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sábado, 7 de setembro de 2019

Chafariz de Cacilhas (os festejos da inauguração)

Foi no domingo dia de grandes festejos em Cacilhas. Logo de manhã começaram a subir ao ar muitos foguetes annunciando a costumada festividade religiosa, e tambem a inauguração do excellente chafariz que a camara municipal mandou construir n'aquelle local.

Chafariz de Cacilhas, inaugurado em 1 novembro 1874.
Biblioteca Nacional de Portugal

Ás 11 horas da manhã sairam dos paços do concelho a camara municipal, que se compunha do sr. presidente Bernardo Francisco da Costa, dos srs. vereadores Antonio de Brito, e Salvador Duarte, escrivão e todos os seus empregados; acompanhavam tambem a camara o sr. Palmeirim, administrador do concelho, o seu escrivão e empregados da administrado, além das diferentes auctoridades, e cavalheiros da terra indo á frente de todos uma excelente philarmonica.

Banda da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, 1894-1896.
InfoGestNet

Chegados a Cacilhas e junto do chafariz, onde se haviam collocado uma meza e cadeiras, estava o sr. engenheiro director o sr. Carlos Agostinho da Costa, soltando a agua e fazendo-a correr pelas quatro torneiras, e fez entrega á camara da obra que lhe havia sido incumbida, lavrando-se em seguida o auto de inauguração, que foi assignado pelas auctoridades e por muitos funccionarios que se achavam presentes, entre os quaes vimos o sr. commendador Holbeche, conservador Quaresma, dr. Loureiro, Manuel de Jesus Coelho, Madureira Chaves, Chichorro da Costa, etc.

As damas mais elegantes de Almada tambem concorreram a embellesar este acto com a sua presença. 

Nas janellas das casas em ter-no do chafariz viam-se magnificas toilettes. 

Encerrado o auto o sr. presidente leu em voz alta a seguinte saudação que foi acolhida com acalorados vivas: 

Retrato de Bernardo Francisco da Costa
Galeria dos Goeses Ilustres

Salve, ó fonte amiga! Manem fecundas e perennaes tuas aguas puras e cristalinas. Nunca tuas forças cancem; nunca teu curso sereno esmoreça; nunca teu doce murmurio cesse.

Salve, ó fonte amiga! A aurora, que hoje esplendida te raia, seja a luz suave que sempre teus dias innocentes doire. Se nas salsas aguas do mar peregrina perdida andavas; se entre os limos do visinho rio teus ricos encantos se iam sumidos; se assim aviltada em lamentavel olvido por seculos se contava esse teu viver mesquinho; por seculos se contém tambem, d'ora avante, teus dias alegres e formosos.

Salve, ó fonte amiga! Tres vezes salve! Mil distantes metros percorrendo risonha vens até ás nossas moradas? Mil vezes bem vinda sejas. Milhares de vezes tuas limpidas aguas possam nossos labios libar. Por milhões valham teus gratos serviços. 

Vem, ó mimosa fonte, ser nossa companheira quotidiana, presidir á hygiene publica, extinguir os incendios. Vem ó fonte meiga, entra sempre copiosa assim na modesta cabana do pobre, como nos amplos salões do rico. Desde muito anciosamonte desejada, a despeito de larga descrença nascida, entre labores arduos creada, com merecida alacridade recebida; vem ó filha deste povo, entre nós e para nós viver.

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto, ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Delcampe

Não te desvaneças porém de seres hoje a unica, que amanhã novas irmãs comtigo á partilha virão. Nem então d'ellas inveja deves ter porque sempre a primogenita has de ser. Nem tão pouco te pése o seres obra modesta e não faustosa, pois sabes que no mundo tudo é relativo, e que por muitos d'aqueiles, que podem apreciar as condições difficeis d'este concelho, foste reputada de fundação quasi impossivel.

Ouves essas harmonias? Escutas essas philarmonica? Sentes o atroar estridente dos foguetes? Observas as bandeiras e galhardetes que as ruas enfeitam? Contemplas gostosa tantas damas lindas, tantos cavalheiros elegantes, que todos risonhos se apinham em torno de ti. Apraz-te este numeroso e alegre concurso? Embevece-te o prazer phrenetico e ruidoso que te circunda? É a tua recepção festival, é o enthusiasmo por um dos muitos melhoramentos de que esta terra carece, e a que justamente o povo aspira.

Anima-o, ó fonte fagueira, para que na larga, se bem que custosa, vereda de creações uteis e produclivas prosiga corajoso. Fortalece-o para que novas victorias nestas lutas incruentas das artes da paz alcance glorioso; para que na marcha encetada não suspenda o passo; para que com outros e mais avantajados beneficios dote este concelho; para que rompa novas vias de communicação e aperfeiçoe as antigas; para que, em uma palavra, a seus obreiros conceda recursos e cooperação.

É pois que tu, ó recemvinda, me dizes que te anima profunda gratidão a este bom povo, por haver quebrado o encanto da tua mofina existencia passada — ao concelho deste districto porque prestes deu todo o superior apoio para a tua regeneraçao — á camara e conselho municipal, que se empenharam até levar a cabo a tua emancipação ao joven architeeto, que com dedicação inexcedível construiu o teu elegante berço e aos proprietarios do Ginjal, Covalinho e Cacilhas que benevolamente coadjuvaram os trabalhos; concede-me o doce encargo de teu interprete e permitte que em teu nome eu diga:

Vivam os habitantes do concelho de Almada. 

Viva o conselho do districto de Lisboa. 

Vivam a camara e o conselho municipal de Almada.

Vivam todos aquelles que cooperaram para se levar a effeito esta obra.

Cacilhas 1 de novembro de 1874.

Seguia-se a ceremonia religiosa que todos os annos se faz, n'este dia, em Cacilhas, em cumprimento de um voto feito por occasião do terramoto de 1755. 

A imagem da Nossa Senhora do Bom Successo, conduzida em procissão pela sua irmandade, vem até á beira mar, pára ali, todos ajoelham, e resa-se um antiphona: é um acto edificante e de muito respeito. 

Cacilhas, imagem da Nossa Senhora do Bom Sucesso em procissão.

Na procissão ia o Santissimo, levado pelo reverendo padre João Pereira Netto, que depois cantou á missa, orando ao Evangelho o reverendo conego Antonio José Pereira. Tanto a festa como o sermão foram rnagnificos.

A todos estes actos seguiu-se um opiparo lunch ao Ginjal em casa do sr. engenheiro Costa, para oque tinha convidado muitos dos seus amigos, e posto que não assistissimos, por motivos superiores aos nossos desejos, com, tudo, bem informados, sabemos que não deixou nada a desejar. O sr. Costa e a sua familia obsequiaram o mais possivel os seus convivas.

Á noite deu sr. presidente da camara um baile esplendido ás pessoas das suas relações, tendo-lhe prestado para esse fim a sua casa o seu intimo amigo o sr. Isidoro Netto, por ser mais espaçosa do que a de s. ex.ª. Tudo foi deslumbrante n'esta reunião de pesssoas de amisade, primeiro que tudo a amabilidade dos donos da casa, depois a animação do baile, a profusao do serviço; em fim não ha phrases com que se descreva o que ali se passou. 

Vista da Praça do Comércio, rio Tejo e Cacilhas na Outra banda, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
  Biblioteca Nacional de Portugal

O baile terminou ás 6 horas da manhã. As toilettes eram em geral de muito gosto. A ex.ª sr.ª D. Luiza Costa tinha um lindo vestido de faie azul claro enfeitado de ramos de flores; — da mesma côr vestia a ex.ª sr.ª  D. Amelia Affonso com toda a elegancia propria da sua ingenuidade; a ex.ª sr.ª D. Amalia Tavares vestia de veludo preto por estar de luto, era rico o seu vestuario; — sua irmã a ex.ª sr.ª   D. Henriqueta Tavares Marques tambem vestia de damasco preto, uma rica toitette; a ex.ª sr.ª   D. Maria José Collares trajava um rico vestido de setim côr de rosa, com enfeitos pretos; — da mesma cõr em damasco, com enfeites brancos, e rendas de França era a toitette da ex.ª sr.ª   D. Izabel Affonso: emfim todas as senhoras estavam elegantissimas. — Foi um baile esplendido na verdadeira significação da palavra. (1)


(1) Diario Illustrado, 3 de novembro de 1874

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Chafariz de Cacilhas

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Cova da Piedade (1873-1886)

1873

Logo ao nascer do sol embandeiraram quasi todas as cazas, e subiram ao ar muitos foguetes em signal de regosijo pelo anniversario da entrada das tropas liberaes. (1)

Almada, vista sul, Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

As casas da villa estavam illuminadas. No largo da Piedade tocavam, antes da chegada da commissão, tres philarmonicas.

Divisava-se em todos os semblantes o maior regosijo. Correu tudo com o maior enthusiasmo, o que se deve ao muito amor dos portuguezes á liberdade, e sem o mais pequeno incidente desagradavel, o que se deve á muita cordura dos cidadãos. (2)

Terreiro da Cova da Piedade, actual Largo 5 de Outubro.
ICMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

A direcção dos festejos por tão fausto acontecimento tinha sido confiada a uma grande commissão composta dos seguintes cavalheiros: — Presidente, Eduardo Tavares — Wenceslau Francisco da Silva — Jose Maria do Valle — Augusto Cesar de Lima — A. L. J. Quintella Emauz — João Antonio Xavier Carvalho Freirinha — Julio Cesar Coelho — Antonio Faria G. Zagallo — S. Duarte Ferreira — Rafael Fortunato Alves Cunha — Antonio Francisco Silva Junior — Manuel Francisco da Silva — Christovam de Mattos— Antonio Candido Lopes — João Alegro Pereira Ernesto — Alvaro Seabra — Barreiros (Delegado) e Guilherme Maria de Nogueira.

Esta commissão veiu de Almada para o largo da Piedade, ás 7 horas da tarde, acompanhada da philarmonica da villa, e de muitas senhoras que todas vestiam de azul e branco.

Banda da Incrível Almadense, c. 1894 - 1896.
Restos de Colecção

Ahi, collocando-se na frente da egreja, o sr. Eduardo Tavares, presidente da mesma commissão e deputado por aquelle circulo, fez um brilhante improviso, commemorando os factos da batalha dada n'aquelle sitio; disse que os que o acompanhavam n'aquella occasião não estavam ali como vencedores, nem tão pouco revestidos de odios de partidos; e appellou para o patriotismo de todos os portuguezes para conservarem a independencia e a liberdade que ha quarenta annos desfrutámos.

Concluído o discurso, o sr. Tavares levantou vivas á liberdade, sendo correspondido pela grande multidão que o cercava. Então deram-se também vivas aos veteranos da liberdade e ao sr Eduardo Tavares.

Eduardo Tavares (1831-1875).
Biblioteca Nacional de Portugal

Em seguida foi distribuído a 50 pobres um bodo que se compunha de 230 grammas de carne, um pão, meio kilo de arroz e 100 réis em dinheiro.

Este bodo foi oflerecido por uma commissão especial composta dos srs. Eduardo Tavares — João Allegro Pereira — Padre João Netto — A. L. J. Quintella Emauz — Manuel Joaquim Motta e Lourenço Anastacio Ferreira de Aguiar.

Durante o bodo tocou uma philarmonica difíerentes peças de musica. Acabado o bodo, dirigiram-se todos ao largo onde se achava collocado o busto do duque da Terceira; e ahi foram levantados novos vivas á liberdade e entusiasticamente correspondidos.

Estátua do Duque da Terceira (detalhe).
Desenho de Simões d'Almeida, gravura J. Pedrozo, 1877.
Biblioteca Nacional de Portugal

Todas as senhoras, como dissemos, trajavam de azul e branco; e todos os cavalheiros traziam ao peito um ramo de perpetuas preso com fitilhos também azues e brancos. (3)

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1874

Damos hoje á estampa a fachada do elegante hotel que ha de inaugurar-se amanhã na Cova da Piedade.

Hotel Club na Cova da Piedade, inaugurado a 31 de maio de 1874.
Hemeroteca Digital

O sitio é realmente lindissimo. Não podia o seu proprietário escolher melhor local. Defronta com o jardim publico que servirá de recreio aos visitantes. 

O hotel tem excellentes accommodações para hospedes. Conhecemos o proprietario e podemos assegurar que o tratamento será excellente.

Deve ser muito concorrido no tempo dos banhos, principalmente porque está proximo de Lisboa e offerece grandes commodidades. (4)

HOTEL CLUB
NA PIEDADE, OUTRA BANDA

DOMINGO, 31 do corrente se imaugurará o novo Hotel Club, casa de café e bilhar, estabelecido em casa apropriada e acabada de construir; reunindo ao mais esmerado aceio todas as commodidades a desejar.
Serviço de almoço, lunch e jantar por lista, e nos domingos e dias santificados jantar de meza redonda. (5)
HOTEL CLUB
NA PIEDADE, OUTRA BANDA

CONTINUA servindo todos os dias por lista.
Aos domingos e dias santificados, ha tambem jantares de meza redonda. (6)

[...] propriedade de Pompeu Dias Torres, dono do "Hotel Club" e da maior parte dos terrenos da comunidade piedense. [...] (7)

Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

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Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os passeantes. 

Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.

Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890
Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos

Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a troco de um tostão [...] 

Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das povoações tristonhas da outra banda.

Terreiro da Cova da Piedade, Rua das Salgadeiras.
ICMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes, ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que, n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a apparencia de um isthmo  [...]

O Tejo em frente do Caramujo, Revista Illustrada, fotografia de A. Lamarcão, gravura de A. Pedroso, 1892.
Fábrica de molienda António José Gomes

Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...]

Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães] (8)

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Cacilhas está se tornando um dos passeios mais lindos para a gente de Lisboa.

Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil
  Casario do Ginjal



A chamada Cova da Piedade acaba de ser elegantemente ajardinada com um coreto de música no centro.

Jardim da Cova da Piedade, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 13
Fundação Portimagem

No último domingo abriu-se ali um Hotel Club magnífico.

O local é encantador. Todos os domingos há música no jardim e é grande a concorrência do povo.

Paço Real do Alfeite, Aguarela, Enrique Casanova
ICabral Moncada Leilões

Perto da Cova da Piedade há a magnífica quinta real do Alfeite, cujas portas el-rei deu ordem para estarem abertas para os visitantes passearem. (9)

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1886

Escrevo-lhes estas linhas de uma pequena, mas bem interessante povoação, aonde vim passar o verão.

Ramalho Ortigão (1836 - 1915).
Wikipédia

A Cova da Piedade fica ao sul do Tejo, a vinte minutos da ponte dos vapores, na estrada de Cacilhas a Cezimbra.

Da bacia da Piedade faz parte a praia do Caramujo para léste, e para oeste o lindo e fértil valle de Mourellos, todo elle um pomar, em que a bella uva trincadeira, de bagos grossos e duros como cerejas, amadurece em enormes cachos, por entre as romanzeiras, as figueiras moscatel, as macieiras e os medronheiros cobertos de fructo.

É uma terra abençoada para a producção.

N'uma estreita nesga de quinta, uma familia habilidosa e diligente vive n'um confortável commodo burguez sem outra renda além da que resulta do cuidadoso amanho da sua vinha e da sua horta [...]

Cova da Piedade, zona rural, Francesco Rocchini, anterior a 1895.
Arquivo Municipal de Lisboa

Durante a mocidade de nossos paes, a Cova da Piedade foi celebre pela casa de pasto do antigo Escoveiro, theatro de memoráveis noitadas de amor e de batota.

O pretexto da concurrencia ao Escoveiro era a sua afamada sopa de camarões e os salmonetes, que elle preparava do um modo especial, mettendo-os no forno envoltos n'um papel com manteiga, e servindo-os em sumo de limão, polvilhados de pimenta. 

Botequim de Lisboa no século XIX, Alberto de Sousa, 1924.
Museu da Cidade de Lisboa

Uma belleza! Comidos os salmonetes, armava-se a mesa do monte e muitos dos estroinas celebres da terrível Lisboa de ha trinta annos abancavam ao jogo até o outro dia pela manhã [...] 

Ainda hoje, depois de tantos annos, o prédio respectivo, á entrada da estrada de Cezimbra, sempre fechado, de frontaria apalaçada, mas ennegrecida, tem como um ar de desgraça.

Extinto o Escoveiro, veio o José [Joaquim?] dos Melões, e as merendas populares suecederam-se aos jantares e ás ceias da burguezia romântica.

No Lazareto de Lisboa, Joaquim dos Melões, Rafael Bordalo Pinheiro, 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Hoje, o logar é um considerável centro industrial, com uma grande officina da moagem a vapor e quatro fabricas de rolhas, no sitio do Caramujo.

Tejo junto à Praia do Alfeite, António Ramalho, 1880.
Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004

Ha abastados agricultores, intelligentes e instruidos, tomando a terra a serio como Pompeu Dias Torres, que amanhece a anoitece a cavallo, e percorre quotidianamente a área de toda a sua lavoura, dirigindo em pessoa as cavas, as mondas, os varejps, as podas, as vindimas, as lagaradas, as cortimentas, todos os serviços emflm da grande lavra; 

e como Paulo Plantier, que na sua quinta do Pombal fabrica o mais especial vinho branco da região e as mais bellas rosas de todo o paiz, em rosaes de dez mil pés, cingidos de sementeiras preciosas de morangos e de melões da mais fina e delicada selecção horticola.

Paisagem com casa, Bertha Ortigão.
Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008.
Arcadja

Além d'estes elementos de actividado o de riqueza local, quasi todas as pequenas casas da população indígena da Piedade são, mais ou menos, restaurantes campestres, com a taberninha á frente, o retiro bucólico ao fundo, com a mesa de jardim debaixo do parreiral ou do aboboreiro, e o terreno para o jogo da malha ou do chinquilho, a um lado da horta. 

Porque não ha dia lindo, com céu azul, quer de verão, quer de inverno, em que uma alegre burricada ou uma cavalgada impetuosa não passe com os respectivos cavalleiros aguçados de appetite pelo ar vivo do campo, uns ávidos de coelho guizado, de fritura d'ovos e chouriço, e de salada de pimentas, outros sequiosos da frescura de um melão maduro e da espuma vermelha do vinho palhete de Santa Martha ou do S. Simão, sugado pela chupéta ao batoque do casco e decilitrado ao pé da mãi.

Almada [Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1990, 318 págs.

Os estudantes e os caíxeiros preferem nas excursões equestres os esgalgados o escancellados cavallos de Cacilhas, aos quaes elles se impõem o dever sagrado de tirar em duas horas de gineta as manhas de uma vida intoira de mortificação e de jejum.

Os mestres d'officios com suas mulheres, os pequenos logistas com as suas famílias, as coristas do theatro do Recreio ou da Trindade com os músicos ou com os poetas seus amigos, as costureiras e as cocottes com os seus companheiros, optam pelos burrinhos, em cujos albardôes o guarda-pó do cavalleiro, enfunado ao sopro, da brisa, e as bamboloantes botinas da dama, descobertas até o ultimo botão, são logo dopois de montar um começo auspicioso de festança. 

Burricada, Veloso Salgado.
Cabral Moncada Leilões

E na minha qualidade de paizagista eu bemdigo os que continuam a ser pela velha tradição da burricada cacilheira, porque não ha cousa que mais avivente e alegre o macadam poeirento, faiscante de sol, entre os aloés e as oliveiras alvacentas da beira das estradas, do que essas luminosas manchas movediças de guardas-sol brancos, azues e vermelhos, trespassados de sol, por baixo das quaes tremeluz em leves e fugidias pulverisações de prata, a terra solta, ferida pelo choto miudinho dos jericos. (10)


(1) Diario Illustrado, 24 de julho de 1873
(2) Idem
(3) Idem, ibidem
(4) Diario Illustrado, 30 de maio de 1874
(5) Diario Illustrado, 30 e 31 de maio de 1874
(6) Diario Illustrado, 7 de junho de 1874
(7) Flores, Alexandre M., António José Gomes: O Homem e O Industrial (1847 - 1909), Cova da Piedade, Junta da Freguesia, 1992, 175 págs.
(8) Diário Illustrado, 31 de julho de 1874
(9) Diário do Maranhão, sexta-feira, 26 de Junho de 1874
(10) Gazeta de Noticias, 7 de dezembro de 1886 

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Cova da Piedade elegante e encantadora em 1874
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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Cova da Piedade, 1874

Atravessando o Tejo, e desembarcando em Cacilhas, outro campo de distracções se nos depara.

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Onde ainda ha pouco se encontrava por unico vehiculo o proverbial burro de Cacilhas, com o seu peito hirsuto de animal faminto, burro explorado cruelmente pelo burriqueiro seu dono, que engordava de rico á proporção que emmagrecia a olhos vistos o animalejo, capital vivo da sua industria asinina, encontram-se hoje numerosas seges e carros, que por uma estrada fácil e curta conduzem os passeantes á Cova da Piedade.

Chafariz de Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 4, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Confessemos que este nome tem um não sei quê de mysticismo sombrio. Cova da Piedade! Não faz lembrar esta designação os titulos d aquellas paisagens, ora melancólicas, ora medonhas, entrevistas por Bunyan na "Viagem do Peregrino" [John Bunyan (1628-1648), The Pilgrim's Progress], uma das obras primas da litteratura ingleza e da imaginação humana?

Vista parcial do lado sul de Almada, Possidónio da Silva, 1863
Imagem: Revista pittoresca e descriptiva de Portugal


É nessse livro de comoçoes violentas e de horríveis visões da alma, que se rasgam as gargantas dos montes mais sinistros que a nossa imaginação pôde phantasiar; é ali que se abre a nossos olhos o abismo sombrio e terrível a que Bunyan chamou "O valle da sombra da morte", valle tenebroso, em que se erguem pilhas de ca da veres desfigurados dp gente morta pelos gigantes que hahitam aquellas cavernas. A cidade de destruição, a lagoa tristonha, o valle da humilhação, valle retirado e verdejante, não podiam ter por companheiros mais outro logar que se chamasse "A cova da Piedade"?

Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

Pois apesar do titulo, que convida aos terrores do ascetismo solitário, não conhecemos logar que mais se anime de rumores profanos. Fez-se um jardim, que está povoado de arbustos ainda tenros. Ao meio d'elle, um coreto onde ás tardes dos domingos uma orchestra entretem os passeantes. Á roda do jardim edificações novas, alegres, e a poucos passos d'ali o hotel Club, que respira limpeza e aceio.

Hotel Club na Cova da Piedade, inaugurado a 31 de maio de 1874.
Imagem: Hemeroteca Digital

Á beira da estrada o Salão Veneziano, com os seus gelados e sorvetes e o seu champagne democrático, porque se serve aos copos, e cada copo a troco de um tostão. Digam-me se ha cerveja mais barata do que este champagne, que por escrupulos de seriedade não se atreve a espumar nos copos, tão grave é a sua compustura e tão urbana a sua effervescencia mesmo debaixo dos tectos de um salão veneziano, titulo que nos despeita na memoria as orgias pintadas por Paulo Veroneso, e as desinvolturas tempestuosas do Byron na poética cidade dos Doges.

Terreiro da Cova da Piedade, actual Largo 5 de Outubro.
Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes

Os ranchos cruzam-se com vivacidade meridional; no hotel nota-se continuo fluxo o refluxo de hospedes; de toda a paisagem allumiada pelas scintillaçòes e pelos raios do nosso bello sol exhala-se um aroma de contentamento, e de bem estar; n'uma palavra, respira-se na margem de além Tejo o ar saudavel da civilisação, ar perfumado de um certo conforto, que até agora não era o distinctivo dos areiaes ardentes e das povoações tristonhas da outra banda.

Cova da Piedade, Rua das Salgadeiras.
Imagem: CMA cf. Fábrica de molienda António José Gomes


N'um paiz, em que o gosto pelas diversões marítimas fosse um sentimento popular, profundamente gravado na imaginação e nos hábitos communs, que admiravel theatro lhes estava aberto na vasta enseada do Tejo, a qual encurvando-se largamente diante da cidade, e bordando-se em suas margens ora de vinhedos, ora de praias arenosas, ora de pinhaes, ora de logares e de villas, que na brancura do seu cáio parecem lavradas de alabastro, aproxima-se de Lisboa pelo pontal de Cacilhas, que, n'este ponto, dá á margem fronteira, entalada entre a enseada e o rio, a apparencia de um isthmo  [...]

Paisagem com casa, Bertha Ortigão.
Cat. Palácio do Correio Velho, 17 de dezembro de 2008.
Imagem: Arcadja

Que vastidão de aguas, e que largueza de margens, ali e em toda a extensão do rio, desde Marvilla diante da qual elle se espraia como um mar mediterrâneo (na expressão feliz de Garrett) até á sua foz! [...]

O Tejo em frente do Caramujo, Revista Illustrada, fotografia de A. Lamarcão, gravura de A. Pedroso, 1892.
Imagem: Fábrica de molienda António José Gomes

Com o "fora da terra" paralysou-se de todo o movimento da sociedade elegante [...] (1)

Do Commercio do Porto
Cartas Lisbonenses, Visconde de Benalcanfor [Ricardo Augusto Pereira Guimarães]


(1) Diário Illustrado, 31 de julho de 1874

Artgos relacionados: 
Cova da Piedade elegante e encantadora em 1874
Hotel Club da Piedade
Os festejos de 24 de julho de 1874

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Os festejos de 24 de julho de 1874

Para ampliar a commemoração histórica, que se comprehende no capitulo antecedente, darei em seguida o programma da primeira grande commissão organisada em Lisboa para os festejos de 24 de julho e a relação d'esses festejos, relativa a 1874, e copiada de Diário de Noticias n.° 3:037, do dito anno. 

Sede do Diário de Noticias, fundado em 1864, na antiga rua dos Calafates no edifício da Typographia Universal in Edição comemorativa do cincoentenário do Diario de Notícias
Imagem: Hemeroteca Digital

Á falta de informação mais minuciosa e completa, quando menos far-se-ha idéa do modo como o povo liberal relembra tamanho facto histórico, e aqui ficará tal registo.

Programma dos festejos do dia 24 de julho, anniversario da entrada do exercito libertador em Lisboa

1.° No dia 23 de julho, celebrar-se-ha na egreja dos Martyres, pelas 11 horas da manhã, uma missa commemorativa, por aquelles portuguezes que succumbiram nas lactas politicas, travadas no paiz, e que terminaram em 1834.

2.° Ao romper da aurora no dia 24 de julho, subirão ao ar 6 girandolas de foguetes em cada uma das freguezias da captal, içando-se a bandeira nacional por essa occasião nas torres das respectivas egrejas.

Estandarte Liberal, Bandeira nacional de Portugal de 1830 a 1910.
Imagem: Wikipédia

3.° A uma hora da tarde haverá um solemne Te-Deum na egreja de Santa Justa e Rufina (S. Domingos) findo o qual, a grande commissào encamínhar-se-ha ao tumulo do duque da Terceira, e sobre elle deporá uma coroa.

4.° Convidar-se-hão as philarmonicas de Lisboa para ao romper do dia 24, tocarem o hymno nacional na praça de D. Pedro, junto da estatua, percorrerem as ruas da cidade, e fixarem-se nas primeiras praças e largos mais importantes, durante a noite.

5.° O passeio do Rocio será gratuitamente franquiado nessa noite, onde tocarão 3 bandas de musica.

Illuminação do Passeio Publico, litografia A. S. Castro, 1851.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

6.° Dar-se-ha no dia 24 um jantar aos presos das cadeias civis de Lisboa.

7.° Serão convidados todos os habitantes da capital a illuminarem exteriormente as suas casas na noite de 24 de julho.

8.° Solicitar-se-ha da empresa dos theatros espectáculos gratuitos na mesma noite.

Antigo Circo Price, demolido para a abertura da avenida da Liberdade, desenho do natural por Casellas in O Occidente 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital

9.° Pedir-se ha ao governo de sua magestade que declare de grande gala o dia 24 de julho para sempre.

10.° O ex.mo duque de Loulé, presidente da grande commissão eleita em reunião popular de 14 do corrente mez, será encarregado de dar conhecimento do presente programma a sua magestade el-rei, significando-lhe o desejo que a commissâo tem de que o chefe augusto do Estado e e toda a família real assistam ás solemnidades religiosas dos dias 23 e 24 de julho.

Nuno J. S. de M. R. de M. Barreto (1804-1875), 1.° duque de Loulé.
Imagem: Wikipédia

11.° Rogar-se-ha ao em.mo patriarcha, que presida aos actos religiosos dos dias 23 e 24.

12.° Serão convidados pela imprensa o ministério, os membros do corpo legislativo, os veteranos da liberdade, os ajudantes do imperador e do duque da Terceira, os tribunaes, a imprensa, a ex.a camara municipal de Lisboa, todas as auctoridades, as corporações e as associações, para assistirem ás solemnidades dos dias 23 e 24, ou fazerem-se n'ellas representar.

13.° A commissão dará conhecimento d'este programma aos ex.o presidente do conselho de ministros e ministro do reino.

Lisboa, 17 de julho de 1872. — João António dos Santos e Silva, Joaquim Possidonio Narciso da Silva, José Ribeiro da Cunha, João Manuel Gonçalves, António de Nascimento Rozendo, Visconde dos Olivaes, Manuel José Mendes, Manuel Patricio Alvares, José Baptista d'Andrade.

Palacete Ribeiro da Cunha, em estilo neomourisco desenhado por Carlos Affonso, 1877.
Imagem: Olhai Lisboa

Começaram e terminaram os festejos commemorativoa de 24 de julho mais concorridos e mais brilhantes que nunca, sem que occorressem desordens, nem desaguisados em tão numerosos ajuntamentos como os que se viram; nem que cousa alguma viesse empanar-lhes o vivo esplendor.

O povo demonstrou, nas suas manifestações espontâneas, pacificas e enthusiasticas, que ama a liberdade e a deseja manter: e um povo assim, é digno d'ella. Registaremos aqui, pois, mais esta pagina de affirmação aos sentimentos liberaes que tão enraizados estão na capital, como em todo o reino.

Apesar de se haver combinado que só se lançariam ao ar foguetes quando desse a salva no castello de S. Jorge, durante a noite de 23 para 24, e em diversos pontos da cidade, se ouviram vivas á liberdade e o estalar amiudado, e quasi sem interrupção, do fogo festival, principalmente no Rocio, onde alguns grupos queimaram fogo de sala.

Ao romper da aurora, deu o castello a salva costumada e de todos os largos e praças subiram aos ares girandolas sem conta, tocando as philarmonicas em algumas praças e por diíterentes ruas, e as bandas regimentaes ás portas dos respectivos quartéis.

Vista oriental de Lisboa tomada do jardim de S. Pedro de Alcântara, 1844.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Muito antes de nascer o dia, já estavam na praça de D. Pedro IV, e em volta do monumento, onde tinham accendido os fogachos de gaz, milhares e milhares de pessoas. Tinham vindo alli, para a alvorada as musicas de infanteria 11 e de caçadores 6, depois vieram a dos bombeiros e da viuva Roxo.

Inauguração da estátua de D Pedro IV em 1870.
Imagem: Wikipédia

A sociedade Recreio Artístico, que tinha concedido um baile campestre a favor dos veteranos da liberdade, aliás muito concorrido, cumpriu o que promettera. Foi tocar a alvorada para o campo de Sant'Anna, onde vimos reunidas mais de 1:000 pessoas.

Acabado o toque a sociedade seguiu para o Rocio, executando hymnos nacionaes, acompanhando a aquella multidão, onde se notavam muitos veteranos.

No caes de Sodré e Corpo Santo, fizeram a alvorada a banda de ex alumnos da casa pia e a philarmonica Seixalense e outra, que percorreram todo o Aterro, comprimentando-se, e eram também seguidas de numeroso povo, que dava vivas e lançava foguetes.

Pode-se dizer que, pelo movimento das ruas, uma parte importante da população viera saudar jubilosa o despontar do dia em que se commemorava uma grande data.

Desde as oito horas da manhã até ás 11 distribuiu-se, em varias freguezias, bodo aos pobres, constando de pão, carne, arroz, toucinho e esmolas de 100, 200 e 500 réis ; e notaremos os das commissôes voluntariamente organisadas em S. Paulo, S. João da Praça, Mercês, S. José, Pena, Esperança, calçada de Santa Anna, Anjos e Soccorro.

N'esta ultima freguezia havia duas commissôes. Na Encarnação havia também duas, uma da freguezia que deu esmola de 1:000 réis a 41 veteranos e outra na Rua dos Calafates. Os bodos foram distribuidos na presença das respectivas commissôes, por damas ou por meninas, tocando durante o acto as philarmonicas, que obsequiosamente se prestaram a isso.

Em algumas freguezias a abundância dos donativos deu logar a augmentar o bodo. Durante a distribuição do bodo na rua dos Calafates tocou uma orchestra, composta de professores e organisada por influencia de um dos membros da commissão.

Eram quasi três horas da tarde quando chegou á ponte dos vapores do Terreiro do Paço, a bordo do Lusitano a grande commissão de Almada com a camara municipal d'aquelle concelho, e muitos cidadãos liberaes que a acompanhavam. 

Praça do Comércio e Rio Tejo, Francesco Rocchini (1822 - 1895), c. 1868.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Na ponte esperavam estes cidadãos a grande commissão de Lisboa, representada pelo seu presidente e muitos de seus membros, vereadores do municipio de Lisboa, veteranos da liberdade, e outras pessoas, levando a bandeira da commissão lisbonense o vogal Francisco de Almeida e da associação dos veteranos o sr. Silva, empregado na alfandega e fundador da mesma associação.

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António da Silva, o veterano da bandeira, fundador da associação.
Imagem: Archive.org

Logo que a commissão desembarcou, subiram ao ar algumas girandolas de foguetes, tanto de bordo do "Lusitano", como da praça, onde se tinham agglomerado milhares de pessoas. 

As duas commissôes, levando na frente duas philarmonicas a dos bombeiros e Primeiro de Dezembro e logo após as bandeiras indicadas, seguiram pela rua do Ouro em direcção do Rocio, onde pararam para fazer continencia á estatua do imperador D. Pedro IV.

D'ahi seguiram para a egreja de Santa Justa, entre os repetidos vivas á liberdade, e aos veteranos, que se soltavam durante o transito.

Os veteranos, parte uniformisados, parte á paizana, mas todos sob a direcção do seu presidente, não seriam menos de 200.

O vasto templo de Santa Justa, preparado para o Te-Deum pela solicitude dos procuradores e andador da irmandade do Santíssimo, sob a direcção do sr. Rosa Araújo, ostentava as suas melhores e sumptuosas galas, com superabundância de armações de custo, numero admirável de luzes e profusão de flores naturaes.

No throno e nos altares viam-se mais de 700 lumes. O templo estava completamente cheio. Vimos alli representadas todas as classes.

A imprensa também teve a condigna representação, achando-se alguns jornalistas juntos com a grande commissão, e outros no corpo da egreja.

As associações operarias e algumas escolas egualmente tinham alli delegados seus, como o grémio popular, que era representado pelo seu presidente o sr. Silva e Albuquerque.

A commissão da Pena mandou áquella solemne ceremonia as 33 meninas, que vestira de manhã, e que, durante o acto, estiveram de velas accesas e com ramos de perpetuas e laço azul e branco.

Por volta das três horas e meia chegaram, um após outro, el-rei D. Luiz e D. Fernando, os quaes foram recebidos, á porta da egreja, pelo ministério, membros da grande commissâo e veteranos, com as respectivas bandeiras, arcebispo de Mytelene, collegiada, irmandade do Santíssimo, altos funccionarios militares e civis.

As Festas da Liberdade no Porto — Veteranos da Liberdade que tomaram parte no préstito in O Occidente, 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital

El-rei trajava o uniforme de general. Sua magestade a rainha não pôde concorrer a Lisboa por incommodo de saúde. Logo que suas magestades tomaram assento nas cadeiras de espaldar, que lhes estavam proparadas no altar-mór, lado do Evangelho, debaixo de riquíssimo docel, entoou o Te-Deum o sr. arcebispo a grande instrumental.

D. Luis I (1838-1889), rei de Portugal de 1861 a 1889.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Em frente da egreja, fazia a guarda de honra uma força de 100 homens da municipal, com capitão e dois subalternos e a musica.

A policia do largo e das ruas circumvisinhas era feita por uma força de cavallaria municipal commandada por um subalterno e guardas civis.

A entrada e saida de el-rei estalaram muitas girandolas de foguetes. O Te-Deum que era o de Marcos de Portugal, sob a regência do sr. Monteiro de Almeida, com 21 vozes e 42 instrumentistas, terminou ás 4 horas e 20 minutos.

Depois da ceremonia religiosa, el-rei dirigiu-se, em carruagem que o conduzira ao arsenal da marinha, onde o esperava o estado maior, e ahi montou a cavallo para a revista.

El-rei D. Fernando voltou para as Necessidades e em seguida regressou a Cintra, d'onde viera de propósito na véspera.

As quatro e meia, sua magestade o generalissimo do exercito, saía do arsenal em direcção á praça do Commercio, montando um soberbo cavallo baio e era seguido por um luzido estado maior, do qual faziam parte os ajudantes de campo, generaes (Jaula e D. Luiz de Mascarenhas; coronéis Folque e Cunha, e officiaes ás ordens, D. Francisco de Almeida, D. Manuel de Mello e Vito Moreira, e dos generaes Barreiros, Palmeirim, barão de Rio Zêzere, Mancos de Faria, Luiz Maldonado, Moraes Rego, Tavares de Almeida e Castello Branco e respectivos ajudantes de campo.

A divisão achava-se formada na praça do Commercio. O aspecto de todos os corpos em parada e o quadro que offerecia toda a divisão formada em columnas era deveras brilhante. Ao entrar elrei na praça as tropas apresentaram armas e as bandas tocaram o hymno real.

Finda a revista o generalissimo tomou pela rua do Oiro, seguido por toda a divisão para fazer a continência á estatua do imperador. El-rei e o seu estado maior collocaram-se sob as tribunas que se levantaram no theatro de D. Maria, para ver o desfilar de todas as tropas.

Na tribuna do centro não havia pessoa alguma da família real, e nas lateraes viam-se o ministério, parte do corpo diplomático estrangeiro, camará municipal, a grande commissão dos festejos, muitas damas, etc.

A força da guarda municipal que estivera ás portas do templo de S. Domingos, veio postar se em linha em frente de el rei, abrindo assim largo caminho para o desfilar das tropas.

A divisão passou em continência, como dissemos ; a artilheria e infanteria em columnas de divisões e a cavallaria a três. A marcha na continência em geral foi boa, havendo apenas um incidente que alterou o bom andamento da artilheria, por lhe ter caído uma parelha de muares na rua do Oiro.

Algumas divisões de caçadores e infanteria não tinham sufficiente espaço para estenderem bem em linha, indo algumas filas á rectaguarda por causa da grande massa de povo que se agglomerava em todos os pontos.

A divisão retirou pela rua Augusta e alguns corpos não seguiram para quartéis pelo itinerário indicado, por ter o sr. general commandante ordenado, á ultima hora, que seguissem o que lhes fosse mais conveniente.

A divisão compunha-se do regimento de artilheria n.° 1, com 6 metralhadoras, 36 canhões Krupps e 6 pecas de montanha, uma brigada de cavallaria com 6 esquadrões, commandada pelo sr. infante D. Augusto, levando ás suas ordens os srs. D. João de Mello e visconde de Seisal, e duas brigadas de infanteria.

A força de toda a divisão era de 5:210 praças, 567 cavallos, 388 muares e 48 bocas de fogo. Artilheria n.° 1 levava 510 homens, lanceiros da rainha 280 cavallos, e cavallaria n.° 4, 287; caçadores n.° 2, 430 homens; caçadores n.° 5, 578; infanteria n.° 1, 590; infanteria n.° 2, 600; infanteria n.° 5, 680; infanteria n.° 7, 625 e infanteria n.° 16, 630.

D. Carlos I em visita ao regimento de Lanceiros 2, foto de Joshua Benoliel, 1907.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Estes corpos não apresentaram maior força por terem alguns destacamentos e grande numero de praças licenciadas.

O estado de asseio de todos os corpos, e a maneira como elles se apresentaram em parada, magnificamente armados e equipados, satisfez todos os espectadores e até os mais escrupulosos em cousas militares.

A força de artilheria ia imponente. Quarenta e oito bocas de fogo, como as que nós apresentámos, é força respeitável em qualquer parte da Europa.

A cavallaria ia toda bem montada e em força quasi completa. Parte do corpo diplomático estrangeiro finda a passagem das tropas foi felicitar o sr. ministro da guerra pela maneira brilhante como se apresentou a divisão.

Os corpos da guarnição de Belém chegaram á noite a quartéis, e a banda de caçadores da rainha, depois da parada, marchou em seguida para Queluz, indo em char-á-bancs a expensas de sua magestade.

Os navios durante o dia estiveram embandeirados em arco.

Lisboa — Vista do Tejo, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Viram-se, em todo o dia, innumeros homens com perpetuas ao peito, assim como muitas damas com ramos de egual flor.

Ao pôr do sol salvou o castello e lançaram-se mais girandolas.

A concorrência que fora extraordinária aos actos públicos do dia, e que se tornara notável á tarde, por occasião da revista e continência militares, tornou-se assombrosa á noite.

Não nos lembra vêr, em época alguma do anno, nas occasiões festivas, que dâo movimento ás massas populares, a affluencia d'este anno ás ruas de Lisboa.

A illuminação foi geral e deslumbrante em muitas partes.

A mais vistosa de todas era a da praça de D. Pedro, que se compunha de quatro grandes pyramides com 1:200 bicos de gaz, terminando com fachos, que illuminavam perfeitamente a praça e a estatua.

As pyramides pela frente e rectaguarda, estavam ligadas por festões, que tinham no centro duas estrellas, que também lançavam bastante luz por muitos bicos de gaz.

O edifício do theatro de D. Maria e os demais em volta da praça viam-se egualmente illuminados. Eram do mesmo modo brilhantes as illuminaçôes das rua dos Calafates, que, desde a travessa da Queimada até á rua das Salgadeiras, tinha um sem numero de bandeiras nas janellas e cruzando a rua bandeiras, festões, lustres e balões; a do largo do Camões, que tinha illuminação em volta do monumento com 200 lumes de gaz, afora os da estrella central; as do Corpo Santo que tinha dois arcos; cães do Sodré e Aterro, que tinha outros dois. onde se lia a data de "23 de julho de 1833", bandeiras, festões, mastros com escudos e estandartes.

Theatro D Maria II, Nogueira da Silva (desenho), Coelho Junior João Pedrozo (gravura), 1863.
Imagem: Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital

Ali a illuminação era a balões em prodigiosa quantidade. Em outros largos e praças havia illuminações mais ou menos vistosas. A estação dos vapores Burnay, no Aterro, tinha grande numero de lanternas de cores, na frente da barraca. Seria difficil enumerar todos os edifícios particulares, além dos públicos, que apresentaram as suas fachadas illuminadas com lanternas ou gaz.

Entre outros, notaremos todos os hotéis do Chiado, sobresaindo o "Gibraltar", que hoje está no palácio Ouguella; os escriptorios da "Correspondência de Portugal" e de outras redacções; todo o edifício da Typographia Universal e escriptorios do "Diário de Noticias" e "Diário Popular"; companhia de vapores e outras; confeitaria na rampa de Santos; fabrica de gelo dos srs. Ferreira & C.a; as casas de vários cônsules e ministros estrangeiros, etc.

O Terreiro do Paço estava segundo o costume, mas em frente do caes das Columnas fundeara o vapor "Lynce", que illuminou graciosamente e durante a noite queimou alguns fogos de bengala.

O castello de S. Jorge exterior e interiormente tinha bonita illuminaçâo.

Nos coretos erguidos nos differentes pontos notámos: Caes do Sodré, philarmonicas Verdi, da Ponte Nova, e Capricho, do Barreiro; Corpo Santo, ex-alumnos da casa-pia; Ribeira Nova, Seixalense;
praça de D. Luiz, defronte da fabrica, fanfarra de curiosos; fim do Aterro, banda da guarda municipal; rua dos Calafates, philarmonica 24 Julho; rua do Currião, Timbre dos Artistas; largo do Camões, Alumnos de Minerva; Campo de Sant'Anna e largo do Tabellião, Recreio Artístico; largo da rua dos Canos, Xabreguense; largo da Esperança e Caes de Santarém, também philarmonicas; e no Rocio as bandas de infanteria de caçadores 6, e por vezes varias philarmonicas, sendo ali mais permanentes as Primeiro de Dezembro, de Aldeia Gallega, e dos bombeiros, que levava muitas figuras e apresentou-se bem uniformisada.


Barra de Lisboa vista do Caes do Sodré.
Imagem: Internet Archive

Repetimos: o modo como correram os festejos de 24, fazem o maior elogio do povo lisbonense. É agradável deixar isto registado. E cabe-nos, com egual satisfação, mencionar que, na ordem e organisação da commemoraçào solemne, pertence bom quinhão de louvor á boa vontade e ao zelo da grande commissão, e especialmente á sua commissão executiva.


(1) Aranha, Pedro Wenceslau de Brito, Esboços e recordações, Lisboa, Typographia Universal, 1875, 246 págs.

Leitura relacionada:
Maria Isabel da Conceição João, Memória e Império, Comemorações em Portugal (1180-1960), Lisboa, Universidade Aberta, 1999
O dia de hontem na Piedade