sexta-feira, 11 de outubro de 2024

ANDAR, POR ENQUANTO


O teu andar, por enquanto,

devagar, inseguro, hesitante,

o teu andar doravante

será certo e equidistante.

 

Por enquanto, anda que não anda

vai que não vai, caminha,

porque não é o teu andar que manda;

é o outro lugar que o encaminha.

 

Por enquanto, é este o teu lugar,

o sítio onde vais ou queres ir,

depois veremos se queres ou não parar,

se preferes algum lugar ou desistir.

 


 

domingo, 22 de setembro de 2024

VAMOS ANDANDO



Anteontem tive sinais, volta e meia,

de sufocos, coisas várias, falta de ar,

que afinal se revelaram branda diarreia,

e diagnóstico simples de mau mastigar.

 

Outras foram fístulas já antigas

de rabo alçado às ordens de fino bisturi.

Tudo feito com cuidados de mãos amigas

nada de maus presságios e não morri.

 

Virá um dia aquela que não se espera,

súbita, de subtil e inesperado recorte,

da vida não é o que me deu, mas o que me dera

e por uma pequena fresta encontrarei a morte. 


 

sábado, 14 de setembro de 2024

VÉSPERAS DE MÚSICA


Um ornato cantante,

quase um altar natural,

um parapeito, uma estante,

o palco dos lilases no quintal.

 

Debruçam-se amolecidas

as pétalas de veludo

como se tivessem mil vidas

e sem mais terem, têm tudo.

 

Ensaiam o pranto, digo, o canto

na orla da casa antiga

e para meu prazer e espanto

o seu choro é uma cantiga.


 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

"VELHOS SÃO OS TRAPOS"



Despe e veste dia a dia

o trapo que esconde os anos

trepa, trapa a fantasia

e do tempo desenganos.

 

Sabem de nós os trapos

o que não saberemos deles,

são agasalhos, são fatos,

fazem-nos trapos com eles.

 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

FANTASIA



Um dia destes,

subo à árvore que em mim cresce

e da copa olharei a terra que me cerca.

Saberei, desse burladero,

as ervas que me cingem, o chão que me sustem.

E, observando tudo isso,

tirarei sérias conclusões:

as minhas sementes serão encaminhadas

de modo a ter o melhor chão

e poder morrer tranquilo,

caso não haja impedimentos de última hora.

 

domingo, 18 de agosto de 2024

BEIJOS GUARDADOS



Trazia no bolso, embrulhado

um beijo para te oferecer,

guardei-o tão bem guardado

que acabei por me esquecer.

 

Outro dia será, com juros,

quem sabe, juras para o depois,

se os beijos estiverem maduros

e forem bastantes para dois.

 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

O MEU TEMPO


Queria dar-vos um conselho

sobre o tempo que eu aprovo:

o tempo não passa por velho,

o que passa é tempo novo.

 

Se não, o tempo passado

já chegava bem maduro,

e por isso chegaria atrasado

para o que espero do futuro.

 

Quero o passado onde está

e o futuro no que há de vir

tudo em seu lugar, não vá

de tanto esperar desistir.


 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

EZEQUIEL, POR EXEMPLO



O meu nome é Ezequiel,

esse foi o nome que me deram.

Além de mim e da curiosidade

de alguns cidadãos

ninguém mais se importa com isso.

 

Por assim dizer, sou um cidadão anónimo,

com nome próprio,

mas que ninguém tem interesse em saber,

salvo raros casos

em que me pedem o cartão de cidadão

para o olharem com desdém

e, por fim, conferirem com a minha cara,

voltando à sua tarefa cabisbaixa.

 

Muitos sorriem ao ouvir o meu nome:

Geralmente os Josés, os Joões e as Marias.

Não sei o que pensam.

Imagino que me atribuem alguma deficiência

enquanto embalam com ternura

os nomes que lhes foram dados,

tal como a mim, que nada pedi ao nascer,

nem voltarei a nascer para pedir seja o que for.

 

 

NATUREZA


“O que sucede à árvore sucede ao homem. Quanto mais se quer erguer para o alto e para a luz, mais vigorosamente enterra as suas raízes para baixo.”

(Assim falou Zaratustra, F. Nietzsche)

 

 

Dizem das árvores

a raiz profunda

- natureza-morta, óleo sobre tela

Dizem das árvores

a sombra fresca

- natureza morna, o sono, a sesta

Dizem ainda das árvores

os frutos maduros

- essa é a natureza humana.


 

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A VER VAMOS


Não sinto o sentir perfeito,

tenho uma leve impressão,

não presumo causa ou efeito,

nem lhe encontro uma razão.

 

Sinto que sinto algo vão,

que sendo esparso levo a eito,

não fico preso por sim ou não

nem levo razões a peito.

 

Entre sim e não há defeito,

um compromisso com a razão

e só no futuro perfeito

saberemos se sim ou não.

 


 

terça-feira, 23 de julho de 2024

PASSOS PERDIDOS



Já não passas como passavas

na velha rua onde moro,

não me vias nem olhavas,

eu ainda por cá me demoro.

 

Agora, passo dias sem fim

rua abaixo, rua acima ou quase,

olhando para trás de mim,

com medo que a sombra se atrase.

 

Espera, oiço-te agora passar

e toda a cadência é do andar teu,

ou então sou eu para te imitar,

que afinal o andar é o meu.

 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

CAMINHOS


Caminho até onde posso ir

sentado na velha pasteleira,

escolho o trilho sereno

das árvores, das árvores gigantes,

partilho com elas o bosque,

a terra, o vento, cada clareira,

e mais nenhum itinerário é agora

igual ao que foi antes.

No caminho das bétulas

havia lugares mais aprazíveis,

porque a idade é capaz de milagres…

Veio depois um tempo

em que o toque de uma folha caduca

era o beijo juvenil que me faltava.


 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

GLOBAL CEGUEIRA


Não nos reconhecemos,

passamos um pelo outro,

acenámos por boa educação

e mais nada. O nevoeiro das notícias

distorce o nosso olhar

e deixa-nos estranhos, mundivalentes

de ofício, de olfato, como os cães.

Não ladramos, ainda, é certo,

mas já marcamos terreno

no mundo que nos passa a correr

à frente do nariz, sem fonte e sem raiz.


 

terça-feira, 9 de julho de 2024

VOCABULAR

Erradicados os majestáticos

haverá um tempo

em que todos os nomes

serão interjeições

e poderão ser chamados

com gritos e grunhidos

e todos os adjectivos, verbos

de encher.

Os pronomes serão donos

do mundo e das gramáticas,

então usadas como catecismos,

todos em maiúsculas,

mudos de nós, cuja maioria

mente ou não quer falar.

-Deixa lá ver se isto se endireita,

dizem os adjectivos.

É por tudo isto que os ditongos,

de cabeça e par perdidos

apelam à unidade da língua.


 

quinta-feira, 20 de junho de 2024

UMA GOTA DE SUOR


Precária, a gota de suor,

percorre-me a face,

segue as rugas em redor,

titubeia ante o desenlace.

 

Volteia com destino à vista

num itinerário fecundo,

de nada vai à conquista

e nada sabe do mundo.

 

Perde-me, por fim, o rasto,

sendo ainda parte de mim

ou sou eu que me arrasto

e me fujo com outro fim?

 

Cai por acção da gravidade,

é já uma gota fria,

e finda a sua sagacidade

perde toda a poesia.


 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

À CONDIÇÃO


Havia um bicho que comia

outro que saltava

e outro ainda que acreditava

que o bicho comia por fome

noite e dia, mas não,

era a fome que o consumia.

 

O que saltava, pensava o que comia,

não se continha,

por ter mal de pernas ou de espinha,

- vá-se lá saber o que o bicho sente!

Ciente ou não

o bicho saltava de contente.

 

O terceiro, que apenas cria,

cria no seu crer de bicho,

que era tudo uma questão de capricho,

como pessoas, igual,

quer se aceite ou não

e só não lhes chamamos bichos por parecer mal.


 

domingo, 2 de junho de 2024

SOLIDÁRIO

 

Quis escrever um poema com rosas

e cheiro a alecrim

e quis dar-te as cores que assomam

no arco-íris

estava para elas, dava-te tudo e cheguei tarde.

Além do mais, gostava que ouvisses

o som dos sinos da minha aldeia

- apenas os sons, não o que eles clamam –

e queria ver-te dançar como dançam as crianças,

sorrir, como fazem as bailarinas,

era essa a minha intenção e cheguei tarde.

Tinha guardado um sol para te oferecer,

um sol de verdade: universal e luminoso,

como aqueles sóis dos desenhos de criança.

Fosse ou não apenas uma candeia de esperança,

era toda a luz do mundo que tinha para ti,

era futuro e vida e cheguei tarde.

Cheguei mesmo a pensar em batatas e arroz

para te enviar mas houve sempre gente

que achava um exagero a minha preocupação.

Hoje tenho apenas um abraço fraternal

e isso farei até que terminem os meus dias,

espero não chegar tarde, Palestina. 


quinta-feira, 30 de maio de 2024

INCOMUNICÁVEL


O amor por um tris

te de mim que o sei

o breve me iludiu

 

a vida duradoura de fio

a pavio que arde

mas não cura

 

futuro promissor e lim

bo que espera

sempre amanhã

 

e na arte de en

cantar vamos rindo

depois falaremos disso


 

domingo, 26 de maio de 2024

POEMA DO NADA



Prefiro o sono que não vem

quando é mais preciso, por cansaço;

não pelo fastio, no cúmulo, que é desdém,

e esse é favor que não quero e que não faço.

 

Espero por palavras desocupadas,

das que não se oferecem, ninguém dá por elas,

depois fazemos uma roda de mãos dadas

imitando uma constelação de estrelas.

 

Quando o sol, mais que perfeito,

aloira os campos ainda adormecidos,

chegam as palavras novas ao seu jeito

já com destinos traçados e limpas de resíduos.

 

É a hora do poema, da palavra átona, preguiçosa,

pouco mais que simples heresia.

E é a isso, a essa pérola preciosa,

que por hábito lhe chamamos poesia.

 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

MINHA COLECÇÃO DE JÓIAS RARAS


 

Os teus olhos, melhor,

o teu olhar

uma lágrima

com o arco-íris dentro

um cravo vermelho

um par de asas por estrear

e outro par de brincos de cereja

o teu olhar, já tinha dito?

beijos, como novos, que não encontraram

os lábios de destino

uma gotinha d’água do Alentejo

uma mesa de tripé com quatro pernas

para não se confundir com as de cinco

trinta folhas de amoreira

sobrantes da última Primavera

dezenas de gavinhas secas

que por algum motivo fui juntando

e o último suspiro de um cisne

guardado numa campânula de vidro.

 

Gostava de ter acrescentado os teus olhos,

melhor, o teu olhar,

mas esqueci-me.

sábado, 13 de abril de 2024

VALORES NATURAIS



Ah, que pena! Tenho braços e mãos

em vez de asas. Não voo.

Mas é sensata a natureza:

sabe que preciso ainda de dar umas bofetadas,

antes de atingir a santidade.

 

 

sexta-feira, 22 de março de 2024

PRIMAVERA

 

Andava a chuva, chovendo

como é normal,

´té que o Sol em a vendo

cair no meu quintal,

lhe disse em tom reverendo

- Ó menina não faça tal,

tenho tudo à minha espera

e não posso andar correndo

que me cansa e me faz mal,

já chegou a primavera.

 


 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

DITADOR



Era um gnomo,

um pingente,

da laranja um gomo,

dez réis de gente.

 

Fez-se senhor

de colarinho e anéis,

um ditador

dos mais cruéis.

 

Digamos que sim,

que é verdade pura

-ai de nós, ai de mim!

Vem aí ditadura.

 

Não foi ´era uma vez´

a fruta malsã

e às duas por três,

outra vez amanhã.

 

Dez réis de gente

que vai e que vem,

hoje pingente

amanhã ninguém.

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

OS BEIJOS


Não sei que fazer aos beijos

que trago zelados no bolso:

alguns para dar em festejos

outros quero dá-los e não posso.

 

O beijo tem deve e haver;

ao dá-lo tem reciprocidade

e eu não os dou sem antes ver

o saldo na contabilidade.

 

De repente ficar sem beijos

dá-me aflição, nem pensar…

já não são beijos; são desejos

de querer e não ter para beijar.

 


 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

ALGUMA BONOMIA


Além, daquela velha árvore

vou trazer um bom chamiço

para assar um chouriço

e agora chama-lhe lá parvo.

 

Atiçado o lume e a candeia acesa,

não tarda, às duas por três,

por mor de aquecer os pés,

não tenho quem mos aqueça.

 

Assim, o corpo fica temperado,

com um ou dois copos de vinho,

que o chouriço não morre sozinho

nem eu fico desidratado…


 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

NA MORTE DO MENINO JESUS


Na noite de Natal vi o menino Jesus
ser assassinado na Palestina.
Não tenho dúvidas que era ele,
entre milhares de outros baleados,
sem nome e em nome de outra profecia.
O menino Jesus jazia nos braços de sua mãe,
já sem lágrimas para o chorar,
e ali estava ele. Branco e defunto.
Não vou chorar o menino Jesus
morto ao colo de sua mãe.
As minhas lágrimas nada iriam acrescentar
à dor daquela mãe, de todas as mães.
O menino Jesus foi assassinado na Palestina
na noite de Natal e são conhecidos os culpados
ou querem que acrescente os criminosos
ao presépio para memória futura?!