quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O TEMPO PASSA!



Esta manhã encontrei o passado.

Ambos conhecemos aquela esquina:

eu, por tal sina;

ele, por lá ter ficado.

 

Vestia fato preto, discreto,

mas de porte leve e transparente.

Todo um passado em seu aspecto

intacto como se fosse presente.

 

De tarde, com o sol já descendente,

e o passado um presente prematuro,

reparei que afinal estive ausente

a caminho do futuro.

 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

VERÃO DE S. MARTINHO


Vou contar-te: fazia sol

e tomei a benesse por natural

(não havia razões para a por em causa).

Fazia sol, dizia.

As árvores sorriam-me

como se fossem as rainhas do parque

e eu um príncipe encantado.

Quase sempre me comprazem estes dias

de inesperada luminosidade

e por isso me lembrei de te contar.

A par de tudo isto as folhas vão caindo

em cima dos nossos outonos

mas não era isso que te queria contar agora,

apenas se tornou inevitável dizê-lo.


 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

ATIRANDO PEDRAS


Para onde vou ou quero ir,

quem sou, que penso eu,

o que de mim posso sentir,

tudo o que realmente é meu..

 

Como saber se é bem

o que por bem me faço

ou que mal há neste vaivém:

penso e daí não passo.

 

E se penso faço o que posso,

se posso já não peço.

Por fim, resta o remorso 

do que sou e não pareço.

 


 

domingo, 18 de outubro de 2020

AVEC LE TEMPS


Muitas vezes não foi o préstimo das flores,

a beleza das pétalas; era o cheiro sem nome,

o perfume que as primaveras têm

por serem primaveras e mais nada.

Dizíamos que o cheiro era agradável e nos comprazia.

À falta de substantivo melhor, chamávamos-lhe Primavera.

Nunca fomos além do consentido, do que era comum.

Até hoje, todos os nomes se mantêm intactos,

apesar de nenhum deles ser verdadeiro. 

 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

(RE)CICLO

Com mistério e medo,

algemas cerebrais,

vestígios de segredo,

que esperas mais?

 

Não podes, não faças,

acorda mais cedo,

o vinho das taças

está azedo.

 

Servida a zurrapa

dirás que é reserva, um licor raro,

beberás à socapa,

que o barato sai caro.

 

A bebedeira é segura,

a causa é sagrada.

Dada a conjuntura

venha outra uma rodada.



 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

DA MONTANHA AO MONTE


Um monte, uma montanha, tanto faz,

que me comova ou tire a respiração

por ser cinzento, intransponível como a paz,

choro com ele, doí-me o coração.

 

Depois, transposto, que tudo se consegue,

o que vejo mais além no horizonte?

Nada, a não ser caminho e sede,

vontade para alcançar um novo monte.


 

terça-feira, 6 de outubro de 2020

DE OUVIR DIZER



Como posso eu comprar vinho, Senhor,

ao preço que estão as uvas,

mais o pé-de-obra de esmagá-las;

como posso eu aventurar-me assim

como vós, que sois capaz de o fazer

a partir da água, a partir do nada,

que é o valor dado à água quando abunda?

Guardai, que vos pedirei ajuda.

 

Mas é de água que preciso agora, Senhor,

não desse etílico líquido, que me mata

e não mata sedes antigas.

Guardarei o bem-aventurado vinho

para as sopas de cavalo cansado, tão nutritivas,

e mais tarde falaremos do pão necessário,

assunto em que também sois mestre

muito competente, segundo ouvi dizer.

 

É de água, pois, o meu pedido, Senhor,

não daquela deslavada que me entra

pelas frinchas do telhado e eu chamo chuva

há uma data de anos.

Água doce, benzida ou não, tanto faz,

mas que eu não tenha de a chorar,

não precise de fingir que tudo está bem assim

e morra de sede como as nuvens.

 

domingo, 4 de outubro de 2020

ESPERAS


No tempo em que o Sol não tinha para nós

segredos de maior, visitávamos os primos,

as avós (inexplicavelmente, os avôs morriam muito cedo)

e a família acrescentada em cada rua da cidade.

 

Depois que o Sol se tornou, além de calendário,

um inexorável marcador de esperas e desesperos,

a vida tornou-se um sítio de desencontros

e passámos a aguardar pacientemente que nos visitem.