«Chegou a Tânger ao meio-dia e foi direito a casa». É assim que começa o primeiro dos contos de A Missa do Galo, precisamente o que dá o título ao livro. Foi quase assim que aconteceu comigo quando, há cerca de um ano, me desloquei a essa cidade mítica e cosmopolita para entrevistar Paul Bowles. Era um desejo de há muito, desde que lera The Sheltering Sky, o seu romance de maior fôlego, que agora, pela mão, ou melhor, pelo olhar de Bertolucci, o vai certamente tornar conhecido em todo o mundo.
Cheguei a Tânger sem saber onde morava. Mas não foi difícil encontrá-lo. Paul Bowles, «lécrivain américain», chamam-lhe, faz parte da cidade e não se pode falar de Tânger sem referir o seu nome. Vive num vulgar prédio cinzento, típico de subúrbio, alguns vidros partidos, junto à Rádio Voz da América, edifício do ex-consulado americano. Recebe entre as cinco e as seis da tarde, à hora do chá. É Mohamed Mrabet, amigo de longa data, também escritor, que Bowles divulgou traduzindo as suas obras para o inglês, que nos vem abrir a porta. Apresentações feitas, Bowles chega à porta e cumprimenta-nos. Veste um blaser azul-marinho, camisa e gravata. Ainda antes de entrar passo-lhe para a mão dois exemplares da tradução portuguesa de The Sheltering Sky. (Mais tarde escreveu-me a dizer que tinha gostado muito do livro.) Viengam sentarse. Que lengua quieren ustedes hablar? Bowles fala fluentemente o espanhol, o francês e o árabe, para além, é claro, do inglês. Quando aqui se instalou, Tânger era um porto internacional, governado por oito países europeus e com três línguas oficiais - francês, espanhol e árabe.
As malas de viagem empilhadas no hall fazem-nos lembrar que este homem foi um inveterado viajante (quando ainda havia um sentido para a viagem, quando se podia viajar de barco, agora não, os aeroportos são uma coisa muito confusa). Na sala, tapetes berberes e almofadas que se espalham sobre o chão, onde nos sentamos, uma enorme estante com livros, duas mesas baixas. Na varanda, uma mancha verde de plantas envolve-nos numa doce e fresca penumbra que contrasta com o calor sufocante que faz lá fora.
Bowles começa por nos falar de como saiu dos Estados Unidos, aos 18 anos, «Paris era uma festa», só para conhecer gente. Gertrude Stein convenceu-o então de que não era poeta (os seus poemas tinham sido publicados em França e na Bélgica) e de que devia ir a Tânger. Que acabaria por escolher para ficar. Ou como ele diz, não escolheu, foi um acaso, como tudo na sua vida. Um pouco por inércia, ou por ser barato. Ou permissivo. Viajou por todos os continentes, «without stopping», teve uma ilha no Ceilão, a Taprobana, que foi obrigado a vender, conheceu meio mundo das artes e das letras (Tennessee Williams bateu-me à porta em Acapulco, Vidal apareceu-me em Tânger duas ou três vezes, Burroughs, Francis Bacon, Auden, etc., etc.). Como as suas obras não falam sobre «o maior e o melhor país do mundo» - os Estados Unidos - e não escreveu sobre «o maior de todos os temas humanos» - a experiência americana - (Gore Vidal dixit) ele é pouco conhecido nos Estados Unidos. Isso está a mudar. Bertolucci acaba de rodar The Sheltering Sky (O Céu que nos Protege), onde o próprio Bowles tem um pequeno papel. As traduções da sua obra multiplicam-se. Os jornalistas não param de bater à porta para o entrevistar.
Mas Paul Bowles, oitenta anos feitos, é um americano (in)tranquilo no seu apartamento da rue des Amoureux, de onde pouco sai. Publicou há cerca de dois anos um novo livro de contos, mas tem-se dedicado sobretudo à música, a sua paixão primeira. Uma hora de conversa começa a deixá-lo cansado, ainda que continue a responder solícito às nossas perguntas. Mrabet fuma calmamente o seu cachimbo de "kif", sentado no divã. Manteve-se calado durante toda a conversa, só no final, quando Bowles nos mostrava a edição brasileira de Up Above de World, referiu que o seu livro The Lemon também tinha sido traduzido no Brasil. São quase seis horas, Mr Bowles terá de se deitar daqui a pouco, o médico mandou. Tem de ser assim.
António Costa
No momento em que acabou de se realizar, em Lisboa, uma iniciativa internacional - Do You Bowles? - celebrativa do centenário do nascimento de Paul Bowles [30/XII/1910 - 18/XI/1999), julgamos oportuno recordar o texto «Um chá no Sahara», de António Costa, que também participou naquele evento, publicado n' A Phala nº 19, de Julho / Agosto / Setembro / 1990. Na introdução a este texto podemos ler: «"Exilado" há mais de quarenta anos em Marrocos, Paul Bowles, escritor americano, oitenta anos de idade, começa a ser redescoberto nos Estados Unidos e na Europa. Bernardo Bertolucci acaba de filmar o seu romance The Sheltering Sky (tradução portuguesa: O Céu que nos Protege, Assírio & Alvim, 1989), a estrear no início da nova temporada. As traduções das suas obras multiplicaram-se, assim como as entrevistas. Vamos agora publicar o volume de contos A Missa do Galo, com tradução de José Agostinho Baptista. "Os seus contos estão entre os melhores que alguma vez se escreveram", disse Gore Vidal. António Costa procurou e encontrou o escritor na sua casa em Tânger. Do chá, da conversa e do ambiente, o testemunho...»
Obras de Paul Bowles na Assírio & Alvim: O Céu que nos Protege (Tradução de José Agostinho Baptista, colecção «O Imaginário»); A Missa do Galo (Tradução de José Agostinho Baptista, colecção «O Imaginário»); Deixa a Chuva Cair (Tradução de Ana Maria de Freitas, colecção «O Imaginário»); Por Cima do Mundo (Tradução de David Antunes e Sara E. Eckerson, colecção «O Imaginário»); Poemas (Tradução de José Agostinho Baptista, colecção «Documenta Poetica»); Memórias de Um Nómada (Tradução de José Gabriel Flores, colecção «Testemunhos»).