Assim vai o mundo: Charli D’Amelio, 16 anos, é a principal vedeta da nova rede social TikTok; os seus dotes de dançarina, em videos de 15 segundos, valem-lhe mais de 50 milhões de seguidores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio), com o título 'O admirável mundo do TikTok'.
TikTok: eis a nova moda virtual. Apresenta-se como uma rede social para partilha de videos de pequena duração (cerca de 15 segundos, na maior parte dos casos). Concebida pela ByteDance, uma empresa da China especializada em tecnologia da Internet, foi lançada em 2016 no mercado chinês com a designação Douyin. Entretanto, generalizou-se como TikTok, sendo recordista de downloads para os telemóveis de sistema iOS. Números redondos: há 800 milhões de pessoas a usar regularmente o TikTok.
A dimensão do fenómeno justifica que lhe prestemos alguma atenção, tentando compreender a especificidade da sua linguagem. Não se trata, entenda-se, de atrair generalizações moralistas que simplifiquem a evidente pluralidade interna de tais fenómenos, nem de sugerir que há uma espécie de lugar virginal a partir do qual é possível observá-los (no plano pessoal, devo dizer que, em tempos de confinamento, abri duas contas de Instagram, sem que o facto me suscite qualquer queixa ou protesto).
Acontece que os modelos dominantes de “comunicação” que podemos encontrar no TikTok vêm reforçar duas linhas de força da nossa “sociabilidade” virtual: primeiro, a redução do protagonista a uma militante caricatura de si próprio; segundo, a resistência implícita a qualquer forma de duração que ultrapasse o efeito acelerado e efémero de um clip publicitário. Decididamente, tornou-se impossível partilhar com alguém o prazer de assistir a duas horas de um filme de Hitchcock… Tudo isto, importa acrescentar, através da integração de instrumentos de manipulação das imagens (sobreposições, variações de velocidade, etc.) que reduzem a pessoa a uma cobaia virtual, partilhável como coisa fútil e descartável.
O texto de apresentação (de origem brasileira) disponível em várias plataformas portuguesas é revelador: “TikTok é uma comunidade de videos global. Com TikTok criar videos curtos se tornou ainda mais fácil. Grave e edite seus próprios videos com nossos efeitos especiais, filtros, stickers e muito mais. Depois é só compartilhar com o mundo seu talento.”
Eis uma ideologia de “comunicação” que promove a mais grosseira das utopias: o utilizador pode cortar o cabelo, fingir-se ilusionista ou aplicar desodorizante nos sovacos (não estou a inventar) porque está a… “compartilhar com o mundo seu talento”. Com um efeito perverso: qualquer contemplação de imagens que implique mais do que uns breves segundos é desvalorizada, prevalecendo o princípio pueril segundo o qual as imagens já nem sequer servem para lidar com os contrastes do mundo em que vivemos — são meros atropelos caricaturais a que não se atribui qualquer pertinência cognitiva, muito menos estética. O TikTok apela, assim, ao desenraizamento do utilizador, definido apenas através da sua performance no… TikTok.
É verdade que há figuras muito populares do “entertainment”, de Jimmy Fallon e Stephen Colbert a Jennifer Lopez ou Selena Gomez, que já aderiram ao TikTok, induzindo muitas especulações sobre a capacidade de a aplicação vir a gerar receitas astronómicas. Por exemplo: o tema de capa da edição de 6 de maio de “The Hollywood Reporter” não é o novo filme de Tom Cruise (que, já agora, vai ser rodado em órbita, na International Space Station), mas o…
TikTok.
O universo de vedetas criado pelo TikTok está longe de ser uma mera duplicação do que existe nos domínios tradicionais do espectáculo. Assim, Selena Gomez tem 18 milhões de seguidores, o que, convenhamos, é quase penoso face às proezas da actual líder das estatísticas do TikTok, com 54 milhões: é ela
Charli D’Amelio, simpática e talentosa adolescente americana de Norwalk, Connecticut (completou 16 anos no dia 1 de maio), especialista na invenção de novos passos de dança, em bem dispostas fatias de 15 segundos.
Em diversos sites de informação sobre as atribulações deste nosso admirável mundo, verifico que, tal como outras figuras do TikTok, Charli D’Amelio é definida como “social media personality”. Moral da história: os circuitos virtuais já foram promovidos à condição de criadores de “personalidades”.