quinta-feira, 30 de julho de 2015

POESIA A 4 TEMPOS


Poesia pode ser profana,
alma ou luz de uma ideia:
tanto pode ser Joana,
como, a seguir, Dulcineia.

Poesia é uma flor por nascer
e quando floresce é bem-vinda.
Por enquanto, é bom de ver:
não é poesia, ainda.

Poesia é um sol de encanto,
o desenho duma flor
e vá-se lá saber quanto
do brilho é lápis de cor.

Poesia é uma ave-do-paraíso
que me faz a corte, me algema
e, exuberante, quando é preciso,
pousa no galho dum poema.

terça-feira, 28 de julho de 2015

AI POESIA


Não tenho o direito de dar à luz
todos os poemas que construo
entre as veias e a memória
(creio que é por aí…)

Muitos ficam irreconhecíveis;
aguados de náufragos vocábulos,
onde as palavras socorristas
não chegam ou não lhes podem valer.

Chega mesmo a acontecer
ao verso afoito e já metáfora
perder o poema, ainda a caminho,
algures, preso ao âmnio preguiçoso.

domingo, 26 de julho de 2015

MEMÓRIA


No baú, uma velha alma dobrada em quatro,
aparentando ainda já ter tido melhores dias,
e o fóssil de um soneto inglês, numa folha A4,
além da caixa, sempre a caixa das fotografias.

A memória, como glicínias, floria exuberante
em cachos de versos de admirável aparato.
Nada mais enganador: pó, um poeta debutante,
alguns erros de ortografia e um frívolo retrato.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

VISITA IMAGINÁRIA A BRECHT


Por que haveria de chover de forma tão copiosa
no dia que desembarquei em Augsburg,
vindo de Munique, 
quarenta e quatro anos após a morte de Bertolt Brecht?
No ramo, os cravos vermelhos
pendiam como lágrimas de choro convulsivo
e as suas pétalas tingiram o chão
já encharcado de outros  prantos.
Dramatizo. Não era assim tanta a chuva.
Não era Augsburg, não era Brescht, não eram cravos
e muito menos chorando de forma tão pouco digna.
O mais provável é não ter feito esta viagem
nem este texto ser meu.
Toda a literatura de Brecht grita dentro de mim.
Isso é verdade.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

O BICHO


O bicho não é bicho inteiro:
na verdade, metade é bicho,
a outra metade lixo,
para o fazer de corpo inteiro.

O bicho tem peçonha:
cospe, baba-se, o bicho.
Não tem um pingo de vergonha,
Nada a fazer, é lixo.

Diz que é pobre, miserável.
É um indigente, o bicho.
Será até um pobre descartável,
Contudo é lixo.

Quando fala, senhor da verdade,
nada diz, o bicho.
Bolça veneno, maldade,
e o discurso vai para o lixo.

E quem o louva e defende
(e pode muito bem não ser bicho)
é gente que não entende
que também é lixo.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

RETRATO DE POETA



Nunca me fizeram um retrato
de poeta.
Mas fotografaram, pintaram e até esculpiram Pessoa
com o inevitável chapéu de feltro e o par de lunetas
que repartia com todos os heterónimos.
Não tenho um único retrato
de poeta.
Ao contrário de Walt Whitman,
que foi imortalizado em pose de patriarca iluminado,
velho, de barbas esgadanhadas muito além da decência      
da pilosidade poética.
A Baudelaire, que era feio, fizeram-no
com certeza por maldade.
Eu é que nunca posei
enquanto poeta,
com a mão apoiando o queixo, como os românticos
ou ambas todo o rosto, como os surrealistas.
Ou será ao contrário?

Vá lá, por favor, façam o meu retrato
de poeta,
que não tardam aí poetas do futuro,
desejosos de escrever sobre ele um ou dois versos
dum poema magnífico.

sábado, 18 de julho de 2015

CAMPAINHAS


Tocam campainhas p’rá folia
ao sol que oferece este maná:
é a primavera por um dia,
se amanhã é prima, se verá.

Obras-primas, com certeza,
 as orquestrais sinfonias
das pautas da natureza
na primavera dos dias.

Cheira a terra, o prado aquece,
bamboleiam  rosadas esquilas
(agora, o que não é, parece:
confesso que posso ouvi-las…)

quinta-feira, 16 de julho de 2015

EMENTA ECONÓMICA


Hoje não há hoje.
Há apenas uns restos de ontem,
o caldo entornado e sonhos de amanhã.

terça-feira, 14 de julho de 2015

FIGURA DE URSO


Amigo, vem à janela,
que te quero dar um recado:
não andes na boa-vai-ela
fica em casa, resguardado.

Andam para aí pretendentes
(com equivalências do curso)
que apenas mostram os dentes
e fazem figuras de urso.

domingo, 12 de julho de 2015

ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA


Água mole pedra dura
água mole pedra dura
água mole pedra dura
tanto dá
tanto dá
tanto dá

água dura pedra mole
água dura pedra mole
água dura pedra mole
até que fura
até que fura
até que fura

dura a pedra dura a água
quem as fura?

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O TRASTE


Com a leveza da espuma,
luva preta em pelica
e um chapéu de aba e pluma,
como se arruma, que bem lhe fica.

A calça tem aprumo, um vinco
de goma e rigor fantástico.
Quase não se vê o cinto
e o par de botas de elástico.

Espreitam das mangas botões
de pérola em punho de renda,
(na verdade imitações)
mas alto lá com a encomenda.

terça-feira, 7 de julho de 2015

MAÇÃ


Como não um amor assim?
Os nossos corpos de manhã,
eu de ti e tu de mim,
o toque e a primordial maçã…

domingo, 5 de julho de 2015

A BANCA ABANCA


A banca
abanca
toma assento
à mesa do orçamento

dá razão
ao livro de razão
deve e haver
é seu dever

então denota
que de nota
não é demais
e pede mais

a banca rota
abarrota
no economato
ou morre ou mata

e diplomata
mata

sexta-feira, 3 de julho de 2015

A POMBA


A pomba (branca) desceu finalmente
do seu altar de paz e veio pousar na praça,
junto às demais e aceitar as migalhas
que os velhos e ociosos costumam atirar aos pássaros.
Não contente com Picasso, que a desenhou, pintou e esculpiu
dezenas de vezes durante anos a fio
sem a contrapartida de uma migalha (de esperança).
Diz-se cansada do voo interminável a que foi sujeita,
com o raminho de oliveira no bico – que nem sequer
podia engolir – apelando à paz entre os homens.
Cansada e velha (a pomba) passa agora os seus dias
junto aos da sua espécie, come as migalhas que consegue,
arrulha como os outros e dá trabalho
a quem é obrigado a limpar diariamente as ruas.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

VER


Se olho é porque olho;
e se não olhar não vejo,
e se não vir, não escolho,
não decido nem elejo.

Se olhar a espiga ao sol,
que vejo senão espiga,
que vejo senão sol?
O olhar que o diga.

Vendo, o olhar não pára,
é o que sinto; o que digo:
ali vejo uma seara,
um mar de pão de trigo.