quinta-feira, 29 de novembro de 2018

POEMA NA HORA


Sem atenças e sem demora,
eis o poema na hora:

Por uma vez sejamos francos,
quantos generais há em Tancos?

E quantos sargentos proscritos,
e quantos percevejos aflitos?

E camelos, há ou não,
excluindo os da arrecadação?

Quem rouba um capitão
é bandido de apreço. E um pão?

Por uma vez sejamos francos,
quantos somos nós em Tancos?

E de uma vez por todas,
porra! Deixem-se de modas!

terça-feira, 27 de novembro de 2018

CHARADA DO CÃO (COM PULGAS)


Dez pulgas tem o cão
e cada pulga também.
Ao todo quantas pulgas são?
Não te enganes, conta bem.
Imagina, já que não vês
e toma muita atenção.
Dizes cem? Conta outra vez:
a resposta é cento e dez;
cem das pulgas e dez do cão…

domingo, 25 de novembro de 2018

À NOITE


Crescente e sorrateira, a Lua
com nuvens em redor dela
não cuidando que na rua
se abria galharda janela.

De par em par, a janela,
julgando que a noite era sua…
mas eu não a via a ela,
só tinha olhos p’rá Lua.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

INSTANTE


Depois de mondar o dia inteiro
e depois de amanhar os animais
e depois ainda de amamentar o filho mais novo,
sempre sorrindo,
sentou-se, por fim, a descansar.

Benditos pés que me suportaram na monda,
disse antes de adormecer,
assim murmurou sem dar por isso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

ORÇAMENTO DO ESTADO


A cada ministro sua tutela
de serviço comunitário,
e uma gamela
para o que for necessário.

Mais um tacho secundário,
restos da conta-corrente
para o secretário,
que também é gente.

Haverá sempre um lugar
no processo em curso
para dialogar
e engolir um discurso.

À mesa do orçamento,
não haverá consolo
para os de pouco alimento,
os que não comem do bolo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

CASA


A casa é um navio
(relevem o aspecto)
que nos leva pelo rio
e nos dá cama e tecto.

Um porto de abrigo
será, e com vantagem,
assim o digo
numa ou noutra margem.

Uma âncora? Um sextante?
Casa é tudo o que se tente:
socorro de um instante,
sempre que tenha gente…

sábado, 17 de novembro de 2018

POEMA COM UM OVO A CAVALO

Salvador Dalí



O magnífico ovo matinal,
alvo, redondo, isto é, oval,
com tudo para ter futuro
numa enorme panela
bem temperado, escuro,
em saborosa cabidela.

A tanto não foi a espera
(o tempo já não é como era),
que a fome não se protela
e aquele projecto de galo
em modo de cabidela
não passou de ovo a cavalo.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

OLHOS CRISTALINOS


Teus olhos frágeis de cristal
são como luas e, no fundo,
duas pedrinhas de sal,
que dão tempero ao mundo.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

OS PRIMEIROS DESAFIOS



Quando brincávamos na rua e o Sol se rendia,
submisso, aos nossos pés,
não subtraiamos; apenas somávamos e multiplicávamos,
dividíamos tudo: repartíamos, como então nos era modo de ser.
Jogávamos contra e a favor dos nossos, partilhávamos a bola
como coisa íntima e colectiva. Não havia adversários:
todos eram companheiros no jogo, nas mazelas e em tudo mais,
excepto nos golos, que eram de cada um…
Naquele tempo não subtraíamos, nem tal nos ocorria.
O tempo era de somar, de multiplicar para os mais ansiosos…

Não se pensava nas classes que haveriam de surgir
entre nós com o passar dos anos: os que teriam meios
e os que haveriam de sujeitar-se, vendendo a sua força de trabalho.
Julgávamo-nos como iguais e assim fomos sendo
até nos perdermos de vista, que é jeito particular de crescer
e nos encontrarmos num mundo dividido, que não era então
da nossas contas, porque apenas somávamos e multiplicávamos,
dividíamos tudo,  éramos incapazes de subtrair o que quer que fosse
à alegria de ali estarmos e partilhar o nosso mundo.

As corridas sem freio e os remates longe da baliza
eram só intenções, só isso, nada de ultrapassar quem quer que fosse
e, no entanto, ganhávamos e perdíamos (às vezes empatávamos…)
com o mesmo entusiasmo e com os mesmos abraços
de vencidos e vencedores de um jogo que não era mais que um jogo,
mais que um tempo em que todos nos juntávamos
e nos comprazia estarmos, naquele tempo em que não subtraíamos;
apenas somávamos e multiplicávamos e dividíamos tudo,
tal como o desejo de sermos homens e ter futuro.

domingo, 11 de novembro de 2018

O PRINCÍPIO DO MUNDO


Se o mundo teve um início, como eu espero,
imagino que irrompeu da treva
ao som de uma música, também primordial,
onde predominavam os címbalos, os fagotes
e os tambores, de enormes proporções,
ainda em embrião. O resultado terá sido estrondoso,
por não existir pauta ou director de orquestra.
O mundo terá saído desse caos musical,
que o impediu de nascer perfeito e harmonioso.
Deuses houve, mais tarde, a reclamar para si
a autoria de tamanha obra,
sem saberem uma única nota musical.

Os primeiros acordes, estou certo, eram gritos
da terra nua, rompendo águas e negrumes:
o mundo chorou ao nascer, não seria de outro modo.
Serenou depois. Deixou-se cobrir de nuvens
e o seu corpo tornou-se num imenso colo de água.
Por esta altura surgiram violinos e violoncelos
a imitar ventos e medonhas tempestades.
E de novo se intrometeram os deuses, com os querubins,
soprando flautas, dedilhando harpas, suspensos.
Apesar de tudo, imagino que o mundo
só podia ter nascido ao som de música,
porque ninguém lhe sobrevive
e nada pode existir na sua ausência.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ALMA DISSIPADA


Encontrei uma alma perdida
num compêndio de ciência.
Que faria a pobre sem vida,
de que lhe servia a experiência?

Talvez, exausta, procurasse
um paraíso extinto, turismo,
ou então não encontrasse
o caminho para o catecismo.

Pouco soube ou mesmo nada,
soltando ais a mais e outros sais,
desfez-se em água e, condensada,
subiu ao céu para nunca mais…

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

MALVAS


Às malvas, é dito vulgar,
como coisa sem valor.
Não é justo assim falar
de tão generosa flor.

Serena flor, benigna rama,
- nunca o diria se não fosse -
e não se livra da fama:
o seu chá faz bem à tosse.

Outrossim para a malícia,
mas aqui com outro fito,
dizem ser uma delícia,
aguar de malvas o dito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A VERDADE PELAS ÁRVORES


Tempos após sermos floresta, dados à sorte,
voltamos à cinza, o pó a que chamamos morte.
Uma vida presa às raízes, se é que elas prendem,
quase tudo e quase nada de quanto somos
e, por fim, algures, como candeias que se acedem,
um dia seremos apenas o retrato do que fomos.

sábado, 3 de novembro de 2018

NATAL


Um dia destes enfeito-me de azevinho,
bagas vermelhas em cima e aos pés caruma.
Vestido assim, (a ver se adivinho):
humana árvore de Natal ou coisa nenhuma.

De azeviche não, (ai a língua portuguesa!)
À maneira sóbria das damas antigas,
fazendo sinal da cruz, sentadas à mesa,
exibindo no decote um colar de figas.

Visto-me assim de vermelhos frutos,
que da natureza sou, de vermelhos gosto
e sem vaidade digo: são gostos mútuos;
de hipocrisias basta, é nisso que eu aposto.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

CAMINHOS



Um caminho na terra não é
um caminho de terra, porém,
indo de cavalo ou a pé,
caminho é ir mais além.

E, estando além, volta a ser
caminho o que foi percorrido:
caminho voltamos a ter
depois do caminho cumprido.

Volvemos então ao lugar
de onde partíramos à ida,
que à volta temos de aceitar,
tornar ao ponto de partida.

E eis que voltamos a ter
mais caminho para andar,
quantas vezes se quiser,
que estar vivo é caminhar.