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quinta-feira, 18 de maio de 2017

Fortes, esbeltas e um pouco ariscas

Nunca encontraram, á hora do desembarque, as mulheres dos figos? 

Lisboa.Vendedeira de figos, Joshua Benoliel, 1912.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Veem, ainda fusque fusque, da Outra banda, no primeiro bote de carreira, com os seus grandes cestos. Apparecem no caes de Cacilhas de noite ainda, e vão ellas próprias muitas vezes accordar os barqueiros e avisal-os de que já se avista a manhã.

Lisboa.Vendedeira de figos, Joshua Benoliel, 1912.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

São, em geral, raparigas fortes, esbeltas; um pouco ariscas, como dizem, os saloios, da terra que é secca e solta.

Lisboa.Vendedeira de figos, Joshua Benoliel, 1912.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Debalde os barqueiros se estafam em finezas e lhes juram emquanto remam que depois de acabar a lua são ellas a estrella d'alva: nem lhes dão um sorriso, nem um figo.

Lisboa.Vendedeira de figos, Joshua Benoliel, 1912.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Essa mesma rebeldia os seduz, e ainda mais porfiam em as alcançar, esperando-as sem somno á hora em que ellas voltam da Sobreda, do Monte, de Caparica, de Valmourellos. (1)


(1) JuIio César Machado, Lisboa na rua
cf. Alberto Pimentel, A Estremadura portuguesa, Volume II, Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1908, 539 págs.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Nas arribas do mar (faíscas de fogo morto)

Por todo este almaraz ao terreno ondulando, 
Tal como ondula o mar, quando o tempo está brando. 
Nos contrastes de luz, no variado matiz, 
Nenhum lhe dá de rosto em volta do paiz.

The Praҫa do Comércio Lisbon, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

As folhas dos trigaes, vinhedos e pomares, 
Pendendo para o mar á beira dos algares.

Val de Flores, Rosal, a fecunda Sobreda, 
Conservando a azinhaga e a sombria vereda.

As "Villas de Azeitão", o medo de Albufeira, 
A Charneca, formando uma enorme clareira 
Cingida de pinhaes. No gracioso recorte, 
Cintra, no seu perfil, campeando sobre o norte.

A Arrábida domina ufana o Sado e Tejo. 
Não tem outra rival por todo esse Alemtejo.

Vista do Tejo tomada de Belém, Bellisle looking down the Tagus, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

O Atlântico á barra. O rio, a desaguar, 
Funde na vaga azul a tinta verde-mar.

Seja em que ponto for é relancear a vista; 
Sempre, no vasto quadro, uma nota imprevista.

Pescadores no Tejo, Fishermen at work off the mouth of the Tagus, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

Rompe um formoso dia. O mar azul e manso. 
Vem as redes á Costa, e com soberbo lanço.

De toda a povoação, e remotos casaes, 
As recovas lá vão a travez dos juncaes.

Vista do Tejo e da Trafaria, The river Tagus at Trafaria, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

E a trepar a ladeira, — a saia coruscante, 
A cestinha á cabeça, o lenço fluctuante, 
— Correm, com seus pregões, á venda, as raparigas, 
Pregoes que têm um tom de jovenis cantigas!

Cae a noite. O farol, as frechas rutilantes, 
Atira pelo oceano e guia os navegantes.

Vista do Tejo e do Forte de S. Lourenço, Bugio Castle, the Tagus, John Cleveley Jnr, 1775.
Imagem: Bonhams

Accendem-se também Bugio e Sam Julião. 
A cidade illumina, e reflecte o clarão 
No Tejo que lá vae, na veia crystallina, 
Levando, a scintillar, o véo da tremulina. (1)


(1)  Bulhão Pato, Faíscas de fogo morto, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciências, 1908

Artigo homónimo:
Nas arribas do mar (cf. Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, 1894)

Artigo relacionado:
John Cleveley Junior e o Tejo, 1775

quinta-feira, 9 de junho de 2016

As Ondinas de Adriano Sousa Lopes

Na praia tranquilla murmuram sonoras
As ondas do mar.
E, ao dôce das aguas murmúrio palreiro,
Na areia dormita gentil cavalleiro
Á luz do luar.


Costa da Caparica, Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

As bellas ondinas emergem das grutas
De vivo coral,
Accórrem ligeiras, e apontam, sorrindo,
O moço que julgam devéras dormindo
No argênteo areal.


Vem esta, e perpassa do gorro nas plumas
As mãos de setim.
E aquella, com gesto divino, gracioso,
Nos ares levanta do joven formoso
O áureo telim.


Costa da Caparica.
Imagem: AVM

Ess'outra, que lavas, que fogo não vibram
Seus olhos de anil!
Debruça-se e arranca-lhe a rútila espada,
Nos copos brilhantes se apoia azougada,
Travessa e gentil.


A quarta, saltando, retouça, lasciva.
Do moço em redor;
Suspira mansinho, de manso murmúra:
"Podésse eu em vida gosar a ventura
Do teu fino amôr!"


Marguerite Gross Perroux, década de 1920.
Imagem: MNAC

A quinta rebeija-lhe as mãos, enlevada
Num sonho feliz,
E a sexta, com tremula e doce esquivança,
Perfuma-lhe a bòcca, formosa creança!
Com beijos subtis...


As Ondinas, Adriano Sousa Lopes, 1908.
Imagem: MNAC

E o moço, fingindo que dorme tranquillo,
Não quer acordar.
E deixa que o abracem as bellas Ondinas,
E languido gosa caricias divinas

A luz do luar... (1)

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Prova de pensionista do último ano em Paris, esta obra de Sousa Lopes inspira-se num poema com a mesma temática de Heinrich Heine (romântico alemão), traduzido por Gonçalves Crespo.

Auto-retrato, Adriano Sousa Lopes (1879-1944).
Imagem:

A sua criação plástica manifesta uma estética simbolista, via pompier, destacando a narrativa e a imagética fantástica de seres ou espíritos elementares da água num espaço imaginário [...] (2)


(1) Heinrich Heine trad. Gonçalves Crespo in Nocturnos, As Ondinas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882
(2) Maria Aires Silveira, MNAC

quarta-feira, 16 de março de 2016

Crianças a banhos na Trafaria em 1908

O triumpho que está coroando com os fulgores do exito a obra generosa de protecção á infancia, iniciada pelo "Seculo", representa, mais do que a victoria das causas nobres, o triumpho imperioso da mocidade e uma surprehendente exhibição das suas forças intactas n'um paiz que o culto da velhice levou, pela mão fria, desanimada e tremula dos anciãos, á decadencia immerecida do presente.

Aspecto da praia na occasião da chegada das creanças.
Imagem: Hemeroteca Digital

Desde o dia em que o medico Samuel Maia lançou á terra fecunda que é a publicidade enormissima do "Seculo" a semente compassiva e generosa da ideia, cem mil vezes multiplicada diariamente por todo o pais, do salvamento, por uma intensa protecçào á infancia, de urna raça ameaçada de estiolamento, até ao dia de hoje, não mediaram ainda seis mezes.

As creanças à popa do vapor da alfandega.
Imagem: Hemeroteca Digital

Neste curto período o "Seculo", emquanto o charivari parlamentar ensurdece a nação e os ministros se debatem nas intrigas phreneticas dos profissionaes da politica, por em alvoroço toda a população pobre da cidade e conseguiu impôr ao pais, pela força convincente dos inqueritos, n'uma propaganda que pôde considerar-se a obra de maior alcance emprehendida pela imprensa portugueza, a verdade temerosa de que o abandono a que estrão votados os pobres está preparando uma geração debil de aleijados, que sossobrará perante as exigencias trabalhosas do futuro.

Aspecto da praia na occasião da tomada do banho: a Real Fanfarra da Trafaria.
Imagem: Hemeroteca Digital

Não pretendeu o "Seculo" realisar a obra de salvação que só o Estado deve e póde praticar perante as comminatorias advertencias de uma calamidade assim dramaticamente desvendada por uma pleiade juvenil de medicos, que foram ás escolas observar a geração de amanhã e tornaram publico o seu depoimento pungente.

Mas quiz o "Seculo" preparar o caminho ao advento d'essa obra nacional e fazer a sua evangelisação pratica e fecunda. Não o desanimaram as difficuldades e os dispendios de uma tão vasta iniciativa. Não houve sorrisos incredulos nem encolher desdenhoso de hombros que affrouxasse as energias ou entibiasse a fé dos homens novos a quem o "Seculo" confiou a direcção da sua cruzada humanitaria.

A distribuição de pão, bolachas e leite.
Imagem: Hemeroteca Digital

Oito mil creanças affluiram, pela mão de oito mil mães alvoroçadas, ao salão da Illustração Portugueza, convertido no mais bello e salutar dos consultorios, onde o emocionante inquerito da infanda vae proseguindo e desenrolando, em phases successivas de preparação methodica e de conclusões peremptorias, as suas peripecias animadas.

Rapidamente, a obra admiravel está assim attingindo as proporções impressionadoras de uma funcção social, que aliasse da iniciativa tutelar do Estado, a tal ponto que muitos esquecem que ella representa apenas, em toda a sua grandeza, a propaganda de urna ideia benemerita.

Como vae o governo ernprehender a organisação definitiva d'essa ideia lançada por um jornal e cuja continuidade benefica já a caducidade egoista dos grandes politicos não logrará impedir que se perpetue?

Os banhos na Trafaria, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

Quaes serão os successores officiaes d'essa pleiade de medicos que não pertencem á Academia, que não são conselheiros, que nunca foram deputados, que as secretarias de Estado não conhecem, e que tão eloquentemente exemplificaram a superioridade da fé, da perseverança, da energia e da intelligencia da gente nova sobre o scepticismo dissolvente, a impertinencia orgulhosa, a vã experíencia e a prosapia arrogante dos consagrados?

Essa pergunta fazíamos por uma d'estas manhas de luz e amenidade com que o céo acaricia tão prodigamente Lisboa, ao atra-vessarmos o Tejo entre a algazarra festiva das cem pobres creanças que todos os dias o "Seculo" agora leva, a um alegre passeio matinal, Tejo abaixo, até aos arcaes da Trafaria.

As creanças no banho preparando um mergulho.
Imagem: Hemeroteca Digital

Dir-se-hia que pela primeira vez esse bando pallido de creanças olhava a vida na sua belleza e que para ellas pela vez primeira se desvendavam os aspectos sorridentes da natureza, com o esvoaçar das gaivotas sobre a franja espumante das vagas, os reflexos doirados da soalheira no agitado manto azul das aguas e o desdobramento panoramico da cidade, que ascende em colorido presepio, toucada pelo sol canicular, n'um recorte de cupulas, mansardas pombalinas e legues de palmeiras no irradiante azul anil dos horizontes.

As creanças protegidas do "Seculo" in Illustração Portugueza, n.° 133, 7 de setembro de 1908
Imagem: Hemeroteca Digital

Os leitores poderão reconstituir pelas photographias que ilustram estas paginas a recepção festiva que a Trataria preparou ás creanças protegidas do "Seculo" no primeiro dia em que lá as levou a tomar banho.

Mas o que ellas não poderão evocar-lhes senão de maneira imperfeita é a felicidade commovedora que transfigurava as facesinhas pallidas d'essas creanças, que pela primeira vez, como os filhos afortunados dos ricos, puderam brincar na praia, passeiar no Tejo e almoçar no convez de um vapor com o appetite saudavel com que as brisas iodadas do mar lhes trouxeram o vago, inconsciente desejo de serem vigorosas e bellas, para bem cumprirem na vida a sua missão de amor e de trabalho. (1)

O Cabo do Mar da praia da Trafaria.
Imagem: Hemeroteca Digital


(1) A obra da infancia do Seculo..., Illustração Portugueza, n.° 132, 31 de agosto de 1908

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Nas arribas do mar

Na margem esquerda, encontra-se a modesta estação da Trafaria, ao mesmo tempo povoação de pescadores. Bulhão Pato, que habita perto d'ahi, em Caparica, dá-nos uma viva descrição de uma pesca de sardinha, cheia de pitoresco local. (1)

O poeta Raimundo Bulhão Pato,
Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Há dias, abrindo o jornal — "A Caça" — deparou-se-me um artigo intitulado: Législation sur la chasse. Dizia: ..."Je revois encore les dunes sauvages qui s’étendent de Trafaria à Costa, où j’ai fait ma première chasse avec Bulhão Pato; les rizières et les côtes boisées du vallon d’Apostiça, etc."

O artigo era de Sampayo Osborne, que esteve em Portugal cerca de 25 annos; rapaz muito intelligente, illustrado, da família do conde da Povoa e primo da casa Palmella.

Caçador de sangue. Um desastre varou-lhe com um tiro, em França, uma das mãos, não sei se a direita, se a esquerda. Continuou, apesar d'isso, a ser espingarda de primeira ordem e, o que é mais, ao piano primoroso artista.

Durante largo tempo bateu as tapadas e montados com os reis do throno e os reis da caça. É provável que não o torne mais a vêr. D'aqui lhe envio um cordial e saudoso aperto de mão.

Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa. Pelas arribas as perdizes saltavam aos bandos; na planura as codornizes, as narcejas e outra caça de arribação abundantíssima. Vivíamos em Buenos-Ayres [à Lapa, Lisboa].

Vista do Tejo e da Torre de Belém tomada da legação britânica,
George Lennard Lewis, 1880.
Imagem: Sotheby's

No inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no caes de José António Pereira [freg. de Santos-o-Velho, anterior ao aterro da Boavista, actual Beco da Galheta], com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias. 

É piloto da Barra há já muitos annos. Lourenço da Pinha nascera em Olhão, terra de marítimos, que folgam com o esbravejar das ondas como as aves marinhas.

Moço, veio para Belem e, ora com a mão no leme e na escota, ora no punho do remo, sempre de ânimo folgazão, coartada pronta e verboso como algarvio, lá foi mareando o barco, sustentando a mulher e criando os filhos.

Torre de Belém,
Frank Dillon, 1850.
Imagem: BBC Your Paintings

Morreu há bastantes annos, mas por todo o bairro de Belem e por todo este almaraz lhe relembram o nome honrado e benquisto.

José Augusto Galache, sem jactâncias nem farroncas, era um rapaz que não tinha medo do diabo à meia-noite. Agora lá está na sua propriedade do Freixo, ao pé de Valle de Lobos, tratando da sua lavoira, beijando a terra para manter as forças, sempre jovial e gentil-homem. 

A bravura e galhardia do cabo de forcados nas toiradas de amadores no Campo de Sant'Anna foi tal que ainda hoje corre na lenda entre os novos.

Um dia, em Dezembro, véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos. 

Lisboa, Sol Nascente,
Ivan Aivazovsky, 1860.
Imagem: WikiArt

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos:

— Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.

Havia águas de monte e o barco, mal clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda.

Os dois rapazes acompanharam-nos, e o pae ficou guardando o barco à nossa espera. Os terrenos planos e à beiramar do Juncal eram lenteiros, enchabocados, como dizem os homens do campo e os caçadores. 

Nós tínhamos dois cães soberbos: o Black de José Augusto e o meu Faliero. Ambos muito bem parados, cobrando de ferido, e trazendo à mão toda a espécie de caça.

Depois do ímpeto da primeira batida sentámo-nos num médão de areia, acudimos ao almoço, que vinha nas redes, e matámos a fome. Engolfámo-nos Juncal dentro. Quando demos por nós estávamos muito adiante das barracas da Costa.

Costa da Caparica, Praia do Sol, cliché João Martins, 1934.
Imagem: Praia do Sol (Caparica)..., Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico

O estômago não tinha a mais leve memória do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o apetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? À sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco. 

Uma casa de um só andar, com armas reais, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarca D. João VI, que foi alli por mais de uma vez. De pedra a cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. 

Íamos andando por aquele labyrintho de cubatas e à porta de um ferrador demos com uma rapariguinha dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, socos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

— Pois não há, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião — acrescentou, dando à sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Levou-nos à tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquela casa com o melhor dos meus amigos. 

A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou e, já mãe de filhos, depois de eu estar n'este Monte, morreu, coitada, de uma pneumonia. 

Maria Rita do Adrião vive ainda; há dois annos que veio visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três. 

Costa da Caparica,
Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Palácio do Correio Velho

Teve sempre boa estrella; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedosa achou e foi logo anunciar no Século.

Caparica, convento de Santo António,
Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Rui Manuel Mesquita Mendes

Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, sol alto ainda, sahimos até à praia. Era véspera de Nossa Senhora da Conceição, a grande festa annual da terra. 

Os habitantes é que estavam descoroçoados e tristes; a sardinha, a famosa sardinha da salga, não tinha dado nada ou quase nada. Mais uns dias de escassez e lá se iam as esperanças... o pão por muito tempo! 

Mar calmo. Na crista dos médãos, homens, mulheres, rapazes, mudos, immoveis, olhos cravados na companha, que lá muito ao largo vinha regressando. 

De manhã os alcatrazes [gansos-patola], de aza fechada, cahindo do alto como raios, picavam a flor das águas, indício de  grandes negras de sardinha. Pelo cariz do tempo, o lanço devia de ter sido grande. Chegaria a salvamento ou rebentaria o sacco?!

Silêncio profundo nos de mar e nos de terra. O silêncio é signal certo de grande preoccupação de espírito nos moradores de povoações marítimas, tão vivos e loquazes.

Ao rés do mar grandes grupos moviam-se visivelmente inquietos. Com o sol, que já no ponente batia o areal, aquelas figuras pareciam tomar proporções gigantescas, cingidas de nimbos de oiro. 

Costa da Caparica, Praia do Sol, cliché João Martins, 1934.
Imagem: Praia do Sol (Caparica)..., Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico

O sol, as montanhas, o mar, as soberbas e solemnes paizagens, em vez de apoucarem o homem, engrandecem-no. 

Numa linha de fortificações ondulada de montes e crespa de píncaros, antes de romper o assalto, os ajudantes-de-ordens, cruzando-se na carreira, a dois exércitos podem afigurar-se hipogrifos phantasiados pela veia fecunda de Boiardo ou de Ariosto [in Orlando Innamorato e Orlando Furioso resp.].

A paizagem parece dar e receber, às vezes, commoções trágicas. O facto é que exerce nos espíritos acção profunda, embora ignota. Uma tempestade, nas serranias ou no oceano, improvisa heroes, como os relâmpagos das espadas e o trovão das baterias no campo da batalha.

À beira de água principiou a correr um torvelinho, levantando pyramides de areia. De repente uma lufada súbita correu violenta.

Os prodromos do furacão têm rugidos dolorosos como os do leão na entrada da febre. Daria numa tempestade? Quantos corações ficaram apavorados em tal momento!

Os barcos aproximaram-se de terra. A multidão silenciosa. A vaga alta como de mar movido ao longe, embora não arrebatada. Num ai tudo salvo ou tudo perdido!

O sacco... a montanha de prata, estava a salvamento na praia. Raros olhos ficariam enxutos vendo rebentar a alegria d'aquelle povo!

Costa da Caparica, Praia do Sol, 1934.
Imagem: Praia do Sol (Caparica)..., Monografia de propaganda do Guia de Portugal Artístico

O sol, disco de fogo, tocava a superfície das águas, que serenavam, passada a borrasca ephemera, permitindo que olhos humanos se cravassem no seu ocaso esplêndido.

Em breve a linha arenosa e já desmaiada, que segue até o Cabo, a bahia de Cascais, os picos de Cintra, os montes e povoações do norte, o Tejo dormente, desvaneciam-se no breve crepusculo das tardes de inverno.

O pharol do Espichel, girando as suas aspas de fogo intermittentes, parecia abrir sulcos luminosos pelo mar levemente enrugado. 

Bugio e São Julião accendiam-se. As estrellas estremeciam no firmamento límpido. Noite coroada de lumes.

Bugio e Forte de São Julião da Barra.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

A aragem era um alento virgínio, e a vaga na praia um suspiro amoroso. As redes voltaram ao mar. A companha bradou a uma voz:

Bulhão Pato,
Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

— Avé, Maria puríssima! (2)



(1) Teixeira Judice, Antonio Arroyo, Notas sobre Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908
(2) Bulhão Pato, Raimundo António de, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894


Artigo relacionado:
O Juncal

sexta-feira, 13 de março de 2015

A visita do sr. ministro

No forte de Caxias estão presas 93 pessoas, e presos estão também o Afonso Costa, o João Pinto dos Santos, o Ribeira Brava, etc. A policia desandou então a prender a tôrto e a direito. O José de Figueiredo que mora no Campo de Sant'Anna, por cima da esquadra, ouviu isto: Ao telefone, o chefe da esquadra para o governo civil: — Já prendemos quatro. — Prendam mais. — Era preso quem passava na rua [...], 30 de janeiro de 1908

Na travessia do Tejo, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

— Na noite do regicidio fui ao Paço, com o Campos Henriques. O Julio de Vilhena, a quem procurei em casa, não foi porque lhe faltava um botão na braguilha. Assisti a tudo: tiraram o rei e o principe de dentro do carro.

O rei de Portugal e o príncipe herdeiro morrem assasinados em 1 de fevereiro de 1808 (detalhe),
Le Petit Journal, 16 de Fevereiro.

O rei estava disforme. A rainha, se tinha dito alguma coisa desagradavel ao João Franco no Arsenal, no Paço não lhe disse palavra. A Maria Pia perguntava de quando em quando: — A morte do rei será muito sentida? — Estava tudo preparado para uma revolução. O Afonso Costa não deu o signal porque esperava a morte do Franco.

O desembarque em Cacilhas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Pormenor absolutamente authentico: o João Franco ainda se ofereceu para governador civil de Lisboa [...], 3 de fevereiro de 1908

O desembarque em Cacilhas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Dias mais tarde havia sujeitos que se chegavam á beira das pessoas que deitavam luto e perguntavam-lhe com ar de troça: — Então morreu-lhe alguem da familia?...

O desembarque em Cacilhas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

O Correia d'Oliveira: — Se visse!... Quasi ninguem tirava o chapeu quando o enterro passou... A sombra do rei comeu, sumiu a do principe. Tem-se distribuido muitos papeis com estes dizeres: "Morte aos Sanguinarios Afonso Costa, Alpoim, Ribeira Brava, os Verdadeiros Assassinos DE EL-REI E DO PRINCIPE REAL". E outros, escriptos á machina, atribuindo o crime a este e áquelle [...], 11 de fevereiro de 1908 (1)

A multidão aguardando o ministro na villa de Cacilhas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

O sr. ministro da justiça no concelho de Almada

O sr ministro da justiça percorrendo a quinta, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

O ministro da justiça visitou hoje a quinta do Rosal que pertenceu aos jesuítas e está hoje encorporada nos bens nacionaes.

As ruinas da casa da quinta e da capella incendiadas pelo povo nos dias da revolução, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital

O povo d'Almada fez uma grande manifestação ao sr. dr. Affonso Costa que se demorou a vêr a antiga propriedade da Companhia e que é excellente. (2)

O sr ministro da justiça contemplando as ruinas, Joshua Benoliel, 1911.
Imagem: Hemeroteca Digital


(1) Brandão, Raul, Memórias, Vol. I, Porto, Renascença Portuguesa, 1919
(2) Illustração Portuguesa, n.° 263, 6 de março 1911

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Rosas do Pombal

[...] no sítio onde hoje passa a Rua Rosas do Pombal, antes Rua do Cabral, houve uma Quinta chamada do Cabral. (1)

Carta dos Arredores de Lisboa — 1 (detalhe), Corpo do Estado Maior, 1902.
Imagem: IGeoE

Era a quinta do ti Zé Guimarães, a quinta do Pombal, a quinta do ti António (mais tarde, disse-me ele, descobriu que era a quinta do Teotónio), a quinta do Plantier, um francês há muito radicado em Portugal e outras que ele me descreveu mas que, peço perdão, não tendo a mesma memória, já se me varreram os nomes. (2)

Chafariz do Pombal, Almada, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

A relojoaria da rua do Oiro foi um centro obrigado de palestra.

Passaram por lá muitos escriptores e jornalistas em evidência.

Eram certos todas as tardes, às quatro, hora a que principiavam os momentos felizes de Paulo Plantier, que se via entre a sua gente.

E começavam os tiroteios e comentários sobre artes e lettras, e escândalos, e cozinha, e política, e torpezas, e flores, e sobre o eterno tema inesgotado — a Mulher.

E era de ver o Plantier avultando entre os do grupo e enchendo o passeio com o seu casaco amplo, descaído dos lados, cabello ao vento, uma rosa vermelha e fresca na botoeira, e a rir e a carregar nos rr e a escandalisar os passantes com a sua voz sonora de barytono.

Muitos passavam ao lado, tímidos, evitando o escolho daquella espécie de Carybdes.

Ellas seguiam rez vez do grupo, um sorriso á fera logo amansada e num olhar de cubiça admirativa ás montras cheias de rosas.

Porque eram um modelo de originalidade, de graça e de bom gosto as montras do Plantier.

Concha de Vieira, P. Plantier fils, c. 1850.
Imagem: Antiquorum

Da sua quintarola da Piedade, em Cacilhas [sic], vinham todas as manhãs, braçadas de rosas que elle espalhava pelos escaparates, artísticamente, pondo aqui e ali, em sabio destaque, pedras preciosas, adereços de valor, perolas em collares nabalescos, brilhantes soltos caídos ao acaso, pingos vermelhos de rubis amortecidos na folhagem.

Alfeite, Vista Geral (tomada da Quinta do pombal), ed. desc., década de 1940.
Imagem: Bosspostcard

Um dia parou toda a gente a ver uma rosa, uma maravilha de pétalas. Uma rosa só campeava sobre as joias.


A esse phenomeno consagrou António Ennes no Correio da Noite um delicioso artigo humoristico.

Não era uma rosa, era um repolho, uma brutalidade vegetal, um aborto colossal posto sobre uma haste grossa como um varapáu.



Plantier nesse dia não saiu dos humbrais da porta a espreitar a casa dos transeuntes [...]

Podia lá suportar o desaforo da indiferença por um producto seu que cercára de cuidados, de estrumes saborosos, de vigilância paternal no seu grande viveiro da sua grande quinta da Piedade ao lado das muitas centenas de roseiras de raças por elle apuradas em enxertos e reenxertos sucessivos!

Avenida em abóboda florida de roseiras.
Imagem: Archive.org

Em contacto com gente de lettras Plantier fez-se editor de livros.

[...] entre os quaes figura a que lhe mereceu maiores disvelos, que foi por elle dirigida e em que collaboraram poetas e prosadores com curiosos conselhos em prosa e verso — O Cozinheiro dos Cozinheiros. 

Ver artigo relacionado: À Bulhão Pato

Nos ultimos annos o azedume de Plantier recrudesceu e os do grupo começaram desertando da loja. A freguezia diminuiu e apenas um ou outro se detinha a ver as rosas.

Só ellas não desertaram. (2)

Com 68 annos de edade morreu hontem de cachexia [...] Paul Henry Plantier [...]


Grande amador de rosas, possuia as melhores de Portugal na sua pittoresca quinta da Piedade, na outra margem do Tejo, quinta onde elle reunia d'antes notabilidades na arte, na sciencia, na politica, e na imprensa.

Portal da Quinta do Pombal, rótulo de garrafa de vinho (detalhe).
Imagem: Soc. Com. Theotónio Pereira, Lda.

Foi um original, foi um typo, que vem a fazer falta no nosso meio... em que abunda a vulgaridade. (4)


P. Plantier Fils Lisbonne, c. 1900.
Imagem: Kaplans Auktioner


(1) Pereira de Sousa, R. H., Almada, Toponímia e História, Almada, Biblioteca Municipal, Câmara Municipal de Almada, 2003, 259 págs.
 
(2) Constantino, Guardador de Vacas, L(u/a)gares, 19 de setembro de 2011.

(3) Jornal do Brasil, Paul Plantier, Gente do meu tempo, 21 de maio de 1917.

(4) Jornal do Brasil, Paul Plantier, 23 de junho de 1908.



Leitura adicional: Baltet, Charles, La greffe et la taille des rosiers..., Paris, Mason, 1904.