«Muito lá de casa. Hoje, ouve-se menos essa expressão. Mas, quando era miúdo, diziam-ma muito e muito gosto dela. Eram os tempos e mundos em que toda a gente conhecia toda a gente. Às vezes aparecia um nome novo ou uma cara nova. Mas havia sempre uma tia velha que se demorava num dos apelidos da apresentação. Como quem tirava gavetas da escrivaninha da memória, perguntava logo se, por acaso, o recém-chegado ou recém-namorado não seria neto, sobrinho-neto, sobrinho sem ser neto ou primo de alguém que, por acaso, tinha um apelido completamente diferente. A resposta, levemente espantada, era invariavelmente afirmativa. Seguia-se logo essa admirável expressão: o tal avô, tio-avô, tio ou primo era muito lá de casa doutro avô, doutro tio-avô, doutro tio ou doutro primo, que casa, uma só casa, era (plural, jamais) todas as casas da família. Em cinco minutos, a árvore genealógica do desconhecido era rapidamente reconstituída. Mortos e vivos, quem tinha casado com quem, o que tinham sido em vida ou morte, como tinham vivido, como tinham morrido. Uma data de coisas datadas para uma data de coisas que se começavam a datar.
As variações começavam mais tarde e podiam demorar horas. As mesmas horas que, entretanto, o recém-vindo ganhava a ouvi-las, em sua casa, quando, lá chegado, confirmava a absoluta correspondência dos factos e das datas e verificava que o meu parente nomeado também fora muito lá de casa.
Às vezes, nem tudo se passava tão cronológica e tão ritualmente. Sempre houve quem gostasse de surpresas. Ao ouvir o novo nome, perguntava-se, de chofre, se a tia Madalena estava melhor do coração, ou quando é que o Pedro e a Joana se casavam. Se o inquirido era tímido e, para dizer qualquer coisa, perguntava: "conhece-o?", a resposta vinha com um sorriso condescendente: "Se conheço… O seu tio Henrique era muito lá de casa."
Muito lá de casa eram todos aqueles de quem, lá em casa, havia retratos em imensas gavetas, que foram a primeira das minhas explorações predilectas, a primeira das minhas paixões predilectas. Esgotados os retratos de família, até ao mais remoto primo, havia centenas (não exagero) de fotografias de personagens que, nem que fosse por um dia, tinham sido muito lá de casa. Senhores barbudos, velhas com grandes chapéus, virgens pálidas, jovens olheirentos. Fotografias com dedicatórias retóricas: "Ao Exm.º Senhor F… offereço como prova de estima." Insaciável, eu queria saber os nomes de todos e em toda a casa de que era muito pedia para ver essas gavetas e esses retratos. Se os crescidos não tinham mais que fazer, identificavam-mos para meu deleite e, em dias mais fastos, contavam-me, para cada um ou de cada um, histórias de espantar.
Foi numa dessas casas, de que eu era muito, que, um dia, quando já esgotara todas as gavetas e já sabia de cor e salteado os nomes dos habitantes delas, alguém me passou para a mão um exemplar da Marie Claire. Era um número antigo, provavelmente de 1940, porque me lembro de saber que a revista interrompera a publicação, depois de os alemães entrarem em Paris. E fui parar a duas páginas — que passaram para mim a ser as páginas centrais — em que estavam retratos de 15 actrizes e 15 actores, arrumados, ao alto para as senhoras e ao baixo para os senhores, por ordem das respectivas alturas.
Era um artigo que respondia à curiosidade de quanto mediam as estrelas de Hollywood, e, da esquerda para a direita, os tamanhos iam aumentando. Nunca mais vi essa revista, mas aposto com quem quer que seja que a mais baixa das mulheres (primeira, à esquerda) era Janet Gaynor e que o mais alto dos homens era Gary Cooper (último à direita). Não sou capaz de jurar pelos homens, mas, lapsos ou merecimentos, juro que as 15 stars eram Janet Gaynor, Joan Crawford, Norma Shearer, Deanna Durbin, Jeanette MacDonald, Kay Francis, Myrna Loy, Carole Lombard, Eleanor Powell, Hedy Lamarr, Ginger Rogers, Greta Garbo, Margaret Sullavan, Merle Oberon e Bette Davis, certamente não por esta ordem.
Entre os homens, estavam, de certeza, Gary Cooper, James Stewart, Clark Gable, Fred Astaire, Bing Crosby, Spencer Tracy, Errol Flynn, John Garfield, Nelson Eddy, Tyrone Power, Robert Taylor, William Powell, Robert Montgomery. Estavam mais dois, mas com vergonha o confesso, não me lembro quais.
Nunca tinha ouvido nenhum desses nomes — ou só um ou outro — e foram as primeiras vedetas que assim, só de retrato, passaram a ser muito cá de casa. Também quis saber as histórias de todos, mas, apesar de haver cinéfilas na família, fui muito pior sucedido do que com aquele belo capitão da Marinha que morrera ao largo da Índia e tivera o corpo lançado ao mar ou do que com aquele médico que salvara o meu tio de morrer aos 18 anos com uma febre tifóide.
A vida se encarregou de pôr fim a essa injustiça. Esqueci a maior parte dos retratados nas gavetas, à medida que fui deixando de as abrir ou que se me fecharam as casas que habitavam em efígie. As actrizes e os actores, em truque bem digno da arte deles, elevaram-se desses rectângulos, em que figuravam em corpo inteiro, nas páginas da Marie Claire, para grandes planos que me ficarão a acompanhar por todo o sempre. Estáticos, nessa primeira visão, animaram-se, depois, nos muitos, muitos filmes que vi com eles. E, ao longo destes 50 anos, em que quase todos morreram e todos deixaram de ser altáveis em revistas, fui sabendo da vida deles e da morte deles, vi-os chorar e rir, dançar e cantar, fazer vergonhas e coisas sublimes. Vivi as paixões que uns pelos outros tiveram, vi-os beijarem-se e baterem-se, vi-os viver cem vezes e morrer outras tantas. E fizeram-me bem e mal, amar e odiar, chorar e rir. Por uns apaixonei-me eu, por outros não. Muitos forram hoje a casa em que cá vivo. Todos passaram a ser muito lá de casa. E foi só um princípio. Com eles trouxeram, como os demónios expulsos da parábola evangélica, não mais 30, mas mais 300, uns vindos ainda mais de trás, antepassados dessa galeria dos thirties, outros herdeiros deles, ramos da mesma árvore, filhos ou netos dos altos e baixos da Marie Claire.
[…]»