quinta-feira, 29 de abril de 2021

A CALORIA


A caloria é matéria com sorte:

folgada, como o diabo à solta,

por mais que se lhe deseje a morte,

ela teima e não tarda está de volta.

 

Ao mais pequeno deslize

ela aí está, pronta e destemida,

sempre, ou em última análise,

por ter mais olhos que barriga.

 

O tempo do que não mata engorda

acabou e com ele a alegria

de um chocolate ou de uma açorda,

malvada a sorte! Malvada caloria!


 

sábado, 24 de abril de 2021

DE ABRIL TAMBÉM


Eram de Abril todas as flores guardadas:

cravos e rosas e malmequeres também,

todas coloridas, as mais belas encarnadas

e cardos também e cardos também.

 

Jardim inclusivo de goivos e violetas;

algumas humildes, papoilas também,

outras solenes, recém saídas de gavetas

musgos e ervas daninhas também.

 

Passaram primaveras pelo horto das certezas,

verões quentes e outonos também.

Flores de jarra, de plástico e burguesas

Também, também, também, também!


 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

DE NOVO, ABRIL


Ao mesmo tempo um sonho e um grito,

assim foi Abril daquele iluminado ano:

de mãos dadas, o presente e o infinito,

rompendo as brumas do tempo insano.

 

Ao sonho e ao grito juntou-se a esperança,

projecto de liberdade com futuro:

da árvore que é regada e por fim se alcança

pelo esforço, o fruto então maduro.

 

Não importavam as noites de chão pisado,

de amargos frutos, rosas com muito espinho…

Era em frente com a rabiça à testa do arado.

 

O que foi a eito corre agora em desalinho,

porém, Abril não morre; nunca está parado:

torce, torna, não pereceu o povo nem o caminho. 


 

domingo, 18 de abril de 2021

CANTA A POUPA

 


Poupa-me, poupa,

que ficas rouca

e eu, de tanto te ouvir,

não acho graça,

por mais que faça

não posso dormir.

 

Poupa-me, poupa,

não cantes como louca,

poupa também no lamento,

não sei se choras ou ris

ou se algum mal te fiz

mas poupa-me por um momento.

 

Poupa-me, poupa,

para não te tapar a boca

- digo, o bico –

que não alcanço a rima

nem tu ficas a ganhar

passando o dia a cantar

nem eu fico mais rico.


sexta-feira, 16 de abril de 2021

RELÓGIO DA VIDA


Sou um relógio dotado,

com precisão ao segundo:

horas dadas são passado,

as outras tocam ao mundo.

 

Dou as horas de seguida,

tiquetaque sem parar;

às horas mortas dou vida

e às demais que contar.

 

Os que não gostam de mim

protestam, não querem mais

e que afinal sou ruim,

não dando a todos iguais.

 

Voam as horas, e o tempo,

em cada deixa conselho,

vai com elas, vai com o vento,

a tempo e horas já velho.

 

Horas para todos os gostos:

boas, más e de sorte,

são estes os pressupostos

até à hora da morte.


 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

NAQUELE TEMPO


No tempo em que os animais falavam,

- Comecemos por aqui, disse o homem.

Todos ferraram os dentes na presa,

excepto um, que se alimentava de espírito, deus

de todos eles e mordia pela calada.

 

Tudo era bruma sem memória

para partilhar e por isso se calavam

ouvindo as vozes dos animais atrevidos:

eram profetas; falavam de boca cheia,

com palavras rebuscadas e esse era o sinal.

 

Nada melhor para o futuro ecuménico.

Ficou assente que os animais

perderiam na fala o que os homens

a aproveitariam na fé. Assim nasceu a obesidade

e deus pode engordar no coração dos homens.


 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

RIDÍCULOS


Houve um tempo em que todos

usávamos brilhantina e

ninguém se achava ridículo.

 

Afinal, o mundo não acabou,

nem por essa nem por outra razão,

mais ou menos ridícula.

 

Fumávamos cigarros mata-ratos

e o seu nome não nos dava nojo

nem sequer nos parecia ridículo.

 

Os escudos dos primeiros ordenados

eram miseráveis e ridículos

tal como hoje os empregos e os euros.

 

As valentes palmadas que levávamos

pelas aventuras mais ridículas,

nunca saberemos o efeito que tiveram.

 

Lembramos hoje, tão bem, o ridículo

dos primeiros beijos não familiares

e sentimos amargos de boca.

 

O ridículo nunca se toma por presente

e nós, que um dia o fomos sem saber,

somos ridículos agora que o sabemos.


 

terça-feira, 6 de abril de 2021

DIA DE FEIRA


Além da chita, o riscado

na borda da tenda pendentes

em dia de mercado:

são pobres os clientes.

 

Mas há lá coisa mais sã

que um casaco de surrobeco

ou burel, que é autêntica lã;

não é qualquer farrapeco…

 

Para o dia de mercado,

pano cru de metro e quarenta,

que o povo quere-se tapado

ainda assim, a ver se aguenta.

 

De sarjas grossas e cotins

também se gastam na feira;

gangas e tecidos afins

para os de parca algibeira.

 

Popelinas e tafetás são

lordes das prateleiras,

panos de outra condição,

não são trapos para feiras.

 

O mesmo de sedas e rendas,

que aqui nem é bom falar…

Isso é doutras encomendas,

Não serve p'ra trabalhar.

 

Na feira de assentido engano

onde não há pontos sem nós,

enquanto uns tecem o pano

o tecido faz-nos a nós.


 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

O CAMINHO DOS SONHOS


Caminho e tenho sonhos:

os meus lugares de sonho, os meus sonhos já sonhados,

e outros ainda que encontrarei mais à frente. Tenho a certeza.

Sonho como uma realidade persistente;

entro e saio sempre que me apetece, afasto-me

quando não gosto. Toda a verdade tem um sonho

e eu caminho entre rosas, buganvílias e aloendros.

Enquanto houver flores saberei que sonho:

enquanto sonhar posso abrir caminho entre pedras,

cardos e espinhos de que é feita a realidade

e tudo pode florir de repente.