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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Doca 13

Ao fundo de Cacilhas vira-se à direita, passa-se uma cancela de fronteira e, de repente, entra-se num mundo diferente: um grande estaleiro para reparações navais, um centro de saúde para os gigantes que neste tempo da exploração espacial sulcam os mares da Terra.

Cacilhas, Margueira, portaria dos Estaleiros Navais da Lisnave, c. 1980.
Imagem: Retratos de Portugal

Há no ar um odor a aço, em vez de desinfectante; os estranhos enfermeiros deste centro não usam batas mas têm na cabeça capacetes amarelos, e fatos azuis no corpo. No rosto, em vez de máscaras brancas e esterilizadas, óculos especiais para proteger os olhos da luz intensa das soldaduras. Nas mãos, os bisturis têm formas e nomes estranhos: maçaricos, bicos de acetileno...

"Observador" tinha um rumo definido: a doca seca para navios até um milhão de toneladas, baptizada com o mesmo nome do homem que deu corpo a uma grande empresa portuguesa: Alfredo da Silva. Tem um número temível, o 13, que neste caso poderá ser de fortuna. A sua beira sentimos a vertigem do abismo nos seus 15 m de profundidade. É um buraco enorme de 590 m de comprimento e 90 de largura.

Lisnave, Margueira, doca Alfredo da Silva, doca 13, inaugurada em 23 de junho de 1971.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Visto de cinta do pórtico rolante (65 metros de altura) a tentação da vertigem é muito maior. Os tractores que na altura da nossa visita limpavam o fundo da doca pareciam esses modelos miniaturais que se vendem em qualquer loja de brinquedos. Os homens, formigas...

Lisnave, lavagem de casco de navio com jacto de alta pressão, Augusto Cabrita, c. 1970.
Imagem: É tudo gente morta

Ao espanto físico juntava-se a perplexidade: para executar uma obra desta envergadura houve certamente enormes obstáculos a remover, dificuldades a vencer. Procurámos o engenheiro Álvaro Biscaia Barreto, um dos directores da Lisnave, para esclarecer toda uma série de interrogações:

— Do ponto de vista macroscópico não houve dificuldades para construir esta doca. O financiamento é todo português, através das instituições de crédito governamentais, da Caixa Geral de Depósitos e do Banco de Fomento Nacional, além dos recursos da própria empresa não houve, como se compreende, grande dificuldade em solucionar esta questão que envolvia capitais da ordem dos 600 000 contos, 2 como não há nos restantes empreendimentos em que a Lisnave está empenhada e que representam um investimento da ordem dos 350 000 contos. Esta doca da Margueira é, aliás, o espelho cristalino das possibilidades actuais da técnica e do capital português.

Lisnave, Margueira, doca Alfredo da Silva, doca 13, inaugurada em 23 de junho de 1971.
Imagem: Restos de Colecção

— Há 4 anos, quando da construção do estaleiro da Margueira, embora o projecto fosse português, houve que contar com um suporte estrangeiro. O financiamento foi também estrangeiro. Os equipamentos, em grande parte, vieram do estrangeiro. E passados 4 anos verificamos que fazemos um investimento da mesma ordem de grandeza (900 000 contos) e o projecto é inteiramente português, assim como a sua execução.

Em Junho de 1967 inaugurava-se nos estaleiros da Lisnave uma doca seca para navios até 300 000 toneladas. Quatro anos depois, no passado dia 23, entrava a funcionar uma nova doca para navios até 1 milhão de toneladas. Esta, fruto do trabalho português, 100 por cento. Ao abrir-se concurso para a empreitada de execução das obras, garantido que estava o capital necessário, surgiram empresas interessadas das mais diversas origens: dinamarquesas, suecas, holandesas, norte-americanas e portuguesas. Optou-se por uma destas últimas, segundo o nosso interlocutor, por duas razões:

— Primeiro, porque foi o preço mais barato apresentado; depois, porque era a solução técnica mais rigorosa e desenvolvida.

No entanto, era um risco...

— Foi meditadamente que corremos esse risco porque entendemos que são as próprias empresas portuguesas que devem trabalhar para o desenvolvimento do país. Para nós seria muito mais cómodo entregar a execução do projecto a uma firma americana, mas preferimos uma empresa nacional.

Aviso de inauguração da doca 13.

E o que é certo é que a obra se fez nos prazos estabelecidos, os problemas que surgiram foram resolvidos por técnicos nacionais, com mão-de-obra nacional e com fontes de financiamento nacional. O engenheiro Álvaro Biscaia Barreto vai mesmo mais longe:

— Podemos afirmar que 90 por cento da doca foi feita em Portugal por portugueses. Em 1 de Outubro de 1969 marcámos a data de 23 de Junho de 1971 para a inauguração oficial, e anunciámo-la oficialmente no mundo inteiro. Ninguém acreditou. Eu, por exemplo, que estava em Londres nessa altura, verifiquei que ninguém acreditava na viabilidade de se cumprir o prazo estabelecido. E ele cumpriu-se. Uma doca com as dimensões da "Alfredo da Silva" suscitou novos problemas que tiveram de ser resolvidos graças a soluções inovadoras.

Uma das peças fundamentais para o seu funcionamento é o pórtico a que já nos referimos. Qualquer coisa de espantoso... Dos seus 65 metros de altura é possível descobrir um panorama inesquecível sobre o Tejo e a margem norte. Lisboa, ao fundo, tem novas perspectivas, vista do pórtico.

Lisnave estaleiros da Margueira, aspectos da construção e montagem da doca 13 e do pórtico, Lourdes Matos, 1970-71.
Imagem: A indústria naval em Almada: na rota do progresso, Almada, Câmara Municipal, 2012, 97 págs

Equipam-no 2 ganchos independentes para 150 toneladas cada, além de um gancho rápido para 20 toneladas. A viga transversal tem 125 metros de comprimento e está colocada ao mesmo nível da água que a plataforma ferroviária da "Ponte Salazar". Gastaram-se na sua construção cerca de 50 000 contos. E foi posto de pé por uma empresa portuguesa.

Lisnave estaleiros da Margueira, aspectos da construção e montagem da doca 13 e do pórtico, Lourdes Matos, 1970-71.
Imagem: A indústria naval em Almada: na rota do progresso, Almada, Câmara Municipal, 2012, 97 págs

— Foi a primeira vez que a Mague — disse-nos o eng. Biscaia Barreto —  fez um pórtico desta natureza. Nunca o tinha feito. Pôs-se outra vez o problema: não seria um risco demasiado extenso atribuir a esta empresa a sua construção? Mas nós, conscientemente, resolvemos corrê-lo. Alguma vez teria de ser a primeira, e a Lisnave resolveu que fosse esta. A Mague fez o pórtico. E tão bem se houve que foi já contactada para construir um outro no projectado estaleiro de Setúbal, mais largo, mais alto e capaz de levantar 400 toneladas.

O ouro (negro) da Margueira

O estaleiro da Lisnave na margem sul do Tejo destina-se fundamentalmente à reparação de navios de grandes proporções: petroleiros e mineraleiros gigantes. Beneficiando das características excepcionais do estuário do Tejo e de uma localização geográfica privilegiada nas rotas dos petroleiros gigantes, a Margueira depende em grande parte do comportamento futuro desse negócio impressionante que é o do petróleo em bruto e dos seus derivados.

Lisnave, doca Alfredo da Silva para navios até 1 milhão de toneladas, estaleiros da Margueira.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Investimentos como este que a Lisnave está a fazer representam necessariamente uma aposta no futuro. Ouvimos ainda o eng. Álvaro Barreto:

— É um dos dados de todo o problema da instalação de uma indústria deste tipo. A indústria do transporte do petróleo não está ligada apenas ao tipo de transporte. Hoje é o petroleiro; se amanhã for o submarino, terá que ser diferente. Mas será o petróleo a fonte de energia que se vai manter nos próximos anos? Não irá a energia nuclear, por exemplo, ocupar o lugar do petróleo? Outro ponto a considerar é o das quantidades transportadas No ano passado transportaram-se por mar 1 000 milhões de toneladas de petróleo.

Estas quantidades estão em jogo basicamente por uma razão: há uma zona consumidora, altamente consumidora, que é a Europa Ocidental e que não é produtora; e há uma zona altamente produtora, que é o Médio Oriente, e que não é consumidor. Ora é deste desequilíbrio que nasce toda a rede de transporte. E a existência das frotas de petroleiros é um pouco a razão da existência do grande volume de reparações navais.

Com efeito, os petroleiros representam cerca de 45% do total das frotas de todo o mundo. E é a partir deste ponto que os mais diversos países europeus se lançaram a construir e a manter os seus próprios estaleiros de reparação. Na Holanda, na França, na Suécia ou na Alemanha, como em Portugal, são uma das indústrias mais activas. Todos esses países jogam no desequilíbrio citado pelo eng. Álvaro Barreto quanto aos centros de produção e de consumo.

Tudo se modificaria, por exemplo, se num futuro próximo surgissem perto da Europa jazigos de petróleo que anulassem a necessidade de importar do Médio Oriente. Isto, sem falar na possibilidade de o petróleo deixar de ser a principal fonte de energia do mundo contemporâneo.

— Assim é, na verdade. Mas os estudos que temos feito (e temos estudos e projecções até ao ano 2000) e também os estudos que temos obtido junto de entidades altamente colocadas como Hudson Institute e a OCDE prevêm que a posição do petróleo seja praticamente inalterada no ano 2000, mesmo que a energia nuclear continue a desenvolver-se a ritmo muito acelerado. E não deve esquecer-se que o petróleo é neste momento cerca de 45 a 50 por cento de todas as fontes de energia que existem no mundo.

A energia nuclear, que representa hoje 20 por cento dessas fontes, subirá quando muito a 25 por cento nessa altura. Por outro lado, as reservas de petróleo que, neste momento, estão reconhecidas no mundo, deixam prever que o Médio Oriente continuará a ser o principal centro produtor. Portanto, a indústria de transporte petrolífero vai manter-se pelo menos nos próximos 20 a 30 anos. O que não quer dizer que não haja uma viragem espectacular... E nesse sentido a Lisnave, embora continue a investir seriamente, está a praticar taxas de amortização muito elevadas.

A geografia manda

Uma das vantagens do estaleiro da Margueira sobre os seus congéneres da Europa é a situação geográfica nas rotas do petróleo. Os barcos, em geral; descarregam nos portos do norte da Europa. Mas não podem ser imediatamente sujeitos a reparações porque no seu interior ficam acumulados uma série da gases e de matérias combustíveis. Torna-se necessário fazer a chamada "limpeza de desgaseificação" que num petroleiro com mais de 100 000 toneladas leva 3 a 4 dias.

Lisnave, estaleiros da Margueira, Esso Bayonne, dezembro 1978.
Imagem: Flickr

Para os armadores põe-se uma opção: ou fazem os petroleiros esperar 3 a 4 dias nos portos de descarga para serem aí reparados ou mandam-nos de regresso e fazem a "limpeza" durante a viagem. Esta é a alternativa geralmente escolhida pois o armador tem de contar com a economia de escala que, num petroleiro de 250 000 toneladas, se traduz em cerca de 10 000 libras por dia (cerca de 700 contos).

Isto significa que 3 dias de imobilidade corresponderiam a 200 contos de prejuízo, que o armador pode evitar se puser o seu navio na rota de regresso e mandá-lo reparar num, estaleiro localizado nessa rota. Ora a Margueira está situada a cerca de 4 dias de viagem do norte da Europa. Assim, quando o petroleiro chega às imediações de Lisboa, completou praticamente as operações de limpeza e entra no estaleiro para reparar. Diz-nos o eng. Álvaro Barreto:

— Este é um ponto importante pelo qual a Lisnave tem obtido um sucesso extraordinário em relação aos petroleiros Mas há mais. A Lisnave surgiu numa altura estrategicamente ideal. Depois da guerra, um navio de 16 000 toneladas era um navio gigante. Em 1962, quando estudámos o estaleiro da Margueira, só havia 2 navios acima das 70 000 toneladas.

Portanto, os estaleiros do norte da Europa, mais antigos que o nosso, estavam preparados para esse tipo de navios. De repente, a crise no Médio Oriente, a Guerra dos Seis Dias e todos os problemas políticos que sugiram no mundo, fizeram com que os armadores fossem decisivamente para cima das 100 000 toneladas.

É então que surge a Lisnave e instala imediatamente duas docas: uma para 100 000 toneladas e outra para 300 000, coisa que não havia noutro ponto da Europa. A Lisnave arrancou, assim, primeiro que os outros e estabeleceu-se no mercado mundial. Isso foi há anos. Mas hoje, em 1971, a Lisnave lança uma doca para navios até 1 milhão de toneladas quando a maior que existe neste momento não vai além das 300 000, e muita gente está convencida de que não será possível passar a barreira das 450 000 toneladas. Objecta Álvaro Barreto:

— A Lisnave não está tão convencida como essas pessoas que a coisa vai parar nas 300 000 toneladas. Também há 4 ou 5 anos se afirmava que não iríamos além das 100 000 toneladas e depois das 200 000. Neste momento foi já lançado à água um navio para 372 000 toneladas e há 2 em projecto para 475 000.



Portanto, estamos convencidos de que mais cedo ou mais tarde a evolução tenderá para os petroleiros de 750 000 toneladas ou mesmo até 1 milhão. Mas mesmo que isso não aconteça, a Lisnave estudou a doca "Alfredo da Silva" de tal maneira que pode admitir simultâneamente 2 navios. Fez-se o estudo da viabilidade económica e concluiu-se que o facto de se poder docar 2 navios — um até 100 000 tone-ladas e outro de 250 000 — paga desde já o investimento feito. Simultâneamente ficamos preparados para a eventualidade de os petroleiros atingirem as 750 000 toneladas.

Lisnave, na doca 13 o super petroleiro da Elf, Pierre Guillaumat, 555,051 DWT,  c. 1978.
Imagem: Salvaterra e eu

Cerca de 1755, o futuro Marquês de Pombal encarregou o arquitecto Carlos Mardel de elaborar um projecto de melhoramento do porto de Lisboa, baseado "principalmente na construção de um arsenal que seria, em relação à sua época o maior do mundo".

No século XIX e no princípio do século XX volta à baila a ideia de dotar Lisboa com um moderno porto que acentuasse a presença de Portugal no mercado internacional. Mas a data-chave para a concretização desta ideia fixa-se em 1 de Janeiro de 1937, com a concessão à Cornpanhia União Fabril do estaleiro naval da Administração-Geral do Porto de Lisboa.

E, em 6 de Abril de 1954, com o desenvolvimento da nossa Marinha Mercante, D. Manoel Augusto José de Mello requer, ao contra-almirante Américo Deus Rodrigues Thomaz, então ministro da Marinha, licença para construir no estuário do Tejo uni grande estaleiro naval.

Em 11 de Setembro de 1961 é constituída a Lisnave — Estaleiros Navais de Lisboa, SARL — com o objectivo de continuar a realização do empreendimento. Os seus primeiros accionistas foram 6 estaleiros navais (2 portugueses, 2 holandeses e 2 suecos) e o Banco Fonsecas, Santos e Viana. A autorização governamental para a construção do estaleiro na baía da Margueira (margem sul do Tejo) foi dada em 20 de Novembro de 1962.

A primeira fase ficou concluída em Junho de 1967, data em que foram inau-guradas e entraram a funcionar duas docas, uma para navios até 300 000 toneladas de peso bruto e outra para 100 000. O empreiteiro principal desta primeira fase de obra, em que se gastaram 800 milhões de escudos, foi uma firma holandesa, a Royal Netherlands Harbour Works, de competência reconhecida internacionalmente.
E nessa mesma altura, graças a estudos criteriosos, manifesta-se a ideia de construir a doca para navios até 1 milhão de toneladas, agora inaugurada.
Fonte de divisas

Uma indústria deste tipo é com certeza um corredor largo para a entrada no país de divisas. A este respeito disse-nos ainda Álvaro Barreto:

— Cerca de 85 por cento do nosso volume de vendas é para o estrangeiro. E o nosso valor de vendas é da ordena de 1 300 000 contos. Portanto, poderá dizer-se que o volume anual de divisas que trazemos para o país rondará 1 milhão de contos, com tendência para aumentar logo que a doca "Alfredo da Silva" entre a funcionar em pleno.

Comparada por exemplo com o turismo, e partindo do princípio de que entram 3 milhões de turistas por ano em Portugal. A Lisnave representa cerca de 600 000 turistas em divisas entradas.

A Margueira, que é um estaleiro essencialmente dedicado à reparação naval, terá próximamente um complemento, pelo menos no sentido do que foi anunciado: o estaleiro de Setúbal, destinado construção naval.

— A Lisnave não tem nada a ver com Setúbal. Este é um empreendimento que está a ser estudado pelo grupo CUF. Na Lisnave, 49 por cento dos capitais são estrangeiros e só 51 por cento portugueses. E certo que o grupo CUF tem uma posição importante dentro da Lisnave, mas é este grupo e não a Lisnave que está neste momento a estudar o empreendimento de Setúbal A indústria naval parece ter entrado numa fase de grande arranque em Portugal.

Escudada em estudos criteriosos, promete ser um dos pólos do desenvolvimento nacional, a que o governo não está alheio e procurará certamente estimular. Mas, com a multiplicação de empresas, vai agravar-se o problema da falta de mão-de-obra, se entretanto o fluxo da emigração não for travado.

Deve dizer-se que só na Lisnave trabalham cerca de 4000 operários e técnicos aos quais é exigida, naturalmente, uma especialização num tipo de trabalho que em muitos aspectos é diferente de todos os outros ramos de actividade.

— É evidente que Setúbal vai criar problemas de mão-de-obra a nós e a todos os outros — diz o eng. Álvaro Barreto — Mas estamos convencidos de que o país dispõe de mão-de-obra suficiente. Especializada, não. Mas braços para treinar. É de referir a campanha que a Lisnave está neste momento a lançar junto dos emigrantes portugueses. Estamos certos de que já oferecemos condições de remuneração e sociais que interessarão muito emigrante a voltar para o seu país.

Lisnave, limpeza do fundo da doca com vista a estender a corrente da âncora do navio, Augusto Cabrita, c. 1970.
Imagem: É tudo gente morta

Com efeito a Lisnave está a anunciar em jornais de emigrantes e a colaborar com o Secretariado Nacional da Emigração no sentido de informar os portugueses que trabalham no estrangeiro das condições de vida e remunerações na empresa.

Além de idêntica colaboração com os consulados portugueses na Europa, a Lisnave estabeleceu uma campanha junto dos emigrantes em férias para que visitem as suas instalações e contactem directamente com as condições de trabalho aí proporcionadas. Este aspecto da mão-de-obra é importante no desenvolvimento de uma indústria como a naval, onde a sua participação no valor final do produto é da ordem dos 30 a 35 por cento.

— Este é outro factor que permitiu a concorrência da Livrava com o mercado h000 , • Trabalham aqui 4000 operários e técnicos altamente especializados: braços e cérebros que foram treinados, e certamente roubados à emigração. internacional Não é bem como muita gente às vezes diz que é a mão-de-obra barata. Em geral esta está ligada à menor aptidão profissional e há que distinguir entre os custos e a produtividade.

Lisnave, chantier naval au sud de Lisbonne, Guy Le Querrec, 1974.
Imagem: MAGNUM PHOTOS

O que está mais ou menos provado é que, se pagarmos menos,a produtividade também é mais baixa. Quer dizer, um operário sueco poderá ganhar vez e meia ou duas vezes,o que ganha um operário português. Mas também produz vez e meia ou duas vezes mais. A sua educação básica e a sua formação profissional são muito superiores. O custo da mão-de-obra não é neste momento uma vantagem para nós.

Lisnave, chantier naval au sud de Lisbonne, Guy Le Querrec, 1974.
Imagem: MAGNUM PHOTOS

Até porque, quando entra para a Lisnave, não é especializado. Fomos, por isso, obrigados a ter a nossa própria escola de formação em que investimos anualmente qualquer coisa como 30 000 contos. 

Lisnave, chantier naval au sud de Lisbonne, Guy Le Querrec, 1974.
Imagem: MAGNUM PHOTOS

Neste momento estamos a admitir pessoal só com a quarta classe e o serviço militar cumprido. Vai para a escola de formação durante 2 meses, depois é colacado na produção durante uns á meses e volta à escola para o aperfeiçoamento final. Somos nós próprios que formamos essa mão-de-obra. E isso custa muito caro, o que compensa de certa maneira o facto de a mão-de-obra ser mais barata.
Os trabalhadores

Em Outubro entrará em funcionamento, nas instalações da Lisnave, na Margueira, um dos maiores centros clínicos de empresa do país.

Concebido para satisfazer as necessidades de assistência médica de mais de 12 000 pessoas, será equipado de molde a nele se poderem efectuar serviços e consultas de quase todas as especialidades médicas, incluindo instalações de pequena cirurgia, farmácia e análises clínicas.

Construído em dois pisos, houve a preocupação de localizar no andar térreo todos os serviços essencialmente destinados a pessoas que, pelo seu estado físico, não possam ou tenham dificuldades em subir escadas.

As dimensões do novo posto clínico bastam para provar não só as actuais necessidades do pessoal da Lisnave como até as futuras. Neste momento destina-se a servir mais de 4000 empregados, aos quais se deve juntar cerca de 7000 familiares.

A sua construção foi decidida pelas direcções da Lisnave e da Caixa de Previdência da CUF (na qual se integram os trabalhadores da Margueira) e as obras executadas a expensas da Lisnave.

Epílogo

O repórter passara uma manhã na Margueira. Trazia os olhos cheios desse espectáculo vibrante que é o aço transformado em cascos de navios gigantes, ao pé dos quais um homem é minúscula formiga. Como português, sentia-se satisfeito por saber que na nossa terra já é possível, nos nossos dias, encontrar uma actividade capaz de suplantar o que existe no estrangeiro.

Nesta foto de 22 de outubro de 1973 podem ver-se, da esquerda para a direita, no cais 5, ao fundo, junto à Doca 13, o "Mobil Pegasus" (parte de ré); na Doca 12, o "Nanny"; na Doca 11, o "Texaco Amsterdam" tendo a vante, na Doca 10, em construção, o Bloco de vante do que viria a ser o "Marofa"; no cais 3A, o "Mactra"; no cais 3B, o "Mobil Pegasus" (parte de vante); no cais 2A, o "Warbah"; no cais 2B, (lado a lado) o "Ardvar" e o "Caspian Trader"; no cais 1A, o "Campos Sales"; no cais 1B, o "Epitácio Pessoa" e o "Metula"; no cais 0, o "Marofa", (Bloco de ré).
Nota: Nos cais 1 A e B e cais 0, os navios não estão completamente visíveis. A tonelagem "dead weight" total, destes navios, somava 1.770.000 tdw!

Fonte: Salvaterra e eu

Mais, capaz de ter feito essa obra impressionante que é uma doca seca para navios até 1 milhão de toneladas (a maior em todo o mundo), com projecto, técnica, capitais e mão-de-obra inteiramente portugueses.


(1) Observador, Verbo, Publicações Periódicas SA, 2 julho 1971,
cf.
O Grupo CUF — Elementos para a sua História

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Lisnave
Kong Haakon VII na Lisnave
História alternativa

Informação relacionada:
Rebocalis
O Grupo CUF — Elementos para a sua História

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Galeria da Cova do Vapor

Memórias Coletivas da Cova do Vapor integra-se no âmbito do projeto Casa do Vapor que visa a valorização da Cova do Vapor, assim como a sua divulgação, através da memória subjacente à imagem, que se procura simultaneamente salvaguardar [...]

clique para aceder às imagens

Esta plataforma online consiste basicamente numa base de dados ilustrada, que permita apresentar a um público extenso, os resultados deste trabalho. O site é uma ferramenta aberta, ou seja, que contempla a sua atualização e desenvolvimento. (1)


(1) Memórias Coletivas da Cova do Vapor

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O morro do moinho

Bem perto das Margueiras, existiam terras de cultivo, que garantiam a sustentabilidade dos ocupantes do espaço.

Vista poente de Cacilhas junto ao rio Tejo (detalhe), Plano Hidrográfico do Porto de Lisboa, 1932.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Durante séculos, o trigo, o milho, a cevada e outros cereais, chegavam ao morro sobranceiro ao Tejo, onde os moinhos aí existentes cumpriam a sua função de fornecer aos habitantes a farinha, tão necessária à confecção do pão e de outros alimentos de uso quotidiano [...]

Vista nascente de Almada e Cacilhas junto ao rio Tejo (detalhe), Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Para facilitar a ligação entre o cais de Cacilhas e a Margueira existia um túnel, que passava por baixo do morro, logo a seguir à Lapa.

Junto à Lapa, encostado ao morro, existia um mirante, que se destacava pela sua altura a par do morro, cuja existência alimentou durante muitos anos a imaginação popular [...]

Detalhe da torre e mirante (arquvivo "O Século", Grupo de Obuses Pesados, Manobras militares do Outono), 1937.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

No início dos anos 50 instalou-se aí a fábrica de Manilhas do senhor Patraquim, na sequência do qual foi derrubado o muro existente que delimitava a propriedade e impedia o seu livre acesso, e abriu espaço à instalação de famílias no morro do Moinho.

O Berlinde por um Óculo, fotografia de Fernando Barão.
Imagem: Casario do Ginjal

Este local era conhecido de forma carinhosa por ilha do Papagaio Cinzento [...]

Construções no morro do moinho, c. 1950.
Imagem: Bildarchiv Foto Marburg

Como se torna evidente as habitações eram bastante modestas, sem electricidade, água canalizada e saneamento. 

Porém, no núcleo do moinho, algumas delas estavam acabadas com algum esmero, onde não faltava um pátio de entrada, perfeitamente delimitado com gradeamentos de madeira e passadiço do mesmo material até à porta de entrada das casas, onde pontificavam caramanchões e outras plantas ornamentais [...]

O abastecimento de água era feito através de chafarizes públicos. Inicialmente os habitantes do núcleo norte, desciam a encosta e recolhiam-na num chafariz existente no início do Beco do Bom Sucesso, os habitantes do núcleo do moinho transportavam-na do chafariz que também abastecia a Vila Brandão.

Chafariz de Cacilhas, década de 1950.
Imagem: Flores, A. M., Almada antiga e moderna,
roteiro iconográfico, Freguesia de Cacilhas

Mas no início dos anos sessenta a CMA com trabalho voluntário dos moradores levou a água ate à "Rocha", designação também dada à quinta da "Margueira Velha", onde foram implantados dois chafarizes, um no cimo do caminho por onde se acedia ao morro através do então Largo Costa Pinto que servia o núcleo norte e outro junto ao moinho, a poente, que servia esse núcleo.

Miúdos do Moinho, fotografia de Hélio Quartim, 1976.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Por esta altura foram também construídos balneários públicos com duas ou três cabinas de duche (água fria), um luxo [...]

Demolição de algumas barracas no morro de Cacilhas, c. 1970.
Imagem: Lurdes B. Ferreira

Porém, a centralidade da "Rocha" era, e ainda hoje é, o seu moinho de vento. Ao tempo deste relato era habitado pelo sr. João (João do moinho).

Solteirão, com várias namoradas, recriminado por isso pela sua "velha" mãe quando o visitava. (1)


(1) Farol, O, Associação de Cidadania de Cacilhas, As Margueiras, Contributos para a história de Cacilhas, Junta de Freguesia de Cacilhas, O Farol, 2013, 248 págs.

Artigos relacionados:
O torreão e a Lapa
O incendio da fabrica da Margueira
A menina do mirante




Moinho e moleiro do Oeste, Domingos Alvão, 1934.
Imagem: Moinhos de Portugal no Facebook

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Clube Desportivo da Cova da Piedade

Na Cova da Piedade, tinham sede no jardim central , em torno do qual se erguem dois edifícios monumentais — o palácio neoclássico da família Gomes e um Chalet romântico onde viveu o gerente da fábrica de moagens — , a Cooperativa Piedense, a Sociedade de Socorros Mútuos Piedense, a Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (SFUAP), o Clube Recreativo Piedense e o Sporting Clube Piedense. (1)

Vista Geral — Cova da Piedade ed. desc., década de 1900
Imagem: Delcampe

O Sporting Clube Piedense, da Cova da Piedade, acaba de se filiar na Associação de Foot-ball de Setúbal, pelo que se encontra regular, podendo efectuar jogos com todos os filiações de qualquer associação do paíz [jornal "O Sado", edição de 17 de março de 1935].

in Futebol Saudade

A fundação do Clube Desportivo da Cova da Piedade, em 28 de Janeiro de 1947, foi resultante da fusão entre o União Piedense Futebol Clube (também conhecido pelo epíteto de "Espanhóis", devido às cores do seu equipamento), fundado em 16/04/1914 e o Sporting Clube Piedense [filial nº 67 do Sporting Clube de Portugal].


União Piedense Futebol Clube, "Espanhóis".
Imagem: Dina Teresa

Para a formação do novo Clube foi constituída uma comissão organizadora, composta por Domingos Cabrita Júnior (Presidente), Manuel Palmeira Barbosa, Pedro Lopes Rodrigues, Augusto José Batista, Filipe Andrade Moreira, José Ribeiro de Sousa, Salvador Marques de Assunção, Carlos de Matos Flores, Carlos Peres e Antónia Moreira da Costa.

Clube Desportivo da Cova da Piedade.
Imagem: Voz Desportiva

Durante estes anos da vida da colectividade, houve dirigentes que, pela sua acção, se salientaram, como por exemplo, o Dr. José Malheiro (Director do Boletim Mensal), José Cardoso Rosa e o Dr. Castro Rodrigues, entre outros. 

Os factos mais relevantes da História do Clube, são os seguintes:

No campo cultural, ter mantido, desde sempre, escolas pré-primárias, onde milhares de crianças receberam as primeiras luzes da instrução.

Sorteio Páscoa a favor da ecola pré-primária, 1953.
Imagem: João Gabriel Isidoro

[...] os dirigentes do clube, muitos deles oriundos da classe operária, aperceberam-se da necessidade em receber crianças com idades compreendidas entre os três e os seis anos de idade, não só para ajudar as mães trabalhadoras, como ministrar os primeiros ensinamentos, rumo ao ensino oficial.

Inauguração da escola do Clube Desportivo Cova da Piedade.
Imagem: João Gabriel Isidoro

Nasceu, assim, na Estrada das Barrocas, a primeira escola pré-primária do país que manteve actividade regular, apesar das perseguições políticas aos seus dirigentes e professores.

Alunos da escola do Clube Desportivo Cova da Piedade, 1961.
Imagem: Ana Maria Almeida

Em Novembro de 1963, abriram as aulas nocturnas destinadas a preparar adultos que pretendessem completar o actual 9º ano de escolaridade ou, simplesmente, melhorar a sua cultura geral.  Em paralelo realizaram iniciativas complementares, tais como: exposições de artes plásticas, visitas de estudo e debates com figuras da Cultura, com a presença dos escritores Ferreira de Castro, Bernardo Santareno, Matilde Rosa Araújo, Assis Esperança e os actores Fernando Gusmão, Morais e Castro e Joaquim Benite (encenador).

No ano de 1967 Almada enfrentou a repressão do regime salazarista e as Escolas foram particularmente visadas.

Programa do 10° Aniversário das escolas do Clube Desportivo da Cova da Piedade (excerto), 1973.
Imagem: Fernando Cruz


in Boletim Municipal, Camara Municipal de Almada, outubro 2007

No campo desportivo, a participação de uma equipa de ciclismo numa prova internacional, disputada em Espanha, na qual averbou o 1º lugar individual e colectivo e, ainda, a participação na XII Volta a Portugal em Bicicleta, conquistando o 10º lugar individual e o 4º lugar por equipas. (2)

Cova da Piedade, a multiddão aguardando os ciclistas da 7a Volta a Portugal em 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Fundado a 28-1-1947 teve como actividades de início, o ciclismo, futebol, handebol, voleibol, campismo e ténis de mesa. No desporto-rei, o futebol, conquistou o campeonato nacional da 3a divisão, na época de 1948, ingressando, então. na divisão secundária, onde se manteve só por dois anos.

Equipa de futebol do Clube Desportivo da Cova da Piedade.
Imagem: Futebol de Outros Tempos

Finalmente, em 1960, regressou  à 2a Divisão Nacional, cotando-se, desde então, como um dos principais animadores do torneio, dispondo firmemente a guindar-se a um plano ainda mais alto.

Clube Desportivo da Cova da Piedade.
Imagem: CADERNETAS E CROMOS

Aspecto geral do campo de jogos do clube, denominado Parque Silva Nunes, com lotação para 10 000 espectadores, pelado e com iluminação eléctrica. Os seus lugares são, por vezes, insuficientes para os espectadores que, frenéticos, aplaudem o Desportivo, sonhando vê-lo embrenhado em mais altos voos.

Campo de futebol do Clube Desportivo da Cova da Piedade, Parque Silva Nunes, Quinta das Farias, década de 1960.
Imagem: CADERNETAS E CROMOS

Fotografia de alguns elementos do clube, envergando as suas camisolas de cor "grenat", e alinhando o guarda-redes, normalmente de preto e amarelo. (3)

Equipa de futebol do Clube Desportivo da Cova da Piedade.
Salientaremos, de entre o seu lote de jogadores, os nomes de: Pimenta, Castro, Assis, Simões, Sim-Sim, Rui Silva, Laranjeiro, Jurado, Torres, Vitorino, Pedro Silva, Bambo, Tito e José Alberto.
Imagem: CADERNETAS E CROMOS

Em futebol, o nosso Clube conquistou em 1947/48 e 1970/71 o título de Campeão Nacional da 3ª Divisão e foi finalista na época de 1976/77.

Equipa de futebol do Clube Desportivo da Cova da piedade, época de 1970 - 1971.
Em cima: Portela, Saturnino,  ? (Director), Salvador (Treinador), Durães, Pinhal, Carlos Cunha, Artur Jorge Quaresma, Franklin, Helder, Casimiro, Jesus e Cardoso (Massagista).
Em baixo: Adanjo, Vitorino, Victor Manuel, Necas, Victor Lopes, Adriano, Vieira, Ramusga, Vilarinho e Belo.
Imagem: Armando Ribeiro

Clube Desportivo da Cova da Piedade, aspecto dos festejos da subida à 2a divisão em 16 de maio de 1971.
Imagem: Carlos Castanheira

Conseguiu, também, 5 títulos de Campeão Distrital da 1ª Divisão [...]

Como jogadores mais salientes, entre outros, passaram pelo nosso Clube nomes como Móia, Rendeiro e Luís Boa Morte. 

Já treinaram o Cova da Piedade Mário Wilson, Jacinto Carmo Marques, Alexandre Peics, etc. (4)

Jacinto do Carmo Marques.
Imagem: Ser Benfiquista


(1) Pereira, Joana Dias, A produção social da solidariedade operária: o caso de estudo da Península de Setúbal, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2013
(2) Clube Desportivo da Cova da Piedade
(3) CADERNETAS E CROMOS
(4) Clube Desportivo da Cova da Piedade

Informação adicional:
Futebol em Portugal
Museu do Futebol
Futebol de Outros tempos

O Clube Desportivo da Cova da Piedade e a sua fundação, Stadium n.° 289, 18 de junho de 1948

Informação relacionada:
Casas que a "Stadium" recomenda (1) 
Casas que a "Stadium" recomenda (2)

domingo, 4 de janeiro de 2015

Kong Haakon VII na Lisnave

Um fim de tarde ao largo da costa ocidental de África. O último tripulante acaba de deixar o convés e todos a bordo do enorme petroleiro, 222,513 DWT, preparam-se para a noite. Então algo acontece. Uma enorme explosão — ouve-se um estrondo incrível. Pedaços de aço voam pelo ar e as chamas elevam-se a 300 metros no céu da noite.

Kong Haakon VII, 219000 tdw.
Imagem: Hank Williams Sr. Listings

O milagre da noite, de segunda feira 29 de dezembro 1969, é que ninguém — nem uma única pessoa — é morto ou ferido na explosão. Além dos membros da tripulação do Kong Haakon VII, propriedade de Hilmar Reksten, havia também mulheres e crianças a bordo.

Os próximos acontecimentos testemunham a qualificação dos marinheiros que ajudam a prevenir que a grave extensão dos danos no navio se torne ainda pior. Enquanto as chamas se agitam apenas a cinco metros dos seus corpos, o oficial chefe consegue fechar a escotilha do tanque de residuos localizado entre o tanque 4 e a casa das bombas.

Devido à existência da água de lastro, a explosão, em vez de se propagar ao comprimento, foi forçada verticalmente. Isto permite ao Kong Haakon VII manter a quase totalidade da sua força longitudinal. O navio está operacional e isso é fantástico.

Os tripulantes abandonam o navio nos salva vidas, algo que apenas pode ser feito quando o navio perde velocidade suficiente para permitir a sua descida, o que demorou quase uma hora. Uma hora no convés — com um mar de chamas directamente adjacente. O metal retorcido — inclinado para cima como a tampa de uma lata de sardinhas — serve de escudo, protegendo do calor.

Kong Haakon VII, antes de ser seccionado nos estaleiros da Lisnave, 1970.
Imagem: Kombuispraat

A partir dos salva vidas, os tripulantes observam como as chamas se reduzem gradualmente e acabam por se extinguir na zona onde ocorreu a explosão. Isto aconteceu, provavelmente, devido à limpeza do tanque central n° 4. O convés sobre a secção central do super petroleiro desapareceu como que arrancada.

Há partes de aço desfeito penduradas sobre as partes laterais do navio. Passado pouco tempo, decide-se que metade da tripulação pode regressar a bordo do navio e por o motor em funcionamento. O navio dirige-se a Monróvia na Libéria
 pelos seus próprios meios. O resto da tripulação é regatada dos salva vidas por um navio italiano que se encontra na área.

À luz do dia, os estragos, enormes e massivos, são quase impossíveis de compreender. A maioria dos observadores vê o navio como uma perda total. Mas é aí que as coisas dão uma reviravolta. O Kong Haakon VII está pronto a navegar de novo 11 meses depois — graças à inteligência, coragem e enorme esforços de várias pessoas nos diversos níveis de intervenção.

Todavia, pôr o Kong Haakon VII nas condições que o permitam navegar até um estaleiro com as competências que o permitam reparar, é um trabalho muito exigente. A estrutura do casco necessita ser reforçada.

T/T Kong Haakon VII reparado no estaleiro da Lisnave, Lisboa [Margueira], em 1970, após a explosão ao largo da África do Sul [Libéria].
Imagem: Wikipedia

Um grupo de peritos formado por representantes da Bergen Skipsassuranseforening (agora Norwegian Hull Club), Hilmar Reksten — o proprietário do navio, a Det Norske Veritas, o estaleiro Lisnave em Portugal e o SA Office em Antwerp celebram uma espécia de véspera de Ano Novo na capital da Libéria — antes de irem a bordo do navio acidentado, na manhã do dia de Ano Novo de 1970. 

A Skipsassuranseforening [seguradora em Bergen, Noruega] nomeou Ulrik Qvale como seu nono supervisor. Durante uma palestra para a SCUA [Scandinavian Underwriters Agency] em Lisboa, 30 anos após o acidente, ele escreve o seguinte a propósito do que o grupo viu quando foi a bordo: "Fomos a bordo às 10:30 e tivemos o choque das nossas vidas. Tomámos algum tempo para nos acalmarmos e ser capaz de começar a registar os danos". Rápidamente ficou óbvio que um seria necessário um grande reforço de aço antes que o navio pudesse navegar para o estaleiro para ser reparado. Partindo do princípio de que seria para ser reparado [...]

Kong Haakon chegou ao estaleiro de Lisboa a 2 de abril de 1970 — 3 meses depois da explosão.
O longo processo de oito meses de reparação poderia começar após semanas de limpezas.
Imagem: Norwegian Hull Club

Uma vez na Lisnave, uma limpeza completa do navio teve que ser feita antes que este pudesse ser dividido em três e antes que os verdadeiros trabalhos de reparação podessem ter início. A secção central do navio, severamente danificada, foi colocada na doca de construção, enquanto que as outras duas secções permaneceram acostadas ao cais de reparação.

Kong Haakon VII, Lisnave, Margueira, 1970.
Imagem: ed. desc.

Antonio Machado Lopes e Cornelis Hordijk do estaleiro da Lisnave geriram o intricado projeto de reconstrução. No que diz respeito ao jovem holandês de 25 anos, Cornelis Hordijk, o periodo de 8 meses seguinte virá a representar o ponto alto de sua carreira. Um projeto de proporções gigantescas que ele nunca irá esquecer. Hordijk trabalha no projeto do navio 24 horas por dia juntamente com milhares de trabalhadores portugueses. Todos compreendem que este é um importante projecto de reparação.

Kong Haakon VII no Tejo após a reparação na Lisnave (detalhe), 1970.
Imagem: ed. desc.

Um projeto de reparação com significado para o futuro, que era colocar a Lisnave e Portugal no mapa, e não só na Europa mas através de todo o mundo do transporte naval. Era como se estivesse a trabalhar para a sua nação e para o seu futuro, para além de trabalhar para o proprietário do navio e as seguradoras que acabariam por pagar as contas [...] (1)


(1) Net work — Norwegian Hull Club

terça-feira, 21 de outubro de 2014

SFUAP, origens, teatro e escola

Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, desde 1889.

Cova da Piedade, piscina da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, c. 1970.
Dimensões, em metros: comp. máx., 25; larg. máx., 21; larg. mín., 16; prof. mín., 1,20; prof. máx., 5,40; alt. máx. das pranchas de salto, 15.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

A Sociedade Filarmónica União Artística Piedense é a segunda mais antiga do concelho, e foi fundada a 23 de outubro de 1889.

Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, 23-10-1889.
Imagem: AVM

Foram seu fundadores: Domingos da Saúde, Daniel Andrade, José António Gomes, António Pais Padrão, Manuel Tavares, António Xavier de Araújo, Carlos Ayrens [Ahrens], António Pedroso, Francisco Caramelo e Artur Ferreira Paiva.

Decorridas algumas semanas foi inaugurada a primeira sede instalada no sul do Jardim Público da Cova da Piedade, na chamada "Casa do Freitas". (1)

As origens desta colectividade remontam à velha colectividade "Sociedade Filarmónica União Artística do Caramujo" *  [...] com sede na Rua Direita do Caramujo.
* Sociedade Filarmónica 23 de Julho Caramujense, c. 1876, cf. Centro de Arqueologia de Almada, Cova da Piedade, Património e História, Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 2012.
Neste local funcionou também o antigo "Theatro do Caramujo".

Por volta de 1890, fundava-se o "Theatro Almeida Garrett", também conhecido por "Theatrinho na Cova da Piedade" [...]

Situado onde hoje está instalado o actual Cine-Teatro da "Sociedade União Piedense", tinha sido antes uma adega, propriedade de Pompeu Dias Torres, dono do "Hotel Club" e da maior parte dos terrenos da comunidade piedense. [...]


Hotel Club da Cova da Piedade
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, Freguesia da Cova da Piedade

José Joaquim Correia, ao instalar naquele local uma casa de pasto, que passou a ser conhecida pelo "75", teve a feliz ideia de aproveitar a retaguarda para montar o teatro.

Para isso foi constituída uma sociedade por acções populares, de que foram principais accionistas: António José Gomes. José Joaquim Correia, José Vicente Gomes Cardoso, Joaquim Caetano Veríssimo, José Figueiredo, Manuel Marques "das C"aeiras", Joaquim José Vieira, Sargento Paulo (dos torpedeiros), António Vicente Pais Padrão (industrial corticeiro), mestre António Maria Ribeiro, Carlos Ahrens, António Gonçalves, Joaquim Gonçalves e Alfredo Sandeman.

O primeiro espectáculo no "Theatro Garrett" foi composto pelo drama "O Gaspar Serralheiro" e a comédia "Por causa dum clarinete". [...]

Cova da Piedade, Cine-Teatro da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial

António José Gomes comprou o referido edifício em 1898 e alugou-o à Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (desde 1901), com a renda mensal de 10$00 [sic] a troco de uma quota associativa daquele. Consta que a casa foi alugada por António José Gomes a um cunhado seu, Carlos Ahrens (também fundador da S.F.U.A.P.), na condição da colectividade manter a Banda Filarmónica. [...]

Alguns anos mais tarde, face às inúmeras carências de instrução que afligiam a população, a colectividade enveredou pela instrução, criando uma escola primária [na antiga Cardosa do Caramujo, actual rua Tenente Valadim,] com aulas diurnas para as crianças (na sua maioria, filhos de operários cortíceiros) e nocturnas para adultos. [...] (2)

Alunos da Escola União Piedense, inaugurada em outubro de 1904 na Cardosa.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial

[...] Três semanas após a abertura desta escola, as aulas tinham uma frequência de 110 alunos, lecionados pelo saudoso professor José Martins Simões. Esta obra realizou-a o esforço de alguns ardorosos sócios. A escola possuiu um estandarte próprio, que era o enlevo da garotada, e um grande benemérito desta terra, que foi António José Gomes, de tal modo perƒilhou esta obra, que vestiu mais uma centena de alunos, dando-lhes um ƒardamento.

Os filhos da Piedade, que hoje são homens, devem a esta escola a instrução que disfrutam! António José Gomes patrocinou a escola que aquele punhado de homens criou, e sendo exígua já a capacidade das salas da Sociedade para a regular frequência escolar, edificou aquele benemérito a escola situada na Avenida que tem o seu nome e que é a melhor de todo o concelho!

António José Gomes, década de 1890.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial

Este estabelecimento de ensino, foi. pois inspirado pela iniciativa que teve o seu campo de ensaio — e que profícuo ensaio! — na Sociedade Filarmónica União Artística Piedense. (3)

Escola Primária António José Gomes, inaugurada em 1911, projecto do arquitecto Adães Bermudes.
Imagem: Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial


(1) Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.

(2) Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial (1847 -1909), Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 1992, 175 págs.

(3) Dias, Jaime Ferreira, citado em Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial (1847 -1909), Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 1992, 175 págs.