831 3339 1 PB
831 3339 1 PB
831 3339 1 PB
RESUMO
A terapia comportamental dialética (DBT) é um protocolo clínico inicialmente desenvolvido para o trata-
mento de comportamentos suicidas e parassuicidas, e posteriormente estendido para algumas psicopato-
logias, como o transtorno da personalidade borderline. O tratamento envolve a aprendizagem de compor-
tamentos pré-requisitos, divididos nos estágios (1) “alcançando as habilidades básicas”, (2) “redução do
estresse pós-traumático” e (3) “resolvendo problemas de vida e aumentando o respeito próprio”. O presente
artigo analisa se, e em que medida, a DBT preenche os critérios filosófico-aplicados de inclusão nas terapias
baseadas na análise do comportamento. Para isso analisou sua concepção filosófica de base, bem como as
estratégias de avaliação e intervenção. Argumentou-se que o embasamento filosófico adotado se aproxima
do behaviorismo, devido a sua definição de comportamento, concepção de causas e de seleção. Foram iden-
tificadas também estratégias de avaliação e intervenção, com foco na aceitação e na mudança, baseadas em
análises funcionais, no reforçamento e na modelagem para a aprendizagem de novas habilidades.
ABSTRACT
The dialectical behavior therapy (DBT) is a clinical protocol originally developed for the treatment of
suicidal and parasuicidal behaviors, and later extended to psychopathology as the borderline personality
* [email protected]
** [email protected]
45
Terapia comportamental dialética: um protocolo comportamental ou cognitivo?
disorder. Treatment involves learning prerequisites behaviors, divided in stages (1) “attaining basic capaci-
ties” (2) “reducing postttraumatic stress” and (3) “increasing self-respect and achieving individual goals”.
This article examines whether and how DBT meet the philosophical and applied criteria for inclusion in
therapies based on behavior analysis. We revised philosophical conception basis as well as the assessment
and intervention strategies. It is argued that the philosophical foundation approaches behaviorism, due to
its behavior definition, conceptions of causes and selection. We also identified assessment and intervention
strategies, focusing on acceptance and change, based on functional analysis, reinforcement and shaping
for learning new skills.
As terapias comportamentais contemporâneas sur- Estes tratamentos procuram antes construir reper-
giram na década de 80 apresentando intervenções tórios mais amplos, flexíveis e efetivos, no lugar de
baseadas em evidência para transtornos psiquiátri- uma abordagem para problemas estritamente defi-
cos como abuso de substâncias, tabagismo, psicose, nidos, e assim eles enfatizam a relevância das ques-
depressão maior, transtornos alimentares, uma varie- tões examinadas para os clínicos, bem como para
dade de transtornos de ansiedade, transtorno bipolar, os clientes. A terceira onda reformula e sintetiza as
bem como para problemas não-psiquiátricos, como o gerações comportamentais e cognitivas prévias e as
medo de falar em público, o estresse no trabalho, a estendem para além de questões, assuntos, e domí-
dor crônica, problemas de casais e os problemas de nios previamente abordados pelas outras tradições,
inter-relacionamento (Hayes, Masuda, Bissett, Luo- na esperança de avançar os entendimentos e resul-
ma, & Guerrero, 2004). Jacobson (Martell, Addis, & tados (p. 658).
Jacobson, 2001) definiu as novas intervenções clínicas
como compondo uma terceira onda de terapias com- Em comum, essas terapias utilizam princípios ba-
portamentais, também referida como terceira onda de seados na ciência da Análise do Comportamento
terapias cognitivas e comportamentais (Hayes, 2004). para a avaliação funcional e a intervenção, priori-
Hayes (2004) descreve a terceira onda: zando o papel preponderante das contingências de
reforçamento na mudança clínica. Nesse sentido
“Baseada em uma abordagem empírica, foca- as terapias de terceira onda romperam com as in-
da em princípios, a terceira onda de terapia tervenções das terapias cognitivas tradicionais que
comportamental e cognitiva é particularmente enfatizavam a correção de pensamento como sen-
sensível ao contexto e função dos fenômenos do necessária para a mudança clínica (e.g., Beck,
psicológicos, e não somente a sua forma, e Rush, Shaw, & Emery, 1979; Beck, Freeman, A.,
assim tende a enfatizar as estratégias contex- & Associates, 1990; Ellis, 1962, 1973). Contudo,
tuais e experimentais de mudança em adição o novo movimento não rompeu com a necessidade
às estratégias mais diretas e didáticas.” de continuar dialogando com uma comunidade de
46
Paulo Roberto Abreu – Juliana Helena dos Santos Silvério Abreu
cientistas e aplicadores muito mais ampla do que pesquisa científica, a exemplo do behaviorismo
a comunidade de analistas de comportamento. Isso radical (Kohlenberg & Tsai, 1991), da dialética
porque, como o próprio adjetivo sugere, uma tercei- (Linehan, 1993a, b) e do funcionalismo contex-
ra onda vem com inovações, porém nunca desarti- tual (Hayes, Strosahl, & Wilson, 1999; Martell et
culada das contribuições culturais de uma primeira al., 2001). Essas filosofias, ainda que sejam di-
ou de uma segunda onda. ferentes em algumas características, trazem em
comum a concepção central de interação compor-
Um reflexo da influência das gerações anteriores de tamento-ambiente como foco da delimitação do
terapias foi à adoção de metodologias de pesquisa fenômeno psicológico.
de grupo, com controles estatísticos, como as tra-
dicionalmente adotadas nos ensaios clínicos rando- Dentre as terapias citadas como sendo de terceira
mizados (ECR). Os ECRs têm sido o padrão ouro onda, destaca-se a terapia comportamental dialética
na investigação da efetividade dos protocolos apli- (DBT). A DBT é um protocolo de atendimento
cados a problemas de comportamento específicos, e em clínica, criado pela psicóloga estadunidense
dada a sua complexidade, têm sido a via árdua de Marsha Linehan, e divulgada (mas não publicada)
acesso ao universo das terapias cognitivas e com- inicialmente em 1984 como estratégia orientada a
portamentais baseadas em evidências (Lars-Göran modificar comportamentos de suicídio e parassuíci-
Öst, 2008). No sistema de saúde privado dos Esta- dio (Dimeff & Koerner, 2007). Posteriormente a au-
dos Unidos (manage care) o interesse do mercado tora publicou dois livros apresentando um protocolo
pelas terapias baseadas em evidência e os finan- desta terapia aplicada a clientes diagnosticados com
ciamentos científicos se tornaram condicionais aos transtorno de personalidade borderline (TPB), já
bons resultados nos ECRs (Neno, 2005). que ao longo dos anos de estudo foi reconhecen-
do grande prevalência de comportamentos suici-
As terapias de terceira onda adotam termos técnicos das e parassuicidas nessa população. O primeiro
que se situam em um continuum entre os termos bá- livro, chamado Cognitive-behavioral treatment of
sicos (e.g., reforçamento) e os termos da “psicologia borderline personality disorder (Linehan, 1993a),
senso-comum” (e.g., mindfulness, aceitação, qualifi- descreve as diretrizes conceituais e aplicadas de
cação) Esses termos têm sido referidos na literatura atendimento, e o outro livro, intitulado Skills trai-
como middle-level terms (McEnterggart, Barnes-Hol- ning manual for treating borderline personality
mes, Hussey, & Barney-Holmes, 2015), e foram ado- disorder, prescreve o treinamento de habilidades
tados para fins de comunicação, pelo fato da clínica específicas a ser realizado com as clientes border-
psicológica ser um campo multidisciplinar de atuação. lines1 (Linehan, 1993b). Os títulos sugerem forte
compromisso com as terapias cognitivo-compor-
Outo ponto em comum entre as terapias de ter- tamentais, tradição científico-aplicada tida como
ceira onda é a adoção de bases filosóficas con- mainstream em psicoterapia quando da época de
textualistas, norteadoras das aplicações e da publicação do protocolo.
1
Em sintonia com os trabalhos sobre a DBT, ao longo de todo o artigo será adotado também o termo cliente no feminino devido a maior prevalência
de mulheres com o diagnóstico do TPB.
Sempre equilibrando técnicas de aceitação com téc- de habilidades fundamentais para o TPB, como as
nicas de mudança, o protocolo foi dividido em três de mindfulness (e.g., aprender a prestar a atenção,
estágios (Linehan, 1993a), com metas comporta- a descrever os eventos abertos encobertos), as de
mentais específicas, organizadas em forma de pré-re- tolerância ao estresse (e.g., habilidade que guarda
quisitos, em que a aprendizagem de uma meta é con- proximidade com a aceitação), as habilidades de re-
dição para que se consiga promover aprendizagens gulação das emoções (e.g., identificar a emoção e as
mais específicas dentro das metas subsequentes. variáveis que a mantém), as de eficácia interpessoal
(e.g., assertividade, resolução de problemas inter-
O estágio 1, chamado de “alcançando as habilidades pessoais) e ainda as de autocontrole (e.g., auto-ma-
básicas” é composto de metas terapêuticas, como nejo de contingências).
“reduzir comportamentos de suicídio ou parassui-
cídio”, “reduzir comportamentos que interferem na O estágio 2, intitulado de “redução do estresse pós-
terapia”, “reduzir comportamentos que interferem traumático”, foca na meta de descrever e aceitar as
na qualidade de vida” e a “promoção de habilida- interações aversivas “traumáticas” que comumente
des”. Por redução de comportamentos suicidas a clientes com TPB passaram em sua história de vida,
autora entende que toda a forma de ameaça, plano, a exemplo do abuso sexual. Nesse estágio a clien-
ideação ou tentativa de suicídio deve ganhar priori- te é levada a lembrar e aceitar eventos traumáticos
dade máxima no tratamento. Assim também deve e sintetizar as interpretações sobre abuso físico ou
ser priorizada a redução da frequência dos com- psicológico. Ainda, outros eventos “traumáticos” são
portamentos parassuicidas sem intenção de morte abordados, como a separação, as perdas de entes que-
(também chamados de comportamentos de auto-a- ridos, a mudança, os ataques “alcoólicos” dos cuida-
gressão não suicidas ou NSSI), como o cortar-se dores, e as ameaças traumáticas dos pares.
com lâminas, a ingestão de vidros, ou o queimar-se
com pontas de cigarros. A segunda meta dentro do Por fim o estágio 3, intitulado “resolvendo pro-
estágio 1, focada em reduzir os comportamentos blemas de vida e aumentando o respeito próprio”,
que interferem na terapia, aborda comportamentos utiliza a interação entre terapeuta e cliente como
como o isolar-se durante a sessão, a recusa em tra- ambiente em que o terapeuta reforça os compor-
balhar na terapia, o mentir, não falar, retrair-se emo- tamentos da cliente relacionados a capacidade de
cionalmente, ou discutir incessantemente as afirma- confiar em si mesmo, validar as próprias opiniões,
ções do terapeuta. A terceira meta tem o objetivo emoções e ações, independente do terapeuta. Nes-
de diminuir comportamentos que interferem com se estágio também são abordados alguns valores
a qualidade de vida, como o abuso de substâncias, particulares de vida da cliente, identificados nessa
as dificuldades financeiras extremas, o comporta- fase ou ao longo da terapia, como estudar, trabalhar,
mento sexual de risco, os comportamentos inade- constituir família, ser uma boa mãe, dentre outros.
quados relacionados à doença, a negligência com
cuidados de saúde mental, os relacionamentos abu- Em conjunto, os três estágios encerram uma pro-
sivos, dentre outros. E como última meta estágio 1, posta de tratamento ampla, desde a sua concepção
a promoção de habilidades envolve a aprendizagem de etiologia para o TPB, até designação do papel de
48
Paulo Roberto Abreu – Juliana Helena dos Santos Silvério Abreu
cada profissional de saúde envolvido na aplicação do cepções, eram melhores do que outras (Hayes, et
protocolo. A DBT vem sendo apresentada junto a di- al., 1999). Assim o papel da filosofia na base teórica
ferentes audiências científico-profissionais. São tera- das novas terapias comportamentais tem sido não
peutas cognitivo-comportamentais, terapeutas com- de coadjuvante, mas de protagonista para a organi-
portamentais de terceira onda e médicos de orientação zação das concepções de pesquisa e de aplicação.
biológica. Muitas audiências refletem igualmente as Da mesma forma a DBT foi organizada, baseando-
muitas influências de sua autora. Segunda Linehan se em postulados adaptados da filosofia dialética
e Dexter-Mazza (2008) embora a DBT tenha bases (Linehan, 1993a; Linehan & Dexter-Mazza, 2008).
behavioristas consistentes, os procedimentos e estra-
tégias coincidem com as empregadas em terapêuticas Sobre a definição de comportamento
alternativas, como as terapias centradas no cliente, A taxonomia de Linehan (1993a) para o comporta-
psicodinâmica, estratégica e cognitiva. Depreende-se mento é semelhante à de autores cognitivo-compor-
daí, que dado essa influência, a autora fosse empre- tamentais, dividindo-o didaticamente em sistemas,
gar termos não behavioristas em muitas nomenclatu- como o comportamento motor (e.g., movimentos),
ras dentro do protocolo, como os middle-level terms o comportamento cognitivo-verbal (e.g., pensamen-
(McEnterggart et al., 2015). to, solução de problemas) e o comportamento fisio-
lógico (e.g., atividades do sistema nervoso central).
Mas dadas as múltiplas influências, seria possível Contudo a autora enfatiza que, ao contrário da con-
realmente concluir que a DBT é uma terapia ba- cepção cognitiva clássica (e.g., Beck, et. al, 1990;
seada na análise do comportamento? Sua filosofia Beck et al., 1979; Ellis, 1962, 1973), nenhum ní-
subjacente seria compatível com o behaviorismo vel de comportamento é superior ao outro. A DBT
radical de B. F. Skinner? Com que trabalha o tera- não considera, por exemplo, que uma desregulação
peuta DBT, cognição ou comportamento? Os mé- emocional no TPB seja invariavelmente causada
todos de avaliação e intervenção são compatíveis pelos pensamentos. Ressalta a autora que “isso não
com as abordagens funcionalmente-orientadas quer dizer que, em certas condições, as atividades
das terapias comportamentais? O presente artigo cognitivas não influenciem os comportamentos mo-
discute e tenta responder essas questões. tores ou fisiológicos, bem como a ativação de com-
portamentos emocionais” (Linehan, 1993a, p. 38)”.
ASPECTOS FILOSÓFICOS
Cumpre pontuar que ao afirmar a equidade entre os
No empreendimento científico das terapias de ter- sistemas comportamentais, Linehan (1993a) ressalta
ceira onda, indiferentemente do campo da investi- que mais importante do que assumir a causalidade
gação, normalmente foi necessário uma delimitação de um sistema sobre o outro, é entender sob quais
inicial através da formulação ou adoção de postula- condições uma determinada relação comportamen-
dos ou temas de interesse. E ainda, para acessar um to-comportamento se sustenta (e.g., pensamento-
sistema teórico, houve que existir algumas regras comportamento aberto), ou sob quais condições essa
de evidência ou critérios de verdade que permitiram relação indica o sentido da influência causal, de um
dizer que uma dada concepção, ou conjunto de con- sobre o outro, na etiologia do TPB (Linehan & Dex-
ter-Mazza, 2008). Para a DBT, dividir o comporta- tamentais seriam caracterizados pela interdepen-
mento em sistemas é algo arbitrário, sendo portanto, dência recíproca entre comportamento e ambiente
apenas recortes de análise feitos por conveniência do (Linehan,1993a). Essa proposta etiológica para o
observador (Linehan, 1993a). Linehan (1993a) afir- TPB, conforme especifica Linehan (1993a), rom-
ma que o funcionamento humano é contínuo, e que peu com o modelo causal de diátese ao estresse, tido
qualquer resposta envolve o sistema humano como como o mais ubíquo em psiquiatria por afirmar que
um todo, pois mesmo subsistemas compartilham cir- uma predisposição orgânica/desenvolvimental e o
cuitos neurais, ou vias neurais interconectadas. estresse produzido no ambiente se somariam para
produzir o transtorno.
Ao seu tempo Skinner também definiu o compor-
tamento como objeto de estudo legítimo da psi- A concepção de Linehan (1993a) para explicar o TPB
cologia, apresentando um conceito de comporta- pode, em grande medida, ter semelhanças com o mo-
mento, em que respostas motoras, cognitivas ou delo causal da seleção pelas consequências proposto
fisiológicos, teriam suas funções identificadas nas por Skinner (1981). O modelo skinneriano parte do
relações estabelecidas com o ambiente (Skinner, pressuposto de que todo comportamento teria suas
1953/1965). Interessa para a análise do compor- causas localizadas em três níveis de análise; sendo
tamento skinneriana estudar o comportamento de primeiro o nível filogenético, relacionado às heranças
organismos intactos, no sentido de que variáveis genéticas da espécie; segundo o nível o ontogenético,
biológicas são constitutivas, mas não definidoras do relacionado às aprendizagens individuais que ocor-
fenômeno comportamental (Tourinho, Texeira, & reriam ao longo da vida do organismo; e terceiro o
Maciel, 2000). É possível concluir dessas análises nível cultural, constituído pelas contingências sociais
pela existência de uma aproximação entre as con- especiais responsáveis pela instalação e manutenção
cepções relacionais de comportamento de Linehan de práticas coletivas. Dentro dessa concepção, todo
(1993a) e de Skinner (1953/1965; 1974/1976). comportamento humano ocorre porque, por exem-
plo, um organismo possui uma dada estrutura biolo-
Sobre as causas do comportamento gicamente determinada, teve aprendizagens únicas, e
A DBT apresenta uma concepção causal particular ainda porque recebe influências sociais para aprendi-
de comportamento no entendimento do TPB. Ela zagens específicas de sua cultura. Linehan (1993a),
define o TPB, pautada em parte nos critérios topo- em seu modelo dialético, aborda os três níveis des-
gráficos trazidos inicialmente no Manual Diagnós- critos por Skinner (1981).
tico e Estatístico dos Transtornos Mentais, 3º edição
revisada, e em parte nas observações empíricas de Com relação ao nível filogenético, Linehan (1993a)
sua autora, embasadas por interpretações de causa- concebe o TPB como partindo de uma desregulação
lidade biossociais, em que através das interações, emocional, que é, por sua vez, decorrente de uma
organismo e ambiente social se adaptam e influen- vulnerabilidade emocional biologicamente herdada.
ciam um ao outro (Linehan & Dexter-Mazza, 2008). A vulnerabilidade emocional consiste em uma sen-
A autora chamou o seu modelo de transacional ou sibilidade elevada aos estímulos emocionais, intensi-
dialético, por entender que os fenômenos compor- dade emocional e um lento retorno ao nível emocio-
50
Paulo Roberto Abreu – Juliana Helena dos Santos Silvério Abreu
nal basal. No adulto, por exemplo, o fato do terapeuta as punições constantes, ou evocar alguma atenção
sair da cidade no fim de semana pode eliciar uma dos cuidadores (Linehan & Dexter-Mazza, 2008).
forte resposta emocional na cliente borderline, em-
bora não aconteça tal resposta em outros clientes. Se- No nível cultural, Linehan (1993a) cita o sexismo
gundo a autora, quando a cliente reage rapidamente como fator que acentua muito as invalidações a que
a um estímulo e tem um baixo limiar para uma rea- frequentemente as mulheres com TPB estão social-
ção emocional, pode-se dizer que ela tem uma “alta mente expostas. O caso mais expressivo é a forma
sensibilidade”. Essa sensibilidade emocional envolve com que pode ocorrer o abuso sexual na infância
variáveis como a suscetibilidade ao estímulo reforça- - experiência comum entre mulheres com TPB
dor descrito por Skinner (1974/1976). (Linehan & Dexter-Mazza, 2008). Normalmente os
abusadores são indivíduos adultos, parentes da víti-
No nível ontogenético, assim como em Skinner ma. O abusador quase sempre diz para a vítima que
(1981), as contingências de reforçamento são o foco a relação sexual é normal, muitas vezes impondo
da análise causal. A relação entre comportamento ameaças para que a vítima não revele o abuso para
e o meio é evidenciada, sobretudo quando Linehan os outros familiares. Mesmo as famílias, quando de
analisa funcionalmente como ocorre à aprendiza- alguma forma têm conhecimento do abuso, impe-
gem de comportamentos borderlines por meio da dem que a abusada conte para o restante dos fami-
invalidação de pais ou cuidadores. Um ambiente liares, e comumente a culpam pelo ocorrido, ou não
invalidante, conforme descreve a autora (Linehan acreditam no relato. Um outro problema decorren-
1993a, Linehan & Dexter-Mazza, 2008), é aquele te do sexismo são as exigências que incidem sobre
no qual a expressão de experiências privadas é pu- as mulheres em algumas culturas. Alguns compor-
nida, quando a resposta é invalidada, ridicularizada, tamentos tidos como masculinos são punidos ou
ignorada ou banalizada. É comum a família invali- ignorados nas mulheres, como as habilidades em
dante afirmar que os comportamentos extremados matemática, mecânica, pensamento lógico, apenas
da familiar borderline são consequência de excessi- para citar alguns. O problema se intensifica quan-
va dependência feminina, falhas de personalidade, do são associados comportamentos anti-femininos,
caráter, ou ainda, expressões de uma doença. Con- como pouco interesse em parecer bonita ou desen-
forme pontua a autora “ao punir a expressão das volver habilidades domésticas. Sobretudo quando a
emoções negativas e reforçar erraticamente a co- mulher não apresenta outras características femini-
municação emocional somente depois de exageros nas valorizadas, como empatia, leveza ou afetivida-
da criança, a família modela um estilo de expres- de. Para a garota que não atinge o ideal cultural de
são emocional que oscila entre a inibição extrema mulher as punições são muito comuns, contribuindo
e a desinibição extrema” (Linehan, 1993b, p. 3). O para mais experiências de invalidação.
produto das invalidações é a seleção de padrões de
respostas problema da cliente (e.g., cortes na pele, Notadamente, assim como prescreve Skinner
agressividade dirigida ao outro, tentativas de suicí- (1972a), embora as contribuições do primeiro e ter-
dio), reforçadas intermitentemente, pois só dessa ceiro nível entrem na equação da causalidade da
maneira esses indivíduos conseguiriam ou atenuar doença mental, Linehan (1993a, Linehan & Dexter
-Mazza, 2008), tem focado sua análise e intervenção et al., 1990; Beck et al., 1979; Ellis, 1962, 1973), e
no segundo nível. Isso fica evidente pelos procedi- mesmo da psiquiatria, visto que muitos artigos da
mentos do protocolo baseados na análise funcional autora foram publicados em periódicos desta ciên-
do comportamento, doravante descritos. cia (e.g., Linehan,, Armstrong, Suarez, Allmon, &
Heard, 1991; Linehan, Heard, & Armstrong, , 1993;
Sobre o valor de sobrevivência do comportamento e Linehan, Tutek, Heard, & Armstrong, 1994; Shea-
a sua adaptação ao ambiente rin, & Linehan, 1994; Strosahl, Chiles, & Linehan,
Alguns termos que a autora utiliza para designar os 1992). O mesmo ocorre com o uso do termo com-
comportamentos problema, característicos dos cri- portamento “desadaptativo”. Nota-se que é possí-
térios diagnósticos do TPB, podem causar certo es- vel encontrar uma compreensão behaviorista desse
tranhamento em audiências behavioristas. Linehan termo em alguns trechos do livro. Assim Linehan
(1993a) adota termos como comportamento disfun- (1993a), por exemplo, ao descrever a importância
cional e comportamento desadaptativo ao longo de das estratégias de validação, afirma que:
todo o protocolo da DBT.
“O terapeuta considera os estímulos do ambiente
Dentro do modelo de seleção por consequências de atual que dão suporte ao comportamento da pacien-
Skinner (1981) todo comportamento que foi sele- te. Embora possa não haver informações disponí-
cionado guarda função com o ambiente onde ele veis sobre todas as causas relevantes, os sentimen-
ocorreu, sendo por isso adaptativo, por mais extre- tos, pensamentos e ações do paciente fazem perfeito
mada que possa ser a sua topografia para o contexto sentido no contexto da experiência atual da pessoa
social (Skinner, 1972a). Então teria de fato Linehan e de sua vida até o momento. O comportamento é
(1993a) rompido com uma concepção selecionista adaptativo no contexto em que ocorre, e o terapeu-
de comportamento? ta deve encontrar a sabedoria dessa adaptação. Ele
não está cego pela natureza disfuncional da resposta
As análises funcionais de comportamentos bor- da paciente, mas pelo contrário, presta atenção nos
derlines que a autora descreve parecem desmentir aspectos das respostas que possam ser razoáveis ao
qualquer acusação de uso desinformado dos termos. contexto.” (p. 224, grifos acrescentados)
Para a autora, por exemplo, um comportamento ex- No sentido exposto, observa-se uma concepção se-
tremo de se cortar, embora possa causar dor e ofere- lecionista e contextualista para o termo “adaptati-
cer perigo de vida, tem muitas vezes função de pro- vo”, o que novamente, demonstra o entendimento
duzir alívio dos sentimentos de disforia, ou mesmo analítico-comportamental da autora.
conseguir ajuda, sendo esta uma função reforçadora
(Linehan, 1993a). E dada à compreensão comporta- Na forma como foram empregados na DBT, os ter-
mental-orientada trazida nas análises funcionais ao mos “disfuncional” e “desadaptativo” são seme-
longo do protocolo, acredita-se que “disfuncional”, lhantes a outros middle-level terms bastante usados
nos contextos em que foi usado, seja um exemplo na literatura, como comportamento “problema” ou
de middle-level term. Ele estaria em sintonia com os comportamento “alvo” (Ullman & Krasner, 1975).
termos clássicos das terapias cognitivas (e.g., Beck, De fato, historicamente a terapia comportamental
52
Paulo Roberto Abreu – Juliana Helena dos Santos Silvério Abreu
mesmo chegou a empregar taxonomias atreladas às mento. O raciocínio dialético se fundamenta na ne-
psicopatologias, como no comportamento “depres- cessidade do terapeuta em aceitar as clientes como
sivo”, “ansioso” e “psicótico” (Martell, et al., 2001; são, mas em um contexto de ensiná-las a mudar
Coêlho & Tourinho, 2008; Skinner, 1972b). Os ad- (Linehan, 1993a). Segundo a autora, uma tecnolo-
jetivos adotados para designar esses tipos de com- gia aceitação é tão importante quanto à de mudança.
portamento, ainda que possam sugerir instâncias Nesse sentido, para além da mudança, a aceitação
causais (e.g., a depressão, a ansiedade, a psicose), de sentimentos, comportamentos e pensamentos,
têm função de middle-level terms por facilitar a co- tornou-se técnica fundamental no tratamento do
municação entre diferentes audiências profissionais. TPB (Linehan, 1993a).
E essa postura não seria destoante do que prescreve
Skinner. Segundo o autor, os psicólogos analistas do O foco recai na relação terapêutica como ambiente
comportamento podem usar os termos do vernáculo, privilegiado em que o terapeuta reforça os comporta-
mas devem estar dispostos a dar explicações compor- mentos da cliente, na tentativa de criar um ambiente
tamentais científicas sempre que for conveniente fazê terapêutico contrário ao histórico de punições paren-
-lo (Skinner 1990). Linehan (1993a) pareceu fazê-lo tais a que normalmente essas clientes estiveram ex-
estrategicamente em seu protocolo. postas. Para isso o terapeuta ensina a cliente a rotular
e a descrever sentimentos, pensamentos e compor-
ESTRATÉGIAS DE AVALIAÇÃO E INTERVENÇÃO tamentos, sempre tendo o cuidado de proporcionar
oportunidades para a ocorrência dessas verbalizações.
A DBT tem como binômio de trabalho a utilização Na relação terapêutica, o terapeuta reforça a descrição
de procedimentos de aceitação e de mudança. As de sentimentos, bem com modela as suas expressões.
estratégias de aceitação consistem em amplificar O reforçamento acontece quando, por exemplo, o te-
(e.g., descrever) e reforçar as percepções da cliente rapeuta contingentemente comunica que as respostas
borderline. Linehan (1993a) as divide didaticamente da cliente fazem sentido e são compreensíveis dentro
em “emocional”, “comportamental” e “cognitiva”. do contexto em que ocorrem. Outra técnica, propícia
As estratégias de mudança, ao seu turno, valem-se à modelagem, é a “encontrar o grão da verdade” no
da aplicação da tecnologia comportamental para discurso da cliente (Linehan, 1993a). Ela permite que
mudança de comportamento. Elas são subdivididas o terapeuta esteja sensível ao atual nível operante, pois
“exposição”, “treinamento de habilidades”, “mo- embora a compreensão da realidade da cliente possa
dificação cognitiva” e “manejo de contingências”. não ser completa, ela também não será incompleta.
Determinadas estratégias possibilitam ao cliente
identificar e modificar os problemas de comporta- Devido ao foco nas contingências dispostas na re-
mento ocorridos em situações extra consultório, ou lação terapêutica como ambiente especial para a
na relação terapêutica com o psicólogo. modelagem e/ou reforçamento de comportamentos
relacionados à validação, a DBT apresenta forte
Estratégias de aceitação aproximação com outras terapias notadamente ana-
O termo dialética na DBT, em um outro sentido, lítico-comportamentais, como a psicoterapia analí-
está correlacionado à forma de condução do trata- tica funcional (FAP; Kohlenberg & Tsai, 1991).
As análises de cadeia são feitas ao longo de todos os E como possíveis estratégias aplicadas a esses
estágios da DBT para avaliação constante e interven- problemas, são sugeridas soluções como (1) a ex-
54
Paulo Roberto Abreu – Juliana Helena dos Santos Silvério Abreu
posição à emoção negativa, (2) o treinamento de e a (3) generalização de habilidades, com prescrição
habilidades, (3) os procedimentos de modificação de tarefas de casa e discussões de semelhanças e dife-
cognitiva e ainda (4) os procedimentos de manejo renças entre situações. As estratégias para generaliza-
de contingências. ção, em especial, desempenham um papel fundamen-
tal dentro do protocolo (Koerner & Dimeff, 2007).
Assim, por exemplo, uma cliente em que a análise Para isso o relacionamento com diferentes terapeutas
de cadeia tenha identificado inassertividade devido à é utilizado de forma estratégica. Assim quando a clien-
ansiedade, poderia se beneficiar dos procedimentos te tem uma discussão com o treinador de habilidades,
de exposição. Na DBT os procedimentos de exposi- por exemplo, o terapeuta principal, ao telefone, pode
ção ocorrem também com outros sentimentos, como incentivar a cliente a tentar alguma das habilidades
a culpa, o medo ou a raiva. Além da exposição com aprendidas em grupo. O telefone é utilizado também
o uso das técnicas comportamentais, a DBT explora muitas vezes para reparar os danos das discussões na
exposições aos sentimentos eliciados nas interações sessão ou mesmo para que o terapeuta converse sobre
entre terapeuta e cliente, por entender que as contin- o uso das habilidades com algum familiar (Linehan,
gências da relação terapêutica oferecem reforçadores 1993b).
e punidores naturais únicos (Linehan, 1993a).
Outra solução para a inibição é o procedimento de mo-
Caso seja identificado déficit de repertório, a cliente dificação cognitiva, utilizado quando um pensamento
então seria incentivada a tentar alguma das habilida- concorre com o comportamento alternativo. A forma
des treinadas. Habilidades de mindfulness, por exem- que a DBT caracteriza o pensamento é diferente da
plo, podem ser úteis em situações em que a cliente forma conduzida pelas tradições cognitivas clássicas
não consegue atentar para os acontecimentos, como (e.g., Beck, et. al, 1990; Beck et al., 1979; Ellis, 1962,
nas discussões entre pares, ou com o terapeuta. Nes- 1973). Na DBT o entendimento do papel da cognição
sas circunstâncias é muito comum a cliente borderline é contextual, pois não ocorreria pensamento sem a sua
não conseguir se envolver na atividade, apresentan- inserção em uma análise de cadeia (Linehan, 1993a).
do comportamentos de dissociação ou de ruminação A modificação cognitiva da DBT não é estrutura-
(Linehan, 1993b). No treinamento do mindfulness a da em torno dos pensamentos distorcidos (Linehan,
cliente aprende a observar, descrever e participar dos 1993a). Na DBT é enfatizado que o exagero dos fatos
acontecimentos (Linehan, 1993b). Outras habilidades pela cliente borderline costuma ser uma tentativa de
fundamentais para o TPB são as habilidades relaciona- produzir validação. A cliente que é consistentemente
das à eficácia interpessoal. Aqui entram as habilidades punida ao demonstrar sua percepção dos fatos acaba,
de assertividade, resolução de problemas, dentre ou- em algum momento, apresentando uma resposta forte,
tras. O treinamento de habilidades é parte integrante modulada por forte emoção, onde é reforçada intermi-
do tratamento na DBT, sendo em geral conduzido em tentemente por uma audiência (Linehan, 1993a).
grupo por outro terapeuta. Para o treinamento são utili-
zados três tipos de procedimentos: (1) aquisição da ha- Linehan (1993a) classificou dois tipos de procedi-
bilidade via instrução e modelagem; (2) fortalecimento mento de modificação cognitiva na DBT, sendo elas
de habilidades, que ocorre via ensaio comportamental; o esclarecimento de contingências e a reestrutura-
56
Paulo Roberto Abreu – Juliana Helena dos Santos Silvério Abreu
parasuicidal borderline patients. Archives of General Skinner, B. F. (1976). About behaviorism. New York: Vintage
Psychiatry, 50, 971-974. Books. (Original work published 1974)
Linehan, M. M., Tutek, D. A., Heard, H. L., & Armstrong, H. Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New
E. (1994). Interpersonal outcome of cognitive behav- York/London: Free Press/Collier Macmillan. (Original work
ioral treatment for chronically suicidal borderline pa- published 1953)
tients. American Journal of Psychiatry, 151, Skinner, B. F. (1972a). Psychology in the understanding of
1771-1776. mental disease. In B. F. Skinner (Ed), Cumulative re-
Martell, C. R.; Addis, M. E., & Jacobson, N. S. (2001). Depres- cord (pp. 249 –256). East Norwalk, CT: Appleton-Cen-
sion in context: strategies for guided action. tury Crofts.
New York: W. W. Norton. Skinner, B. F. (1972b). What is psychotic behavior? In B. F. Skin-
McEnterggart, C., Barnes-Holmes, Y., Hussey, I., & Barney-Hol- ner (Ed), Cumulative record (pp. 257 –275). East Nor-
mes, D. (2015). The ties between a basic science of lan- walk, CT: Appleton-Century Crofts.
guage and cognition and clinical applications. Current Skinner, B.F. (1981). Selection by consequences. Science,
Opinion in Psychology, 2, 56-59. 213, 501-504.
Neno, S. (2005). Tratamento padronizado: Condi- Skinner, B. F. (1990). Can psychology be a science of mind?
cionantes históricos, status contemporâ- American Psychologist, 45, 1206-1210.
neo e (in)compatibilidade com a terapia
Strosahl, K., Chiles, J. A., & Linehan, M. M. (1992). Prediction
analítico-comportamental. Tese de Doutora-
do. Belém: Programa de Pós-Graduação em Teoria of suicide intent in hospitalized parasuicides: Reasons for
e Pesquisa do Comportamento, Universidade Feder- living, hopelessness, and depression. Comprehensive
al do Pará. Psychiatry, 33, 366-73.
Öst, L. (2008). Efficacy of the third wave of behavioral therapies: Tourinho, E. Z., Teixeira, E. R., & Maciel, J. M. (2000). Fronteiras
A systematic review and meta-analysis. Behaviour Re- entre análise do comportamento e fisiologia: Skinner e a
search and Therapy, 46, 296-321. temática dos eventos privados. Psicologia: Reflexão
therapy for borderline personality disorder: Theoretical and Ullman, L., & Krasner, L. (1975). A psychological ap-
empirical foundations. Acta Psychiatrica Scandi- proach to abnormal behavior. Englewood Cliffs:
navica, 89 (Supplement), 61-68. Prentice-Hall.
58