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quarta-feira, 2 de março de 2022

Bairro de Casas Económicas (ou de Nossa Senhora da Piedade)

Bairro Nossa Senhora da Piedade: este bairro, suscita interesse logo à partida. Este interesse não passa despercebido quando é fácil identificar perfeitamente a delimitação do bairro relativamente à envolvente. É também, motivo de interesse a organização do bairro segundo um traçado hierarquizado e pensado numa determinada forma de edificado, a moradia.

Cova da Piedade, ed. Comér (bairro das casas económicas e capela), década de 1970.
Delcampe

É pois, bastante interessante analisar esta zona para compreender através do estudo das densidades, de que forma esta ocupação tem influência no contexto da cidade e na maneira de sentir e viver o espaço.

O aspecto relacionado com os usos é muito caracterizador de uma determinada área, revelando as tendências e divisões de conjuntos urbanos perfeitamente distintos. Podemos verificar isso mesmo quando observamos o Bairro Nossa Senhora da Piedade, concebido com o propósito de ser um bairro de casas económicas.

Caracteriza-se pela predominância do uso da habitação e pela presença relevante da Escola EB1 No2 da Cova da Piedade e do Centro Paroquial da Cova da Piedade.

Cova Da Piedade, Escola primária do Bairro, 1959-1960.
José Niz

Pretende-se ainda nesta fase, identificar e perceber como é a relação entre o espaço público e o edificado, bem como reconhecer a relação público privado.

Assim, no Bairro Nossa Senhora da Piedade, existe um predomínio da tipologia de Moradia Geminada com a excepção dos equipamentos e da alameda de entrada do bairro, ladeada por edifícios de habitação colectiva.

Bairro das Casas Económicas, Júlio Diniz, década de 1950.
Arquivo Municipal de Almada

Contudo, acaba por constituir um bairro equilibrado quanto às suas tipologias traduzindo uma homogeneidade aparente, não só entre o edificado, mas também entre as vias públicas e o próprio edificado. (1)

A partir do século XX, a indústria ganhou relevo e tornou-se a actividade principal em Almada. Este facto implicou a ida de mão-de-obra qualificada para a zona e consequentemente uma melhoria significativa na habitação, tendo como ponto assente e de grande relevância fixar esta faixa de população em Almada.

Vista aérea da Escola Naval e do Arsenal do Alfeite (mostra o Bairro de Casas Económicas em construção no quadrante direito superior), Mário Novais.
Flickr

Contudo, devido às Guerras Mundiais, a urbanização atrasou-se e só com o termo da 2a Guerra Mundial o Governo Central, e concretamente pela iniciativa da Câmara Municipal, foram contratados os arquitectos Faria da Costa e Étiènne Groer para elaborar aquele que seria o Plano de Urbanização do Concelho de Almada (1946).

Neste Plano de Urbanização estavam abrangidas as freguesias de Cacilhas, Almada, Pragal, Cova da Piedade, Laranjeiro e Feijó.

Por imposição da topografia as margens ficaram pouco exploradas pelo Plano, à excepção do aterro construído para a instalação dos estaleiros da Lisnave, que representava para o Município um sector de grande importância ao nível regional e nacional.

Vista aérea da Cova da Piedade, ed. Comér (bairro das casas económicas à direita na foto), 1953.
Flickr

Assim, o desenvolvimento de Almada efectuou-se através de dois eixos principais que tinham Cacilhas como ponto de convergência: um desenvolvia-se pelas freguesias emergentes (Almada, Pragal e Cova da Piedade) e o outro percorrendo toda a linha de costa que já anteriormente fazia de eixo orientador e de ligação entre aglomerados nomeadamente a Avenida Aliança Povo MFA.

Relativamente à Freguesia da Cova da Piedade foi possível verificar durante a década de 40 o crescimento de ocupações baseadas em programas de casas económicas, nomeadamente o Bairro Nossa Senhora da Piedade.

Delcampe, Bosspostcard

A moradia geminada foi a lógica de ocupação privilegiada, bem como a implementação de equipamentos de cariz social, como o Centro Paroquial da Igreja de Nossa Senhora da Piedade e a Escola EB1 No2 da Cova da Piedade. (2)

Cronologia

1933, 23 setembro - o decreto n.º 23052 estabelece as condições segundo as quais o governo participa na construção de casas económicas, das classes A e B, em colaboração com as câmaras municipais, corporações administrativas e organismos corporativos (art.º 1.º);
as Casas Económicas, como passam a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornam proprietários ao fim de determinado número de anos (propriedade resolúvel), mediante o pagamento de prestação mensal que engloba seguros de vida, de invalidez, de doença, de desemprego e de incêndio (art.º 2º);
as atribuições do governo em matéria de casas económicas são partilhadas pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações (MOPC) e o Subsecretariado das Corporações e Previdência Social (art.º 3.º);
ao MOPC compete a supervisão da construção de casas económicas (aprovação de projetos e orçamentos, escolha de terrenos e sua urbanização, promoção e fiscalização das obras, administração das verbas cabimentadas e fiscalização de obras de conservação e benfeitorias) (art.º 4.º);
é criada a Secção de Casas Económicas na Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) (art.º 4.º);


1943, 24 novembro - pelo decreto n.º 33278, o Governo promove, em colaboração com as câmaras municipais, a construção de 4000 novas casas económicas, localizadas em Lisboa, Porto, Coimbra e Almada (zona de influência da base naval do Alfeite), criando as classes C e D, destinadas às famílias numerosas da classe média;

1949 - é referido, na Exposição "Quinze Anos de Obras Públicas, 1932-1947", que se encontram em construção ou autorizadas 500 casas económicas em Almada; data do plano de urbanização do Bairro Económico de Almada, da autoria do arquiteto Carlos Rebelo de Andrade;

Bairro Nossa Senhora da Piedade, Usos (Anexo I).
Densidade e Forma Urbana...

1950, 21 maio - ofício da Secção de Casas Económicas do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência à DGEMN, informando que em breve lhe será entregue o bairro para distribuição das moradias; solicita ainda, e "após experiência de administração de muitos outros bairros económicos", que sejam elaborados projetos-tipo para as seguintes construções: muros de vedação, anexos destinados a arrumações, garagens, capoeiras e telheiros abrigos;

Chegada do General Craveiro Lopes ao Bairro Económico da Cova da Piedade (27 de Abril de 1952).
Pastéis de AlMadan

1952 - inauguração do bairro, composto por 500 casas.  (3)


(1) Densidade e Forma Urbana, Densificação como valor de projecto e estratégia de desenvolvimento urbano Baixa Altura Alta Densidade
(2) Idem
(3) SIPA

Mais informação:
Empréstimo de 20 mil contos para a construção de um bairro de 500 casas económicas na Cova da Piedade

domingo, 10 de setembro de 2017

A banhos na Margueira com Romeu Correia

A praia da Margueira Velha, que era uma autêntica piscina natural, era um dos locais escolhidos por Orlando Avelar e muitos outros jovens da altura como: Sérgio Malpique, António Calado, Francisco Avelar, Romeu Correia, Ramiro Ferrão e Mário da Cruz Fernandes, para irem ao banho e conviverem. (1)

Saltando da muralha (detalhe).
Imagem: Imagem: Boletim "O Pharol"

Pois esta Margueira (Velha) era livre e a malta ia para lá com plena autonomia. Tinha um esporão que entrava pela água dentro e era aí que a rapaziada aprendia a atirar-se para as salsas ondas do rio.

Para entrar na outra (Margueira Nova) já piava mais fino. Apesar de ser mais solicitada tinha que se passar junto a um Posto da Guarda-fiscal e quando estavam de serviço os guardas Caturra e Barreto, nem pensar por lá seguir.

Aonde é que os meninos vão? Perguntavam os guardas de cinzento...

Nós vamos ao banho, senhor guarda, afirmavam com voz muito humilde. Pois se os meninos querem ir ao banho, vão pela Margueira Velha que a água é igual [...]

Para a doca da Margueira,
Iam os putos reinar,
Quais capitães da areia,
Para ali iam nadar.

Para o rio, na Margueira,
A muralha era um céu,
Acabou-se a brincadeira,
Quando a Lisnave apareceu.

Só em pelo, sem calção,
Todos nus, em ritual,
Mas sempre com atenção,
Ao mau do guarda fiscal. (2)

Venância Quaresma Correia Guerreiro, irmã do escritor almadense Romeu Correia, por parte do pai, nasceu em Cacilhas, no Ginjal no dia 16 de Junho de 1933.

Foto de 1935, na praia da Margueira. Da esquerda para a direita: 1o plano: Francisco Avelar e Orlando Avelar. 2o plano: Eduardo (padeiro), Romeu Correia, Ramiro Ferrão e António Calado. (Foto de Mário da Cruz Fernandes, cedida pelo seu filho Mário Simões Fernandes)
Imagem: As Margueiras

Recorda ainda hoje com vivacidade as suas primeiras idas à praia com o seu irmão, sempre acompanhados por um grupo de amigos, do qual faziam parte Francisco Calado, Francisco Avelar, Francisco Bastos, Sérgio Malpique e Chico Carapinha, Jorge Parada e Adelino Moura, entre outros, quase todos eles praticantes de atletismo.

Naquele tempo, para tomarem um bom banho os jovens não precisavam de apanhar qualquer meio de transporte.

O rio Tejo, com as suas águas límpidas, tranquilas e convidativas, estava mesmo ali pertinho de casa. Era só descer a pé pela rua da Margueira, que se bifurcava em dois caminhos. À direita ficava a praia da Margueira Nova, onde se encontrava a guarita da Guarda-Fiscal, que controlava o acesso à praia de seixos e areia branca, onde a Guarda proibia a entrada à rapaziada. 

No entanto, para alguns privilegiados a mesma guarita servia de vestiário.

À esquerda encontrava-se a praia da Margueira Velha, junto à casa da família Carbone onde se tinha de ter cuidado com as cascas de ostras para não cortar os pés descalços. Por vezes, quando os mais destemidos da malta mergulhavam sem pensar e calculavam mal o nível da maré-cheia, ficavam todos cortados nas ostras. Nesta praia, portanto, tinham de ser ter alguns cuidados e, acima de tudo, aproveitar para tomar banho com a maré bem cheia.

Saltando da muralha.
Imagem: Boletim "O Pharol"

Foi nesta mesma praia da Margueira Velha que o Romeu ensinou a sua irmã Venância a nadar. Mais tarde, haveria também de neste local ensinar a nadar a sua mulher Almerinda.

Cuidadosamente, o Romeu para proteger a irmã quando iam ao banho, levava-a às cavalitas. Na falta de fato de banho apropriado, a pequena ia habitualmente para dentro de água vestida de cuecas, que tinha de secar antes de vestir a roupa. As tias não podiam descobrir que estava molhada, quando chegava a casa, pois ela estava mesmo proibida de ir ao banho.

Vista panorâmica da Margueira (detalhe), Mário Novais, década de 1930
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Uma vez, desprevenida, molhou também o vestido. Estava no pontão a correr, agitando o vestido para o secar, quando se desequilibrou, caiu à água e voltou a molhar completamente as duas peças de roupa que tinha vestido nesse dia.

Margueira antiga (desenho original de Humberto Borges) sobreposição a actual vista satélite no Google Maps.
Imagem: Boletim "O Pharol"

Não tendo tempo para voltar a secar o vestuário, chegou a casa com ele ainda molhado. A partir daí, descoberta a sua já proibida ida a banhos, a menina Venância ficou igualmente proibida pela família de ir à praia da Margueira. (3)

Praia de doce encanto
Onde desde cedo
As crianças se banhavam.
Em suas límpidas águas sonhavam,
Desde manhã
ao sol se pôr na epifania.

Margueira, Anyana, 1981.
Imagem: As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013

Na ansiada hora
Da maré cheia
Eram tão sãos
Os gritos de alegria
Junto aos chamados
Da mãe que os repreendia.

E quando no caminho
Em aromas suaves da aurora
Derramando a vivacidade da sua energia
Aqueles seres pequeninos
Saltavam em pés coxinhos
Como alcatruzes nas noras.

E era tão belo
O correr do momento
E era tão sã
A sã euforia
Que marcaram bem
Na distância
No tempo
O que lhes ficou
No pensamento
O que jamais na razão desaparecia
Vamos! Está na hora da maré!
Era um grito
Na chamada de lar em lar
E sem esperar
Sempre correndo em frente
Aquele magote de gente
Se encontrava em cruzamento das Margueiras,
A nova e a velha,
Como que em juramento
De crédito na vida
No amor, na verdade, na fé plena
Na fé de esperança e caridade
Que corre ainda hoje
Estes caminhos
Nas memórias da saudade.

AnyAna (4)



(1) As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013
(2) As Margueiras..., cf. José Luis Tavares, Almada minha, 2010
(3) As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013
(4) AnyAna in As Margueiras..., Junta de Freguesia de Cacilhas, 2013

Informação relacionada:
Recordar as Margueiras - I
Recordar as Margueiras - II
Júlio Diniz

domingo, 13 de março de 2016

O fado do Virgílio

A praia da Costa de Caparica, ainda ha poucos anos alcunhada de "praia selvagem", é hoje uma das mais concorridas e apreciadas praias de Portugal. Foi como que uma transformação de magica...

Praia da Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Hemeroteca Digital

A praia, que era raramente visitada por uns raros visitantes, bate hoje o "record", da concorrência. Aflui ali, principalmente aos domingos, uma multidão enorme de gente de todas as camadas sociais, ávida de respirar, a plenos pulmões, o ar iodado do mar.

É vê-Ia, logo de manhã cedo, a correr para os vapores quê do Terreiro do Paço e de Belém fazem carreira para a Trafaria e a assaltar as "camionettes" que dali a conduzem á "Praia do Sol".

Trafaria — Caes de embarque, ed. Alberto Aguiar, 6, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Familias inteiras, ajoujadas com seus farneis, vão para lá passar o dia, á sombra acolhedora dos toldos e das barracas de lôna. A população fluctuante da praia, dá-lhe uma vida cheia de movimento e de colorido bizarro.

A Praia do Sol, Um trecho da praia, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, c. 1930.
Imagem: Delcampe

E toda a gente se descalça e se mete na agua, que anda no seu vai-vem constante...

As crianças, umas completamente nuas, outras com os seus mais variados fatos de banho, imprimem-lhe uma nota alegre, chapinhando na agua, á beira do mar, ou a dár cabriolas na areia.

Costa de Caparica, Praia do Sol, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Dentre elas sobressai, pela sua originalidade, um miudo de 7 anos chamado Virgílio, garoto esperto. azougado, que canta o fado sem acompanhamento, demonstrando uma excelênte memoria, pois que do seu "repertorio" fazem parte nada menos de seis cantigas, com o mote e suas respectivas decimas.

O pequeno Virgilio, tisnado pelo sol da praia, alegra a "Praia do Sol" cantando, junto dos visitantes domingueiros, os seus "fadinhos", dizendo os versos numa linguagem cheia de pitoresco...

Grupo de veraneantes na Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Delcampe

Enquanto êle canta, as irmãsitas, a Izaura, a Madalena e a ldalina, apregoam e vendem "agua fresquinha" a tostão cada copo... É uma familia de gente pobre, trabalhadora. O pai trabalha sempre que ha em quê; 

Costa da Caparica, Wolfgang Sievers, 1935.
Imagem: eBay

a mãi acarreta bilhas de agua que as filhitas vendem, bem novas começando na luta pela vida, e Virgilio canta no verão, como a cigarra...

O repórter de O Século, ouvindo alguns pescadores da Costa da Caparica sobre a grave crise que atravessam, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

A grande simpatia que nos inspirou o simpático miudo, inspirou-nos os seguintes versos "virgilianos" que ele aprendeu com facilidade espantosa e aos quais imprime um grande tom de convicção:

Fado do Virgílio 

MOTE

Sou o rival do Menano, 
Canto conto um rouxinol; 
Sou pobre Caparicano 
E alegro a "Praia do Sol"

Filhos de pescadores da Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Hemeroteca Digital

GLOSAS

Apesar de ser pequeno
E viver junto do mar, 
O "fadinho" sei cantar 
No estilo mais ameno; 
Para mim não há "empeno" 
A cantá-lo não me engano, 
Porque sou um lusitano, 
E, por êle, apaixonado, 
Por isso, a cantar o fado, 
"Sou o rival do Menano".


E toda a gente se encanta 
Ao ouvir a minha voz, 
Por aí corre veloz 
A fama desta garganta; 
A mim já nada me espanta 
Que, em breve, esteja no rol 
Dos grandes cantores de escol 
Que assombram com sua Arte, 
Pois eu, a modéstia aparte, 
"Canto como um rouxinol"...

Costa da Caparica, turistas posam à proa de um "Meia Lua".
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Embora eu ande descalço 
E pobremento vestido, 
Por todos sou bem-querido 
Pois não tenho olhar de falso; 
Da Honra sigo no encalço, 
Por ser um dever humano, 
O meu trabalho é insano 
Para não pedir esmola, 
E dizê-lo me consola: 
"Sou pobre Caparicano".

Costa da Caparica, turistas, 1938.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Aos domingos venho à praia 
Vêr mulheres quási nuas 
Que, em Lisboa, pelas ruas, 
Usam mui comprida a saia, 
E quando no céu espraia 
Seus lindos raios, o sol, 
E enquanto dura o "briol" 
E fazem bem às barrigas, 
Eu canto as minhas cantigas 
"E alegro a "Praia do Sol".

Veraneantes na Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Dias que Voam

Por fim, munido de alguns exemplares do "seu" fado, dos muitos que lhe démos, e que um generoso amigo nos imprimiu gratuitamente em bom papel "couchet", o Virgílio distribui-os pelos mais graduados ouvintes, fazendo uma bôa colheita de "corôas" que êle corre a levar á mãi, sem gastar, sequer, um tostão, apesar de, na praia, haver muios "caramelos" e "barquillos" que êle conhece apenas de nome e de vista... 

Trafaria — Avenida Florestal, ed. Alberto Aguiar, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Assim, espera juntar dinheiro para comprar um fato novo para ir à escola, pois, inteligente como é, depressa aprenderá a lêr, preparando-se para a vida. (1)


(1) Lima Pereira, Ilustração, n.° 14, 1933

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Indevidamente chamada de Caparica

O desenvolvimento da propaganda turística em torno da Costa da Caparica chocava, porém, com o nítido atraso ao nível de infra-estruturas básicas de que a povoação padecia – a electrificação e a instalação de água canalizada, o saneamento básico e a construção do Bairro dos Pescadores eram reivindicações locais desde há muito colocadas, bem como a ligação por estrada à Fonte da Telha ou a construção de um estabelecimento hoteleiro [...]

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Este era, na realidade, o grande móbil das elites locais, determinadas em constituir uma estância balnear na margem sul do Tejo.

Turistas na Costa da Caparica, década de 1920.

A acção de Manuel Agro Ferreira (1879-1943) insere-se neste contexto. Este solicitador proveniente da zona de Aveiro, com escritório em Lisboa, desde alguns anos que procurava as praias da Costa por motivos de saúde do seu filho, que sofria de raquitismo.

Em 1933, aproveitando a "política de realizações" do Estado Novo e o investimento então feito na construção rodoviária, Agro Ferreira propôs a construção de uma estrada marginal ao Tejo, que ligasse Cacilhas à Costa da Caparica, à semelhança da Marginal entre Lisboa e Cascais que seria inaugurada no contexto dos centenários.

Agro Ferreira defendia que Lisboa deveria ter acompanhado o Tejo no seu desenvolvimento urbanístico, ao invés de se ter desenvolvido para o interior, pois a sua vocação natural e histórica era desenvolver-se em duas margens.

Para isso, era necessário tornar a margem sul um núcleo importante de actividades industriais, comerciais e turísticas, criando uma avenida marginal que impulsionasse este desenvolvimento.

Esta proposta suscitou o interesse do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, presidido por Duarte Pacheco, que na mesma altura lançava um concurso público para a concessão da ponte sobre o Tejo, que viria depois a ser cancelado, mas que serviria de mote para os anos 50-60.

Agro Ferreira não deixou de continuar a sua luta ao apresentar no I Congresso Nacional de Turismo (1936) duas comunicações: "As praias da Costa, indevidamente chamada de Caparica" e "A Avenida da Margem Sul".

Na primeira, Agro Ferreira salientava o crescimento da Costa como fenómeno singular em Portugal e desenvolvia as suas teses anteriores, ao projectar na margem sul um complemento turístico a Sintra e aos Estoris, tendo como pólos centrais a Costa da Caparica, a Arrábida e o rio Sado.

Hotel da Praia do Sol,inaugurado em 1934.
Imagem: Restos de Colecção

Para que tal acontecesse, era urgente a intervenção estatal para levar a cabo um plano de urbanização na Costa da Caparica que pusesse termo à construção desordenada que até aí se havia verificado , bem como um conjunto de melhoramentos ao nível das vias de comunicação e transportes, do saneamento básico e do abastecimento de água.

Na segunda intervenção, Agro Ferreira sintetizava o seu projecto de 1933, acrescentando-lhe uma alteração, supostamente por sugestão de Duarte Pacheco: em vez de ligar Cacilhas à Trafaria, a Avenida Marginal deveria prolongar-se entre a base do Alfeite e a Costa da Caparica. (1)

A Praia do Sol - Uma vista parcial. Subida para os "Capuchos", dd. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 110.
Imagem: Fundação Portimagem

Só quem não tenha entrado a barra, a bordo dalgum transatlântico é que desconhece a impressão humilhante de ver desaproveitada a margem sul do Tejo, a "margem interdita". É uma vergonha, com franqueza!

Uma avenida que, partindo de Almada, fosse até à Trafaria, transformava magicamente a perspectiva inteira do porto. Dava, em pouco tempo, uma outra vida e uma outra animação ao rio. Modificava em meia dúzia de anos, e com todas as vantagens, a própria fisionomia da capital do País [...] (2)

Publicações de Agro Ferreira, Turismo e o Tejo e Avenida Sul do Tejo, 1933.
Imagem: Livraria Alfarrabista

As Praias da Costa — indevidamente chamada — de Caparica

A região da Costa de Caparica interessa á maior parte da população de Lisboa, pelo menos como seu melhor e mais próximo refugio, durante o verão: interessa a todos os que não queiram fazer a vida faustosa dos nossos Estoris; 

Costa da Caparica, pic-nic da Aliança Libertária, 1932.
Imagem: Mosca

os que tenham os filhos a tratar de doenças para que o regime marítimo é recomendado; aos que buscam repouso e bons ares de pinhais; áquêles para quem o regime especial com que melhor se definam estas praias, é tratamento único em Portugal.

Praia do Sol, Caparica, ed. Guia de Portugal Artístico, M. Costa Ramalho, 1934.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Nesta vastíssima e salubérrima região encontra a população de Lisboa, além de extensos areais e mar aberto - "um grande parque florestal, relvados frescos, árvores copadas, onde brinque, ria, jogue, tome ar puro e verdadeiramente se divirta em intimo convívio com a Natureza durante os dias em que possa fugir ao triste acotovelamento pelas ruas estreitas da cidade e dos cafés em que a mocidade vicía as horas de ócio"; basta atravessar o Tejo...

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Estas praias são terapeuticamente indispensáveis á saúde moral e física da população, ao revigoramento, higiéne e formação dos filhos da décima parte da população do país — que tantos são, pelo menos, os habitantes de Lisboa [...]

Lançada a Praia do Sol, foi forçoso reconhecer que a multidão se aglomerava em dois ou três quilómetros dos 40 ou 50 quilómetros que constituem esta costa ao sul de Lisboa.

Dezenas de milhar de pessoas de diferentes tendencias, de diferente educação e de diferentes meios sociais, acorriam ao mesmo ponto restrito, prejudicando-se mutuamente, criando assim, uns aos outros, mal estar, contrariedade e desagrado.

Costa da Caparica, Vista geral, ed. Passaporte, 01.
Imagem: Delcampe

Inventou-se então a Lisboa-Praia, mais perto da Capital, servida pela ponte da Cova do Vapor e a cêrca de uma légua da Praia do Sol, pela beira-mar.

É indispensável e urgente elaborar uma planta para a Praia do Sol, planta em que se definam arruamentos urbanos de forma a que se não possa construir fóra do que fôr projectado.

Costa da Caparica, Vista parcial e o Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 24, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Para garantia de que essa planta seja respeitada por tôdas as entidades locais, deverá ela ser aprovada pelo Conselho Superior de Obras Públicas.

Assim se evitarão os inconvenientes observados e que tão justos protestos têm levantado, de se estar a construir uma povoação tendente a tomar grandes proporções, sem visão larga do seu futuro, em moldes acanhados e inestéticos, em que muitas vezes as construções ultrapassam os alinhamentos, sem respeito pelas plantas existentes, actualmente, bôas ou más que sejam.

Costa da Caparica, Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 10, década de 1950.
Imagem: Delcampe

A continuar assim, a povoação resultará um aglomerado de casas não só banal mas condenável sob muitos aspectos. (3)


(1) Martins, Pedro, A caminho de um novo paradigma de praia: a Costa da Caparica nos anos 1920-1970
(2) Casario do Ginjal cf. Ferreira, Manuel d’Agro, Avenida Sul do Tejo, Cacilhas-Trafaria", Lisboa, 1933
(3) Ferreira, Manuel d’Agro, As Praias da Costa - indevidamente chamada - de Caparica: Relatório e Plano Geral, I Congresso Nacional de Turismo, Lisboa, 1936

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Largo Gil Vicente

No último quartel do século XIX construiu-se a nova estrada Cacilhas - Trafaria que aproveitou parte das antigas azinhagas. A sul de Almada abriu-se um troço inteiramente novo desde onde é hoje a praça Gil Vicente [...] (1)

Planta do Rio Tejo e suas margens (detalhe), 1883.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

D. Francisco de Melo e Noronha (1863 - 1953)... muito respeitado nesta sua terra de adopção, onde residia em casa própria, no fim da Estrada Nova [...]

D. Francisco de Melo e Noronha.
Imagem: Correia, Romeu,
Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada

A sua residência, conhecida pela Casa do Gato, foi adequada, respeitando a sua vontade, a um liceu. (2)

Almada, Casa do Gato, posteriormente Externato Liceal de Almada (Externato do Gato), década de 1960.
Imagem: Casario do Ginjal

A partir de Julho de 1947 a CMA começou a vender, em hasta pública, os lotes resultantes da expropriação da Quinta do Conde [de Assumar, provavelmente D. João de Almeida Portugal], uma das propriedades sobre as quais incidia o PPUA [Plano Parcial de Urbanização de Almada, aprovado em abril de 1947]. 
Figueirinhas — Nome do sítio que abrangia as terras onde estão hoje o Largo de Gil Vicente, o princípio da Avenida D. Afonso Henriques e o princípio das ruas D. Sancho I e Bernardo Francisco da Costa.
O topónimo está em desuso e mesmo completamente esquecido.

Em 1665 o Conde de Assumar, D. João de Almeida Portugal, arrendou ao Capitão-Mor Álvaro Pereira de Carvalho, uma propriedade no sítio "aonde chamam as figueirinhas" que contactava "da banda do Sul com a estrada pública que vem da Mutela para Cacilhas... e do Norte com a estrada que vem de S. Sebastião para Cacilhas".

in PEREIRA DE SOUSA, R. H., Almada, Toponímia e História, Almada, Biblioteca Municipal, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.

Almada, rua D Sancho I, em segundo plano figuram a "Casa do Gato" e a ainda área rural, década de 1950.
Imagem: almaDalmada

As verbas resultantes da venda de lotes e as receitas da água (desde 1945) foram aplicadas nas amortizações dos empréstimos e na implementação das obras de urbanização [...]

Entrada da Av. Afonso Henriques, Almada, Fotoselo ROTEP
(Roteiro Turístico e Económico de Portugal), 172.

O PUCA [Plano de Urbanização do Concelho de Almada, entregue por Étiènne de Gröer em setembro de 1946] e o PPUA previam o desenvolvimento urbanístico de Almada para sul, em torno de uma avenida central, designada por Rua I (actual Avenida Afonso Henriques) e construída paralelamente ao antigo eixo de ligação a Cacilhas (a chamada estrada nova).

Fotografia de António Homem Christo,
in Almada, a cidade satélite, Revista Eva, Dezembro de 1960.
Imagem: Dias que Voam

Entre as duas vias desenvolver-se-ia o novo centro cívico da vila, comercial, administrativo e religioso [...]

Praça Gil Vicente, vista parcial e início da Estrada Nova, década de 1950.Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

Embora a JAE tivesse assumido a construção da avenida central da zona nova de Almada, que constituía um troço da "estrada turística", e tivesse desenvolvido a sua ligação alternativa a Cacilhas, aquela nunca foi construída, nem as projectadas circulares. 

Almada, Praça Gil Vicente,ed. Postalfoto, 12, década de 1960.
Imagem: Delcampe

A ideia da cidade-jardim foi-se perdendo a partir da aplicação da legislação que reintroduziu a lógica do primado do loteamento particular, em oposição à urbanização planeada e executada pelos municípios da época de Duarte Pacheco. (3)

Almada, Praça de Gil Vicente e fonte luminosa, Ed. da Comissão Municipal de Turismo de Almada, 2, c. 1970.
Imagem: Postais Ilustrados


(1) PEREIRA DE SOUSA, R. H., Almada, Toponímia e História, Almada, Biblioteca Municipal, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.
(2) Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.
(3) Rodrigues, Jorge de Sousa, Infra-estruturas e urbanização da margem sul: Almada, séculos XIX e XX, 2000, 35 págs.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Praça da Renovação

Além do mercado Municipal na sua forma mais antiga, observa-se parte da Estrada Nova, denominada de rua Bernardo Francisco da Costa. A Estrada Nova era, então, o principal trajecto pedestre que as pessoas faziam no regresso à vila, provenientes de Cacilhas. 

Almada, vista poente do novo mercado construído em terrenos dexanexados à então zona rural, 1933.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Este caminho e a calçada da Pedreira (actual rua Elias Garcia) eram até meados dos anos 30, praticamente isentos de propriedades urbanas, sendo apenas circundados por imóveis rústicos.

Almada, vista sul do mercado, da Estrada Nova, a actual rua Bernardo Francisco da Costa e, ao fundo, próximo do "Prédio Queimado", o palácio do Marquês de Fronteira, que o havia herdado da Marquesa da Alorna, sua avó, década de 1930 ou 1940.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

Além da praça, a estampa [abaixo] ilustra, à direita, o edifí­cio da Pensão Barros, o Tribunal em construção e diversas propriedades que nos anos 40, pertenciam ao Casal dos Ser­ras (onde hoje, se situam a rua Fernão Lopes, rua de Oli­vença e parte da avenida D. Afonso Henriques [...] (1)

Almada, rotunda da Praça da Renovação e acessos em construção, c. 1950.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

De facto com o Plano de Urbanização desenvolvido por De Gröer [1946], Almada viu o seu crescimento seguir de forma relativamente mais organizada e segundo um planeamento definido.

Almada, Pensão Barros, rua de Olivença, c. 1950.
Imagem: Maria do Céu Ramos

Contudo, foi na década de 50, com o arquitecto Rafael Botelho em conjunto com a Câmara Municipal e a convite do arquitecto Faria da Costa que surgiu o Gabinete de Urbanização a Câmara Municipal de Almada. 

Almada, Avenida D Afonso Henriques, ed. J. Lemos, 18, década de 1950.
Imagem: Nuno Machado

Neste seguimento, Almada passou a seguir um desenvolvimento de vários estudos urbanísticos, nomeadamente Planos Parciais de urbanização. (2)

Almada, avenida D. Nuno Álvares Pereira, fotografia Julio Diniz, década de 1950.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Foi um acontecimento de relevo para a vida de Almada a inauguração do
 

Café Central

ALMADA que, dia após dia e, em ritmo acelerado, se transfigura e se embeleza, acaba de ser dotada com mais um melhoramento que em muito a valorizará: o novo "Café Central", pertença do conceituado construtor civil sr. João Morgado e situado numa das principais artérias do burgo, Praça da Renovação, "é mais uma pedra que acaba de ser colocada no já grande e imenso plano de melhoramentos locais", levados a cabo pela iniciativa particular, para uma Almada moderna e cosmopolita [...]


in Voz do Tejo, edição de 9 de junho de 1956, citado em almaDalmada

Em Almada havia dois Cafés, lado a lado, separados apenas pela entrada do prédio de três andares, (onde se instalaram nos baixos), e por uma tabacaria que dava para aquela praça.

Almada, Praça da Renovação, ed. J. Lemos, 29, década de 1950.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna... Freguesia de Almada

Um, o maior, era o Central, o outro era o Dragão Vermelho, o tal que eu mais frequentava.

Os referidos Cafés tinham no exterior e á sua frente esplanadas contíguas, voltadas para a Praça da Renovação, onde, especialmente à noite, a tomar cafés e, aos domingos de manhã, a beber um Martini, caía toda a gente semi-chique, tigela e meia-tigela. Chique não havia, ou, se havia, não se notava nem nada dava a entender.

Almada, Praça da Renovação, ed. J. Lemos, s/n, década de 1950.
Imagem: almaDalmada

O Central, embora frequentado pela maioria da populaça, por ser mais amplo e ter alguns refúgios recatados, era o preferido dos chamados intelectuais. Ali escrevia desalmadamente Romeu Correia, despontava Fernando Pernes, que havia um dia ir para a Casa de Serralves, no Porto, e advogados, como o Herculano Pires da esquerda moderada e o Luís Álvaro, uma ave nocturna muito minha amiga, da direita também moderada.

Os dois moderados de sinal contrário, por todas as razões e mais esta, mantinham-se em guerra intestina e odiavam-se figadalmente.

Rotary Club de Almada

Luís Álvaro era dos Rotários, o que na altura dava bastante penacho, e sempre pôs uma bola preta em Herculano para que este dentro deles não conseguisse pôr um só dedo dum qualquer pé. Este e outros rejeitados, cheios de despeito recalcado, haviam de vir a criar os Lions de Almada, não por amor aos ceguinhos, mas como adequada retaliação.

Lions Clube Almada Tejo

O Dr. Luís Álvaro, cerca de vinte anos mais velho que eu, era um jovem companheirão, muito observador e crítico mordaz, com quem me fartei de divertir. Ficávamo-nos umas vezes por Almada a tagarelar e deslocavam-nos algumas até ao Muxito mordiscar um pouco de ambiente nocturno a ouvir, ao vivo, um pouco de música dançável, às vezes com uns fadinhos pelo meio, muito bem cantados pela Saudade dos Santos.


Nas amenas noites de Verão íamos tomar um cafezinho numa qualquer esplanada da já insuportável Caparica, onde a Dona Ausenda, uma matrona livre de compromissos, não sei se solteirona, viuvona ou outra ona qualquer, a ele se atirava descaradamente e ele dela, pelo menos em público, cortesmente fugia a sete, ou mais, pés. Algo me diz que ela era uma das suas consulentes "habituées", daquelas que o iam ver frequentemente ao consultório, como quem ritualmente se vai benzer à bruxa.

O advogado Luís Álvaro vivia e tinha o seu escritório no coração de Almada, bem junto ao jardim e ao novo Tribunal.

Fotografia de António Homem Christo,
in Almada, a cidade satélite, Revista Eva, Dezembro de 1960.
Imagem: Dias que Voam

Conhecia meio mundo, muito mais por dentro do que por fora, e ia-me contando, sem nunca quebrar o sagrado sigilo profissional, engraçadíssimas histórias, muitas delas muito podres, de toda aquela gente de casca muito fina e interior muito grosso de quem ele, de ginjeira, conhecia muito melhor o tenro e escondido miolo do que a dura e bem visível casca. Ríamo-nos os dois, com muito gosto, à custa das graças envenenadas de um e das tretas não menos venenosas do outro, e vice-versa.

Um dos actuais encantos de Almada está precisamente nos imprevistos aspectos que a cidade satélite nos desvenda: eis o velho e romântico petroleiro de carro puxado a mula, contrastando com a moderna linha dos edifícios.
Fotografia de António Homem Christo, in Almada, a cidade satélite, Revista Eva, Dezembro de 1960.
Imagem: Dias que Voam

Ao Dragão ia gente como eu, ou até pior; iam, por exemplo, os irmãos do trio Odemira e vários fadistas e cançonetistas baratos e muito mal cotados; também iam algumas senhoras acompanhadas dos seus maridos a quem, com todo o empenho, notoriamente punham os palitos, para não estar para aqui, em frente de toda a gente, a dizer cornos.

Praça da Renovação, década de 1960.
Imagem: Delcampe

Na Praça da Renovação, hoje abrilescamente designada por Praça das Forças Armadas, havia uma papelaria, uma outra tabacaria, onde eu comprava o “Janeiro”, uma farmácia, um oculista, a Calhandra, (que era um snack-bar), o Stand Mirco, os Correios e, que me lembre,

Praça da Renovação, Almada, Fotoselo ROTEP
(Roteiro Turístico e Económico de Portugal), 173.

pouco ou nada mais. (1)


(1) Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia de Almada, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1985, 189 págs.
(2) Almeida, Gonçalo, Miguel Pires de, Densidade e Forma Urbana..., Densificação como valor de projecto e estratégia de desenvolvimento urbano, Lisboa, Faculdade de Arquitectura de Lisboa, 2011
(3) Isolino de Almeida Braga