógios têm mostradores de 10 horas, a duração de um turno de trabalho.
Ainda que através de componentes muito diferentes, comunismo e catolicismo pontuaram o século XX com a crença num “além” em que tudo se harmonizaria — um outro tempo, portanto. As respectivas crises contemporâneas são também o espelho do aniquilamento da dimensão sagrada nas nossas sociedades. Agora, “em tempo real”, temos o ecrã televisivo para fingirmos que acreditamos na patética coerência social das nossas solidões. Tudo isso é tão óbvio que só me resta pedir desculpa ao leitor pelo tempo que lhe tomei.

sábado, setembro 28, 2024

Rick Beato: "O YouTube
está a esmagar os meios de comunicação tradicionais"

Fascinante video de Rick Beato — em foco está a presença dominante (esmagadora, precisamente) do YouTube na paisagem em que procuramos, escolhemos e consumimos as mais diversas formas de comunicação.
O título desta nota poderá fazer pensar que Beato não passa de um tradicionalista ressabiado, revoltado contra um instrumento de comunicação que não domina... Nada disso. Aliás, através de números eloquentes, ele demonstra que o seu canal no YouTube é um caso significativo de enorme sucesso. Trata-se, afinal, de expor uma verdade rudimentar, fascinante e perturbante — as nossas relações com as imagens e os sons entraram (já há algum tempo, convenhamos) numa idade moderna, pós-moderna ou pós-pós-moderna, envolvendo novos modos de olhar, diferentes regimes de escuta. Enfim, uma desafiante organização/percepção do mundo à nossa volta.
O video é tanto mais sugestivo quanto se apresenta com um título cuja significação não é o que parece: "Porque é que David Gilmour não vai aparecer no meu canal".

quarta-feira, setembro 11, 2024

A calma, não o caos [citação]

>>> Vou votar por Kamala Harris e Tim Walz na Eleição Presidencial de 2024. Vou votar por @kamalaharris porque ela luta pelos direitos e causas que acredito necessitarem de uma figura guerreira para as defender. Penso que ela é uma líder dotada e com mão firme, e acredito que podemos fazer muito mais neste país se formos conduzidos pela calma e não o caos.

TAYLOR SWIFT

sexta-feira, agosto 30, 2024

Roubar música tem um novo nome: "interpolação"

Rick Beato

Eis uma curiosa, e muito pedagógica, descoberta de Rick Beato: o roubo descarado de notas de uma canção para outra canção passou a ser tratado pela designação chique de "interpolação". Ou como ele pergunta: "Isto não é apenas roubo?" — vale a pena ver, ouvir e reflectir sobre o assunto.
 

quinta-feira, agosto 29, 2024

A beleza perdida

Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882), de Édouard Manet

Será que ainda somos capazes de olhar com olhos de ver para um quadro de Manet? Não é certo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 agosto).

Como e quando aconteceu a desvalorização da beleza? Observe-se a avalanche quotidiana de imagens — da Reality TV aos concertos da chamada música pimba — e o modo como a sua sistemática difusão promove e, mais do que isso, procura naturalizar muitas formas de fealdade. O simples reconhecimento de tal estado de coisas é, ou poderia ser, um vector central de qualquer política cultural. E afigura-se tanto mais significativo quanto importa contornar, ou melhor, superar o infantilismo reinante de muitos discursos sobre o belo.
[ BeauxArts ]
Dito de outro modo: trata-se de fugir do espectro de ideias imposto pelo poder audiovisual da cultura tablóide — fortemente sustentada e alimentada pela normalização do Big Brother televisivo, iniciada há mais de 20 anos — e, pelo menos, reconhecer que a identificação do belo (ou a sua rejeição) existe no coração de qualquer dinâmica cultural.
Importa revalorizar a utilização da palavra “beleza”. Não é fácil, muito menos simples, contribuir para qualquer clarificação do problema, quanto mais não seja porque, da imprensa mais medíocre até ao uso populista dos admiráveis poderes televisivos, assistimos todos os dias ao triunfo de um conceito de beleza ocupado (como se fosse uma ocupação militar) pela vacuidade intelectual e a depressão existencial de “influencers”, vedetas da auto-ajuda, sacerdotes do bem estar universal, etc.
Evitemos, por isso, a vulgaridade estética e os seus agentes. Não se trata de discutir a beleza da pessoa A ou B, eventualmente a comparação da sua beleza com X ou Y. A fulanização da beleza constitui, aliás, o complemento tosco de um pensamento que não ultrapassa as banalidades correntes do marketing e reduz o mundo a mecanismos de “personalização” — há mesmo quem nos queira convencer que, da escolha do mais recente creme depilatório até à descoberta íntima de Deus, tudo é “personalizado” e passível de ser tratado com receitas mágicas herdades de mezinhas medievais.
O desafio que a conjuntura nos coloca é bem diferente — e é, sobretudo, de outra dimensão. O que está em jogo não é a beleza desta ou daquela pessoa, deste ou daquele objecto: é, isso sim, o modo como olhamos o mundo à nossa volta. Ou ainda: a capacidade que temos (ou, definitivamente, perdemos) de construir laços criativos, inteligentes e contagiantes entre o que nos é dado ver e, se possível, a partilha daquilo que vemos com os outros. Nesta perspectiva, a beleza pode ser uma questão de imagens, mas é também, talvez seja mesmo sobretudo, o aparato de circuitos, valores e pensamentos com que reconhecemos que habitamos um espaço comum.
[ Taschen ]
Contemplo os Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882) pintados por Édouard Manet. Resisto à solução pueril de dizer que o pintor soube reproduzir a vida contagiante de algumas flores tão “bonitas”… Na verdade, a mais básica disciplina do olhar recorda-me que as mesmas flores representadas por um pintor medíocre não passariam de um acontecimento banal, incapaz de mobilizar a minha atenção.
Nada a ver com um saber “superior” enraizado no reconhecimento prévio de Manet como personalidade incontornável na história da pintura. Entenda-se: o que está em jogo não é a confirmação da informação contida na ficha da Wikipedia dedicada a Manet (muito útil, reconheço), mas sim a percepção de que o quadro que contemplamos nasce de algo radical e insubstituível. A saber: uma relação. Talvez duas: primeiro, a do pintor com “aquilo” que decidiu partilhar connosco; depois, a do olhar de cada um de nós com o olhar do pintor.
Por que não expor este quadro numa emissão de televisão? Por que não mostrá-lo em silêncio, 60 segundos apenas, para ser visto no nosso ecrã caseiro?
São perguntas de um lirismo selvagem. Perante o estado das coisas constituem, pelo menos, uma arma legítima de reflexão. Afinal de contas, se se gastam horas, dias, semanas a perorar sobre as crises psicológicas que têm pontuado a carreira de João Félix (a quem manifesto a minha solidariedade), será assim tão escandaloso supor que talvez seja salutar não nos esquecermos de Manet? Não tenho a pretensão se supor que sei exactamente o que temos a ganhar, mas observo com tristeza o que vamos perdendo.

>>> Documentário de Jacques Vichet sobre Édouard Manet (2015).

quarta-feira, agosto 28, 2024

A igreja flutuante

Holly Hunter e William Hurt em Broadcast News (1987): onde está a verdade?

Que acontece quando a luta política é uma questão de ecrãs? Afinal de contas, é nesse mundo que estamos a viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).

Revisito as memórias de um dos filmes mais brilhantes que já se fizeram sobre televisão: Broadcast News, uma produção de 1987 com argumento e realização de James L. Brooks (entre nós estreado como Edição Especial). Aliás, corrijo a generalização: o espaço televisivo apresenta-se de tal modo fragmentado, habitado por inconciliáveis maravilhas e horrores, que não faz sentido tratar a televisão como “um” tema — é preciso descortinar e, de algum modo, confrontar as muitas diferenças que o habitam.
Lembrei-me de Broadcast News porque nele ecoa uma questão que, por vias bem diferentes, assombra muitos dos actuais protagonistas do pequeno ecrã, dos jornalistas mais sérios aos concorrentes do Big Brother. A saber: o que é a verdade? E como dizê-la? Ou mostrá-la?
A certa altura, no filme, uma produtora de um canal de informação (Holly Hunter) interroga-se sobre a entrevista feita pelo jornalista-vedeta da sua estação (William Hurt) a uma mulher que foi vítima de violação. Observando a totalidade do material registado para a entrevista, percebe que o grande plano do rosto do jornalista a chorar perante o testemunho da mulher não pertence à entrevista — foi forjado a posteriori.
A moral da história projecta-nos num terreno incómodo: a dicotomia verdade/mentira não esgota tudo o que está em jogo. Não se trata apenas de discutir as virtudes de reprodução (ou os artifícios de encenação) que marcam o dia a dia do pequeno ecrã: o sistema de linguagens de que se faz a televisão, ainda que vendido como “reprodução” do mundo, pode funcionar, de facto, como imposição de uma determinada concepção desse mesmo mundo.
Apesar da sua fina sensibilidade crítica, o filme de James L. Brooks está ainda ligado a uma visão liberal inerente à história clássica de Hollywood, anterior à vertigem de ecrãs em que hoje vivemos. Afinal de contas, movendo-se com arrogante à vontade no interior dessa vertigem, Donald Trump dinamitou a questão da produção da verdade, todos os dias celebrando as apoteoses das mais risonhas ficções — agora, alguns jornais dos EUA (aconteceu há dias no New York Times) relatam mesmo cada comício de Trump contrapondo uma lista didáctica das mentiras por ele propagadas.
Como é que Kamala Harris aparece nesta cenografia de infinitos fragmentos narrativos e, mais do que isso, de incessantes “mensagens” para serem vistas nos ecrãs que povoam o nosso mundo? Eis a difícil conjuntura: deixámos de ter ecrãs que “reproduzam” esse mundo, passámos a viver (nem sempre muito felizes, é verdade) num mundo feito de ecrãs.
As pessoas e entidades que apoiam Kamala Harris compreenderam que Trump há muito investira no fogo fátuo desse mundo de imagens, sendo necessário (politicamente necessário, entenda-se) arriscar no interior das suas coordenadas, sinalizando algumas fundamentais diferenças. Resta saber de que modo, ou até que ponto, o que está a acontecer irá contribuir para a reposição da nobreza do debate político ou, apesar de todas as boas vontades democráticas, poderá reforçar a nossa condição de reféns dos delírios imateriais dos ecrãs que nos consomem.
Quase quatro décadas depois de Broadcast News, Philippe Sollers dava conta da perversa evolução de todo esse aparato informativo no romance La Deuxième Vie (edição póstuma: Gallimard, março 2024). Sou eu que traduzo: “No oceano dos computadores, a televisão brilha como uma igreja flutuante. Cada vez mais planetária, ela tece a rede de um governo mundial. A estupidez vive sobre-informada através da sua ignorância. Vagas de filósofos auto-proclamados lucram com isso e peroram, a horas fixas, sobre todos os assuntos.”
Não é, por isso, ficção científica reconhecer que toda a dinâmica comunicacional das próximas eleições americanas ecoará de forma muito concreta nas práticas audiovisuais e políticas de ambos os lados do Atlântico. Que vão fazer os sacerdotes da informação e os actores da cena política que, mesmo sem nada para dizer, vivem de “aparecer” nos ecrãs? Serão capazes de desistir da preguiça da rotina, escolhendo os sobressaltos da inteligência?

domingo, agosto 25, 2024

O cinema e a sua crise olímpica

Que fazer com as salas IMAX? Sobretudo, que fazer perante a óbvia decomposição temática e formal dos super-heróis que, durante algum tempo, foram os seus ocupantes privilegiados? Eis algumas interessantes e, de algum modo, urgentes questões artísticas e comerciais — este texto foi publicado no nº109 da revista Metropolis (agosto).

No dia 30 de julho, na sua edição online, a Variety publicou um artigo de Carolyn Giardina cujo título, apesar de invulgarmente longo, vale a pena tentar traduzir na íntegra. A saber: “As projecções dos Jogos Olímpicos em salas de cinema sublinham a necessidade dos exibidores terem conteúdos alternativos.”
A conjuntura é esta: nos EUA, 137 salas IMAX transmitiram as cerimónias de abertura das Olimpíadas de Paris, e também eventos de diversas modalidades, sobretudo ginástica e natação. O acontecimento é tanto mais significativo quanto envolveu mais de metade dos ecrãs IMAX que existem no país (são 216, segundo a estatística mais recente, divulgada em julho). Além do mais, tais transmissões reflectem uma genuína disponibilidade do público: um estudo de The Cinema Foundation sobre a frequência das salas revela que 77% dos espectadores estão interessados em “experiências televisivas nos ecrãs de cinema”.
São dados reveladores de algumas questões cristalinas que, já agora, convém lembrar, ao longo da última década têm sido problematizadas, de forma serena e construtiva, por alguns críticos de cinema. Não se trata, entenda-se, de repetir a lengalenga paternalista que proclama o valor insuperável do conhecimento dos filmes no ecrã de uma sala de cinema. Claro que isso envolve uma verdade insubstituível que, em qualquer caso, não anula o valor prático de outras alternativas — assim aconteceu com as cassetes e o DVD, assim acontece com as plataformas de “streaming”.
A crise do cinema nas salas não pode ser reduzida a uma compulsiva vitimização dessas mesmas salas, apenas lamentando o poder efectivo que as plataformas passaram a ter nas nossas opções de consumo. Acontece que as salas não podem — e, sobretudo, não devem — ficar barricadas na noção simplista segundo a qual estão apenas a servir de “montra” para os filmes que, três ou quatro meses depois (ou menos!), vão surgir nas plataformas.
Trata-se de saber se os exibidores — dos EUA ou de pequenos mercados periféricos como o português — arriscam ou não pensar o seu próprio lugar no mercado, recusando uma postura de mera instrumentalização gerida por produtores e distribuidores. Como todas as crises do género, também esta envolve uma oportunidade para repensar opções pontuais e estratégias globais. Na certeza de que os espectadores estão disponíveis para alguma diversificação da oferta.

>>> Trailer de promoção dos Jogos Olímpicos de Paris em salas IMAX (EUA).

sexta-feira, agosto 23, 2024

Política & jornalismo

Esta é uma imagem retirada do site da revista Rolling Stone, integrada numa campanha de promoção de novos assinantes.
É também uma prova muito real de uma componente da conjuntura mediática & imaterial em que vivemos, suscitando reflexões que não podem, sob pena alimentarem o cinismo reinante, encerrar-se numa qualquer dicotomia descritiva, muito menos moralista.
A saber: os circuitos do consumo desempenham um papel central na organização das nossas identidades (públicas & privadas), podendo transfigurar qualquer elemento de qualquer universo das actividades humanas — a começar pela política e incluindo o jornalismo. Keep the faith.

quarta-feira, agosto 14, 2024

A televisão, a política, a sua ilusão e a cultura dela

Dustin Hoffman e Robert De Niro em Manobras na Casa Branca (1997): o que é fazer política?

Como vemos a política nos nossos ecrãs caseiros? Ou ainda: será que a política só existe através de ecrãs? Perguntas dos nossos dias, temas recalcados por quase todos, personagens da política, personagens da televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 julho).

David Mamet
Eis um belo exemplo do modo como a actualidade pode ter tanto de factual como de perverso — desta vez a partir da revisão do filme Manobras na Casa Branca, de Barry Levinson, fabulosa comédia política que tem como base um dos mais brilhantes argumentos escritos por David Mamet (contando, neste caso, com o contributo de Hilary Henkin). Chama-se no original Wag the Dog e, além dos seus méritos cinematográficos, adquiriu um curioso lugar simbólico na política dos EUA.
Isto porque as peripécias do filme e a cena política americana estabeleceram um bizarro curto-circuito. Assim, Wag the Dog chegou às salas no Natal de 1997, contando a história rocambolesca de um Presidente dos EUA (fictício) que, em vésperas de uma nova eleição, coloca os seus conselheiros perante um problema bicudo: ele mantém uma relação secreta com uma mulher e a eventual revelação pública do caso será fatal para os objectivos da campanha em curso. Ora, pouco mais de duas semanas depois da estreia, a 17 de janeiro de 1998, ainda Wag the Dog estava nas salas de todo o país, era revelado o chamado escândalo Monica Lewinsky: tal como o Presidente do filme, Bill Clinton surgia como protagonista de um affaire que se iria transformar numa verdadeira comédia de costumes…
Barry Levinson
Entenda-se: independentemente do “antes” e “depois” do filme, a colaboração Mamet/Levinson não pertence à pornografia tablóide. É mesmo uma das mais elaboradas narrativas que já se fizeram sobre algumas práticas da política dos nossos tempos, entendida e encenada como uma telenovela sem fim, moralista até à náusea. Personagens decisivas serão o conselheiro mediático (spin doctor, segundo a gíria) convocado para apagar o fogo do escândalo e um produtor de Hollywood contratado para, literalmente, criar uma ficção que possa distrair os eleitores americanos das atribulações privadas do seu Presidente — são interpretados, respectivamente, pelos magníficos Robert De Niro e Dustin Hoffman.
Que acontece, então? Pois bem, numa angustiada reunião na Casa Branca, um dos cérebros da pequeno tribo montada para resolver a crise apresenta a solução mais eficaz: “Declaramos guerra à Albânia…” Como? Algumas vozes ainda com alguma sensatez lembram: “Mas não estamos em guerra com a Albânia!” Pois não — basta encená-la… E começa a produção de uma guerra fabricada com ecrãs virtuais.
Seria simplista reduzir o filme à sua “mensagem” mais linear: a televisão mente ou, pelo menos, em algumas situações, pode mentir. Há mesmo nele um sentido visionário que importa referir e revalorizar. Assim, com o passar dos anos e a evolução (que, não poucas vezes, é uma involução) das práticas políticas — nos EUA e em muitas democracias —, a televisão deixou de ser entendida e, sobretudo, praticada como um veículo de informação ou exposição das dinâmicas políticas. No limite, a televisão passou a ser vivida como a própria política. Quanto tentam “encurralar” um adversário, os políticos mais medíocres já não discutem ideias (as suas, se as tiverem, ou as dos outros), limitando-se a invectivar esse mesmo adversário: “Ele tem de ir à televisão explicar-se!”
Instala-se, assim, uma ilusão comunicacional que, em boa verdade, deixou de existir como banal fenómeno de percepção ou pensamento: passou a definir, justificar e fortalecer uma cultura mediática que se alimenta da proliferação das mesmas imagens formatadas no maior número possível de ecrãs. O que, bem entendido, gera um efeito “boomerang” que, perante a inconsciência de muitos, penaliza todos os actores da cena política: se cada um deles não existir em algum ecrã… então é porque não existe!
Rezam as crónicas que Wag the Dog, o título original — cuja tradução literal poderá ser “abanar o cão” ou “abanem o cão” —, é uma expressão que pertence ao imaginário político americano desde meados do século XIX. A sua significação está esclarecida na legenda que abre o filme: “Porque é que o cão abana o rabo? Porque o cão é mais esperto que o seu rabo. Se o rabo fosse mais esperto, abanaria o cão.”
Toda a televisão é assim? Claro que não, mas há um sistema cognitivo que prolifera através de algumas formas ou formatos televisivos em que “abanar o cão” passou a ser o patético resto de linguagem que ainda se atreve a sugerir o desejo de algum realismo. O que, convenhamos, ajuda a compreender a saturação emocional de muitos espectadores — emocional e política, convém acrescentar.

>>> Trailer original de Wag the Dog.

sábado, julho 27, 2024

Denzel Washigton:
informar ou desinformar, eis a questão...

Apesar de tudo, ainda há quem pense, quem se atreva a aplicar o pensamento como uma arte de combater o sonambulismo da (des)informação como excesso de enunciados sem outro propósito que não seja sustentar um fluxo de agitação audiovisual e esvaziamento mental — são palavras de Denzel Washington em 2016, numa sessão de estreia do seu filme Fences/Vedações.
 

sexta-feira, julho 26, 2024

Lady Gaga, olimpicamente

Paris, 26 de julho de 2024: Mon Truc en Plumes, o clássico de Zizi Jeanmaire renasceu nos palcos dos Jogos Olímpicos através da performance de Lady Gaga.
Ou como a música e a iconografia da música popular transcendem as épocas, reinventando as suas formas, renovando a sua magia — dois videos: a versão de Gaga e, em baixo, Zizi Jeanmaire num registo da ORTF, datado de 18 de dezembro de 1968.



terça-feira, julho 23, 2024

Trump como marca

REUTERS / Elizabeth Frantz, Andrew Kelly, Marco Bello, Brian Snyder e Mike Segar

Como se mede a fidelidade de uma multidão a um líder?
Eis uma pergunta que vale a pena repetir face à moda, efémera, que marcou a Convenção Nacional do Partido Republicano, em Milwaukee: pensos na orelha direita, "duplicando" o modo como Donald Trump surgiu, cerca de 48 depois de ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato.
Que fidelidade é esta? Estranhamente (ou talvez não), envolve uma pueril desdramatização da própria entidade que se homenageia. Como se Trump fosse um líder que se definisse, menos pelo sistema de ideias, mais pela iconografia que o seu corpo pode expor e, num certo sentido, sustentar. O que, em última instância, o desqualifica enquanto sujeito, aproximando-o da condição de uma marca — provavelmente, é esse novo poder político que Kamala Harris irá enfrentar.

sábado, julho 20, 2024

Salman Rushdie
— o olho direito da Lua

Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès: a memória que persiste

Através de palavras concisas, Salman Rushdie ajuda-nos a lidar com os erros cometidos pela morte — este texto foi publicado foi publicado no Diário de Notícias (30 junho).

Nas últimas semanas tenho sido acompanhado pelas palavras de Salman Rushdie no seu livro Faca (edição D. Quixote, tradução de J. Teixeira de Aguilar). Estamos perante um exercício radical de memória, embora transcendendo a mera inventariação de factos. O que, evidentemente, não banaliza a perturbação inerente a tais factos, assim resumidos na contracapa: “A 12 de agosto de 2022, trinta e três anos depois da fatwa contra ele decretada pelo aiatola Khomeini, assim que subiu ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, Salman Rushide foi atacado, e quase morto, por um jovem com uma faca.”
Salman Rushdie
O desafio do escritor poderá resumir-se através do enraizamento literário, político e simbólico a que, justamente, as suas palavras tentam responder e corresponder. Na certeza de que o labor da escrita está muito para lá do falacioso conceito corrente — entenda-se: televisivo — de “descrição” do mundo.
Com objectividade e ironia, Rushdie refere o “modo de livre associação” da sua mente. Cita até os seus pensamentos cruzados na noite de 11 de agosto, essa “última noite inocente”. Face ao esplendor da “lua cheia que brilhava sobre o lago”, pensou, entre outras coisas, no instante em que Neil Armstrong pisou a Lua, numa história de Italo Calvino e, por fim, no “momento mais famoso” do filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès (evocado através da reprodução do respectivo fotograma). E acrescenta: “Não fazia ideia, ao recordar a imagem da nave a ferir o olho direito da Lua, daquilo que a manhã seguinte reservava ao meu próprio olho direito.”
O atentado de que foi alvo suscita-lhe outras associações cinéfilas, incluindo os “sonhos que eram reminiscências” de Un Chien Andalou (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, filme “em que uma nuvem que corta a lua cheia se converte numa lâmina a cortar um olho”. Para desembocar na tragédia consumada pelos erros estúpidos da morte: “Uma das razões pelas quais o filme Psycho, de Alfred Hitchcock, é tão assustador é morrerem as pessoas erradas. A maior estrela do filme, Janet Leigh, morre passado cerca de meia hora. Aparece o seguro e avuncular detetive Martin Balsam, tipo deixem-isso-comigo e, mal damos por isso, morre também. É aterrador. Era assim que eu começava a sentir-me. A morte estava a apresentar-se nas moradas erradas.”
Há uma mensagem implícita nestas palavras: o naturalismo pueril da mais formatada linguagem televisiva pode dominar (e, de facto, domina) as trocas informativas em que vivemos, mas revela-se irremediavelmente escasso para lidar com a complexidade da experiência humana. E há também em tudo isto uma tragédia de comunicação que o escritor não sabe como resolver (e o leitor ainda menos): como lidar com o próprio autor do atentado?
Escreve Rushdie, designando-o por “A.”: “Como hei de abordá-lo, o detentor da faca? Circundo-o na minha mente, penso em maneiras de iniciar a conversa.” E também: “Não quero ser demasiado amistoso. Não me sinto amistoso. Mas também não quero ser demasiado hostil. Quero abri-lo, se puder. Como um encontro real é improvável — digamos impossível —, tenho de imaginar a maneira de entrar na sua cabeça. Tenho de tentar construí-lo, torná-lo real. Não sei se conseguirei.”
Ao longo de quarenta páginas, Rushdie arrisca mesmo um exercício teatral em que redige esse diálogo “improvável/impossível” com o homem que tentou matá-lo. Quase no fim, diz-lhe: “Começo a perceber. Você quer ser um servo. Andou à procura de um amo ou de uma ideia que fosse maior que você e perante a qual pudesse curvar-se. Não queria ser livre. Queria submeter-se.” Que acontece, então? O agente da morte responde: “Ainda não percebeu. Só a submissão conduz à liberdade. Essa é que é a porra da questão.”
Subitamente, o nosso tão fútil idealismo colectivo encontra a questão que sempre lá esteve, mas que teimamos em iludir ou menosprezar: a palavra “liberdade” não tem uma significação unívoca, nem é uma moeda de troca universal.