sexta-feira, 28 de setembro de 2012

DOR EM DUPLICADO


A força duma lágrima de dor e mágoa
prova um lado enxuto, outro molhado
e, como o reflexo num espelho d’água,
mostra a dor e a mágoa em duplicado.

E se tal exibição é talento de ensinar,
acresce o quê à dor já conhecida?
Pode ser fiel a cópia ao primeiro olhar,
mas nunca a dor que dói repercutida!

Qual a dor mais violenta, mais doída
a que dói em nós, sabendo que é sentida
ou aqueloutra que de nós vemos reflectida?

Não é a dor de a vermos, que nos afronta
mas a que temos e sem a termos em conta,
reflectida ali nos dói mais se nos confronta.



quinta-feira, 27 de setembro de 2012

SEGUNDO POEMA DO RATO E A POESIA


Quis então ser gente, o rato.
Subiu o mais alto que pôde
e espreitou o mundo
onde é semeado, ensacado
e comido também, o trigo
e os humanos fazem versos
para se divertirem,
os guardarem em prateleiras,
depois de se alimentarem
espiritualmente.

Concluiu assim, o rato,
que uma saca de trigo
tem muito mais poesia
do que alguma vez
foi capaz de imaginar.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

PRIMEIRO POEMA DO RATO E A POESIA



O rato fez a sua obrigação.
A sua natureza de rato
ditou-lhe a sujeição, natural,
de roer a saca de trigo
e não encontrou
poesia nenhuma lá dentro,
uma estrofe que fosse.
Mas ficou satisfeito,
barriga cheia.
A poesia não enche barriga,
pensou o rato.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

POESIA u






Poesia é um sol ao canto
num desenho feito de cor
e vá-se lá saber quanto
do brilho é lápis de cor.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

POESIA o





Poesia é uma flor por nascer
e quando florir é bem-vinda,
por enquanto, é bom de ver:
não é poesia, ainda...

domingo, 23 de setembro de 2012

POESIA i





Poesia pode ser profana,
alma ou luz de uma ideia:
tanto pode ser Joana,
como, a seguir, Dulcineia.

sábado, 22 de setembro de 2012

POESIA e





Poesia é água e sal dum marinheiro,
de há muito experimentado arrais,
que transporta a lua num veleiro
e a leva branca e ilusória até ao cais.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

POESIA a









Poesia é uma ave-do-paraíso
que me faz a corte, me algema
e, exuberante, quando épreciso,
vai pousar no galho dum poema.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

DETRÁS DUMA MOUTA ESTÁ OUTRA


Com a ninhada para alimentar
o coelho está seguro na mouta
com a batida a começar
é lá que, seguro, se acouta.


Mestres da arte da mentira,
exibem-se, sazonais, alternativos.
No fim, o que um dá outro tira
e pedem graças por estarmos vivos.

Mas as contas fazem-se no fim
- vai no meio a procissão -
sem lugares para os assim-assim,
veremos quem tem razão,

se o bando de bufarinheiros,
troca-tintas, agiotas, malteses,
judas por trinta dinheiros
ou somos nós, portugueses.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

SINOPSE


(Notas para a descodificação política e outras novidades da mentira de lei)




Os ministros embebedam-se com a própria incompetência,
vomitam decretos-lei com borras da adega de trinta e três.
Aprendizes sábios do virtuoso beirão, por equivalência,
preparam-se para abrir a nacional taberna pela segunda vez.

Os ministros dão públicos ares duma alucinação estranha
e pronunciam cifradas línguas bárbaras neoliberais:
comportam-se como súbditos da estrangeira Alemanha
e, em vez da fala humana, grunhem como os animais.

Não queremos a sua morte, lutamos pelo degredo eterno,
para que vão purgar tais vícios nas labaredas do inferno.

domingo, 16 de setembro de 2012

OFICIAL E PALHAÇO



Igual, mais traço menos traço,
nariz redondo e vermelho,
não pode mentir-se a um espelho,
a tua cara é de palhaço.
Teatral, a quem queres agradar:
aos que te garantem manchete
ou àqueles que tiraram bilhete?
É que a ambos nem pensar.

Segue a imagem, passo a passo:
faces, boca e olhos maquilhados,
capazes de enganar os menos avisados.
Aparentemente és um palhaço,
assim te vês, é o que se vê.
Por ofício um vulgar faz-tudo,
por missão um mentiroso sortudo.
Vejo que és ministro, mas de quê?

Vejo o estupor e o riso de desdém.
Vejo que és ministro, mas de quem?

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

SEM QUALQUER IMPORTÂNCIA



Mortais de ciência exacta
e filosofias respeitáveis,
enquanto vivos. O que mata
é sermos assim, beliscáveis.

Beliscáveis de vário sentir
de famosos a sem nome:
uns, expiram a fingir
e os demais morrem de fome

legalizada, constitucional.
E até aqui nada de novo;
nada para além do normal.

Em caso de urgência, estorvo
ou belisco orçamental,
pode trocar-se de povo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ENQUANTO É TEMPO


O nervo que delimita o bom senso tende a estalar.
O osso, a veia ou víscera (se os há nesta função)
há muito que reclamam, em alta voz, de aí estar
e as análises dizem que é tempo de mudar a prescrição.

O diagnóstico é perfeito. Os sintomas, tudo indica,
podem contagiar rapidamente qualquer um
que ignore o mal e que, sentindo a dor, se fica,
pois é padecimento de condição e é comum.

Erradicar o vírus é assim a proposta mais sensata:
não é do nervo, do osso ou veia, mas da conjuntura
e a desfortuna que nos corrói, destroça e mata,
não reside na enfermidade mas sim na cura.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

SUICIDÁRIO



Por enquanto aguenta,
está na ribalta,
celebra, desdenha, inventa:
doutros seja a falta!

Está em alta,
incha e “se não faz rebenta”.
Vontade não lhe falta,
mas retém, aguenta.

Quando incapaz, tenta
a montanha mais alta
e, em câmara lenta,
de asas gastas, salta.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

AS DORES DO MUNDO



Dou por mim doendo-me o corpo todo
de azias várias e de queixas mais de mil,
muitas vezes areia grossa, outras lodo,
outras são de malignidade mais subtil.

Não me dói a dor, mas a sua causa;
dói-me a dor que a dor sustenta:
começa grave, insinuada, faz uma pausa
e entranha-se, aguda, que não se aguenta.

Dói-me em cima, em baixo e ao centro,
suspeito que levo todo o mundo dentro…

terça-feira, 4 de setembro de 2012

ONDE A TERRA ACABA



O mar, por tentativas
escala furioso a escarpa,
encharca, corrói o mapa
em vagas sucessivas.

É a vez do mar
submeter, insano,
feito oceano
e se aventurar.

Deuses, monstros e mitos
dormem na praia agora
para quem clama e chora
p’la senhora dos aflitos.

Ó mar de medo e águas frias,
sepultura e estrada
que acolheste as caravelas
- não aos homens mas a elas –
se nada vem do nada
que fazemos às alegorias?

Que nos reclamas, insurgido mar,
que queres dum povo
prestes de novo
a embarcar?

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ÉLUARD/APOLLINAIR


As estatísticas revelam que a France Presse
e mesmo a Reuters te citam apenas uma vez
por cada duas em que comentam ou evocam Apollinair,
meu caro Paul Éluard, ou Grindel, como quiseram
que fosse o teu nome de família.
As estatísticas só servem para indignarem
aqueles que gostam de ti,
talvez porque não queiram arrebatar à morte
a tua visão da vida, e tu deixaste de gritar
no ano em que eu nasci, há sessenta anos, Paul.
O teu combate, a tua dor, a tua voz e o teu amor
nos versos que me debruavam os lençóis
de adolescente sobrevivem ainda hoje
na minha memória crítica e lúcida como os teus versos.



sábado, 1 de setembro de 2012

O LUGAR DAS COISAS


Gedeão podia ter dado mais à poesia
e foi um bom professor de físico-química;
podia ter sido um inigualável professor de físico-química
e foi um poeta toda a sua vida.
Jorge de Sena é que não devia ter prefaciado
a sua obra completa e bastar-se com ser Jorge de Sena,
que era já bastante.