Eventos Traumáticos Na Infância
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Resumo
O presente estudo objetivou verificar se o traço de impulsividade e o histórico de
eventos traumáticos na infância – abuso físico, emocional e sexual – são preditores dos
sintomas típicos do transtorno da personalidade borderline. A pesquisa foi realizada
por delineamento retrospectivo, a partir de levantamento online, com uma amostra
não clínica de 748 participantes, 74,4% do sexo feminino, com idades entre 18 e 63
anos (média = 25,16; DP = 6,95). Os participantes responderam a um questionário
para levantamento do perfil sociodemográfico e econômico; a um questionário para
avaliação de sintomas do transtorno da personalidade borderline; ao Questionário
sobre Traumas na Infância (QUESI) e à Escala de Impulsividade de Barratt (BIS-11).
Análises de regressão linear hierárquica apontaram para forte influência do traço de
impulsividade e do histórico de abuso emocional na infância sobre os sintomas do
transtorno. Tais resultados estão de acordo com os modelos teóricos mais atuais acerca
dos fatores predisponentes ao transtorno da personalidade borderline, que apontam
para a influência independente de vulnerabilidades individuais (como impulsividade) e
traumas na infância no desenvolvimento do transtorno na idade adulta.
Palavras-chave: Transtorno da personalidade borderline; Impulsividade; Maus-tratos infantis
Abstract
This study aims to investigate if impulsivity trait and traumatic events in childhood
1
Graduando do curso de Psicologia da - physical, emotional, and sexual abuse – are predictors of the typical symptoms of
Faculdade de Ciências Médicas de Minas Borderline Personality Disorder. The research was conducted by retrospective design,
Gerais.
2
Professora do curso de Psicologia da from an online survey, with a non-clinical sample of 748 participants, being 74.4% female,
Faculdade de Ciências Médicas de Minas aged between 18 and 63 years old (mean=25.16, SD=6.95). The participants answered
Gerais.
a sociodemographic and economic questionnaire; a questionnaire for Borderline
3
Professora do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal de Minas Gerais. personality disorder symptoms evaluation; the Childhood Trauma Questionnaire (CTQ),
and the Barratt Impulsivity Scale (BIS-11). Hierarchical Linear Regression analysis showed
Correspondência:
Av. Presidente Antônio Carlos, 6627, a strong influence from both, the impulsivity trait and emotional abuse during childhood,
Pampulha -Belo Horizonte, MG on the Borderline symptoms. These results are consistent with the newest theoretical
CEP: CEP 31270-901
models about predisposing factors to the Borderline Personality Disorder, which point
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema out to the independent influence of individual vulnerabilities (such as impulsivity) and
de Gestão de Publicações) da RBTC em 17 de childhood trauma history in the development of the disorder in adulthood.
abril de 2016. cod. 424.
Artigo aceito em 16 de novembro de 2016. Keywords: Borderline personality disorder; Impulsivity; Child abuse
DOI: 10.5935/1808-5687.20150011
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que ter vivido em ambientes invalidantes na infância tem três aspectos distintos: um componente motor, definido como
papel fundamental para a manifestação e o desenvolvimento a tendência a “agir sem pensar”; um componente cognitivo,
dos sintomas do TPB. Tais ambientes são compostos por definido como a tendência a tomar decisões rapidamente e com
pessoas que tendem a subestimar as experiências dolorosas pouca reflexão; e um componente de falta de planejamento,
da criança, percebendo-as como triviais, a atribuir dificuldades definido como reduzida orientação para o futuro. A impulsividade
a problemas de caráter (como preguiça), a frequentemente é considerada um dos sintomas principais do TPB e pode
punir e criticar. Tais famílias raramente orientam, apoiam ou ser observada por comportamentos que levem a resultados
elogiam, o que torna esses ambientes altamente aversivos negativos, como automutilação, promiscuidade, abuso de
para a criança e contribui para suportar teoricamente o papel substâncias (Linehan, 2010). Estudos com uso de escalas
do abuso emocional para a etiologia do transtorno, já que este conhecidas de impulsividade, como a Barratt Impulsivity
estaria mais fortemente associado à invalidação do que outras Scale (BIS-11), têm identificado pacientes com TPB como
formas de maus-tratos. significativamente mais impulsivos do que a população normal
Certamente, a vivência de eventos traumáticos na e outros pacientes psiquiátricos, por exemplo, com transtorno
infância não é capaz de explicar sozinha toda a complexa depressivo maior e transtorno bipolar tipo II (Henry et al., 2001;
sintomatologia do TPB. Consistentemente com a perspectiva Paris et al., 2004; Rentrop et al., 2008; Wilson et al., 2007).
desenvolvimental, os traumas na infância ocasionariam Além disso, para além dos sintomas, a impulsividade tem se
o aparecimento de sintomas de personalidade borderline apresentado como um traço capaz de predizer os padrões
mediante a existência de vulnerabilidades individuais comportamentais de pacientes com TPB, e mesmo os demais
subjacentes (Crowell et al., 2009; Soloff, White, & Diwadkar, sintomas do transtorno (Koenigsberg, Harvey, Mitropoulou, &
2014). Os traços de personalidade tidos como mais importantes New, 2001; Links, Heslegrave, & van Reekum, 1999; Tragesser,
para a compreensão da sintomatologia do TPB são a Solhan, & Schwartz-Mette, 2007).
desregulação emocional e a impulsividade (ou desinibição) Tem sido postulado que a desregulação emocional
(Barker et al., 2015; Bornovalova et al., 2006; Peters, Upton, & é o sintoma nuclear subjacente às demais características
Baer, 2013; Pukrop, 2002; Soloff et al., 2002). do TPB. A partir dessa perspectiva, os comportamentos
O conceito de regulação emocional está associado à impulsivos (p. ex., abuso de drogas e automutilação) são
capacidade de processar, amplificar, manter e atenuar emoções geralmente compreendidos como tentativas de lidar com
de acordo com estímulos internos e externos (Barros, 2013). estados emocionais negativos (Fossati, Gratz, Maffei, & Borroni,
Estudos de neuroimagem com pacientes borderline indicam 2014; Sebastian, Jacob, Lieb, & Tüscher, 2013). No entanto, há
discrepâncias no volume de atividade neuronal em áreas hipóteses que enfatizam a centralidade da impulsividade no
específicas do cérebro relacionadas ao controle de emoções padrão borderline de personalidade, sugerindo que ela seja a
e impulsividade afetiva, como a área pré-frontal e o córtex característica que sustenta outros sintomas dessa perturbação
cingulado, a amígdala e o hipocampo (Barros, 2013; Buchheim, (Fossati et al., 2014; Links et al., 1999). Por sua vez, uma
Roth, Schiepek, Pogarell, & Karch, 2013; Guendelman, das perspectivas mais aceitas é a defendida por Crowell e
Garay, & Miño, 2014). A desregulação emocional seria, então, colaboradores (2009), que ressalta que a impulsividade e a
caracterizada por uma disfunção dessas estruturas, levando à desregulação emocional podem contribuir independentemente
excessiva sensibilidade a estímulos emocionais (em especial para o desenvolvimento do TPB, sugerindo que cada um dos
aos negativos), com fortes reações a estes e lento retorno ao traços poderia ser um caminho para o desenvolvimento do
estado de relaxamento (Donegan et al., 2003). De acordo com transtorno.
Linehan (2010), a grande maioria dos sintomas apresentados Diante do exposto e da escassez de estudos,
por pacientes borderline seria consequência da desregulação especialmente nacionais, relacionando traços/vulnerabilidades
emocional ou da tentativa de reduzir os excessos emocionais individuais e estressores ambientais para a compreensão dos
apresentados por tais pacientes. sintomas do TPB, o objetivo do trabalho foi investigar se sintomas
No que se refere à impulsividade, objeto deste característicos da personalidade borderline são preditos pelo
estudo, pode-se defini-la como um traço caracterizado por histórico de eventos traumáticos na infância e/ou pelo nível do
padrões cognitivos e comportamentais que se traduzem em traço de impulsividade em uma amostra de adultos residentes
consequências disfuncionais em curto, médio e longo prazos na região metropolitana de Belo Horizonte. Consistentemente
(Malloy-Diniz et al., 2010). A impulsividade ocorre quando com a literatura, hipotetiza-se que a impulsividade e o histórico
existem mudanças no curso da ação do indivíduo sem que tenha de eventos traumáticos na infância predizem sintomas do TPB;
havido juízo consciente prévio e se manifesta por uma tendência que o abuso emocional será o melhor preditor dos sintomas
a agir com menor nível de planejamento, comparativamente do transtorno entre os eventos traumáticos considerados; e a
a indivíduos com o mesmo nível intelectual (Moeller, Barratt, existência de uma interação entre impulsividade e histórico de
Dougherty, Schmitz, & Swann, 2001). Moeller e colaboradores eventos traumáticos, contribuindo com explicação adicional na
(2001) consideram a impulsividade como sendo composta por variância dos sintomas do transtorno.
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Com o objetivo de aumentar a confiabilidade da escala, foram Correlação entre as variáveis de interesse
excluídos os itens com menor correlação item-total, a saber,
A Tabela 1 apresenta a correlação entre os sintomas do
itens 8, 9 e 10. Após a exclusão, o coeficiente alpha aumentou
TPB, a impulsividade (avaliada pela BIS) e as três subescalas
para 0,65, índice considerado aceitável (Pasquali, 2009).
do questionário de traumas na infância (abuso emocional,
físico e sexual). Conforme predito, os sintomas do transtorno
Procedimentos estão associados positiva e significantemente com o traço de
personalidade (impulsividade) e com os três tipos de trauma
Os participantes da pesquisa foram submetidos aos
na infância, sendo que as maiores associações são com o
instrumentos no primeiro semestre de 2015, com a aprovação
abuso emocional.
do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Educacional
Lucas Machado (CAAE 41795014.0.0000.5134). A pesquisa
foi divulgada em redes sociais (em especial, páginas de Análise de Regressão Linear
Facebook, blogs e sites associados ao TPB), por e-mail, para
Considerando que todas as variáveis de interesse
as listas de contatos dos autores, com solicitação de resposta
são contínuas e apresentam distribuição normal, análise de
e divulgação do link para responder aos questionários.
regressão linear foi realizada a fim de verificar: a) se os traços
Os questionários ficaram disponíveis online pelo período
de personalidade (neste caso, a impulsividade) predizem
de 12 (doze) dias na plataforma SurveyMonkey (Walter,
significativamente sintomas do TPB; b) se os três tipos de
2013), e, após ter lido e aceitado as condições do TCLE, os
trauma na infância predizem significativamente os sintomas do
participantes demoraram em torno de 20 (vinte) minutos para
transtorno, além do que é predito pela impulsividade; c) qual
responder a todos os questionários. As análises estatísticas
dos três tipos de trauma é o melhor preditor para os sintomas
deste estudo foram desenvolvidas por meio do software IBM
do TPB; e d) se a interação entre impulsividade e traumas
SPSS, versão 22.
responde por variância adicional na predição dos sintomas do
TPB. Nesse sentido, foi realizada uma análise de regressão
RESULTADOS hierárquica com os sintomas do TPB incluídos como variável
dependente; a idade, como covariável no passo 1; os três tipos
Transformações das variáveis e identificação de de trauma na infância (físico, sexual e emocional), no passo
covariáveis 2; a impulsividade (traço de personalidade), no passo 3; e a
interação entre os traumas e a impulsividade, no passo 4.
Foram calculados os valores de assimetria e curtose
O modelo total foi significativo e explicou 45,9% da
para todas as variáveis incluídas no modelo, sendo que, com
variância dos sintomas do TPB [F(6,742) = 76, 133, p = 0,000].
exceção de abuso sexual e abuso físico, todas as demais
Na Tabela 2, pode ser observada a variância explicada por
encontraram-se dentro dos limites aceitáveis de normalidade
cada variável inserida no modelo e os demais parâmetros
(assimetria < 3; curtose < 10; Kline, 1998). Portanto, embora não
dos modelos. De acordo com o predito, impulsividade e
fosse necessária uma transformação em escores padronizados
traumas na infância são preditores significativos do número de
(média = 0; desvio-padrão = 1) de todas as variáveis para
sintomas do TPB, tendo contribuições únicas e significativas
realizar análises paramétricas, optou-se por fazê-lo, já que isso
na explicação dos sintomas do transtorno. Dos três tipos de
possibilitaria uma comparação nos mesmos termos de todas
trauma considerados, apenas o abuso emocional responde por
as variáveis incluídas no modelo.
uma parcela significativa da variância nos sintomas do TPB. No
Ainda, foram realizadas análises preliminares para
entanto, contrariamente ao que foi predito, a interação entre a
explorar a relação entre as variáveis demográficas (sexo,
impulsividade e o abuso emocional não contribuiu com uma
idade e escolaridade) e a variável dependente (sintomas de
parcela adicional e significativa da variância nos sintomas do
TPB). Idade e escolaridade apresentaram uma correlação
TPB, além dos efeitos principais de cada uma dessas variáveis.
negativa com os sintomas de TPB (r = -0,292, p = 0,000;
Como estratégia para melhor compreensão dos
r = -0,183, p = 0,000, respectivamente). Contudo, quando
dados, as variáveis impulsividade e abuso emocional foram
se controla a idade dos participantes, a associação entre
transformadas em variáveis categóricas, e níveis maiores do
escolaridade e sintomas do TPB desaparece. Teste t para
que um desvio-padrão acima da média foram categorizados
amostras independentes foi utilizado para verificar se
como 1 (alta), enquanto níveis menores do que um desvio-
haveria diferenças de sexo no número de sintomas do TPB.
padrão abaixo da média foram categorizados como 0 (baixa).
Os resultados não foram estatisticamente significativos (p
A Figura 1 apresenta um diagrama de caixas com a distribuição
= 0,194). Nesse sentido, apenas a idade foi incluída como
de sintomas de TPB para os grupos com alto e baixo nível de
covariável nas análises subsequentes.
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Tabela 1. Correlação entre sintomas do TPB, impulsividade e eventos traumáticos na infância (N = 748)
1 2 3 4 5
1. Sintomas do TPB -
2. Abuso emocional 0,340** -
3. Abuso sexual 0,116** 0,293** -
4. Abuso físico 0,181** 0,408** 0,343** -
5. Impulsividade 0,478** 0,164** 0,088* 0,179** -
TPB: transtorno da personalidade borderline; ** p < 0,01; * p < 0,05
Tabela 2. Análise de regressão hierárquica explorando o papel da impulsividade e dos tipos de eventos traumáticos na infância, além de suas inter-
ações, na expressão do número de sintomas do transtorno da personalidade borderline, controlando o efeito da idade (N = 748)
Preditores B R2 (R2 Ajust.) ΔR2 F
Passo 1 0,089 (0,087) 0,089** 72,591**
Idade -0,298**
Passo 2 0,234 (0,230) 0,145** 56,769**
Abuso emocional 0,329**
Abuso sexual 0,049
Abuso físico 0,072
Passo 3 0,379 (0,374) 0,145** 90,512**
Impulsividade 0,397**
Passo 4 0,381 (0,376) 0,002** 76,133**
Abuso emocional x Impulsividade -0,218
**p < 0,01
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na infância sobre os sintomas de TPB. Histórico de abuso físico individuais, além da impulsividade, como, por exemplo, o nível
e sexual, embora estes contribuam para aumento dos sintomas, de desregulação emocional próprio de cada indivíduo (Gratz et
não apresentou poder de predição além do que as outras al., 2011). Estudos futuros poderiam analisar essa possibilidade,
variáveis já predizem. Tais resultados estão de acordo com os incluindo medidas de desregulação emocional, o que não foi
modelos teóricos mais atuais acerca da origem do TPB, que avaliado no presente estudo.
apontam para vulnerabilidades individuais (como impulsividade) Este estudo encontrou associações interessantes e
em associação com maus-tratos na infância como os principais que ampliam os conhecimentos acerca do TPB em contexto
preditores dos sintomas na idade adulta (Gratz et al., 2011). brasileiro. Em consonância com modelos atuais de explicação
A impulsividade aparece como aspecto importante e para os transtornos da personalidade, que são dimensionais
definidor da personalidade borderline em diferentes estudos e (APA, 2014), optou-se por analisar indivíduos da população
se mostra frequentemente associada a déficits de regulação geral, pressupondo-se que esse grupo apresentaria, de
emocional, explicando comportamentos autolesivos ou acordo com esses modelos, as mesmas características de
parassuicidas, uso de drogas e tentativas de suicídio (Barker personalidade encontradas em indivíduos com TPB, embora
et al., 2015; Peters et al., 2013; Soloff et al., 2014). No que se em níveis mais leves (Trull, 2001). No entanto, tais resultados
refere aos maus-tratos na infância, o abuso emocional tem devem ser analisados considerando-se algumas limitações. A
sido apontado como o mais determinante para o surgimento primeira delas se refere ao uso apenas de amostra não clínica,
de sintomas do TPB, haja vista que o modelo cognitivo mais sem informações precisas acerca da existência ou não de
atual para explicação do transtorno, apresentado por Linehan diagnóstico psiquiátrico ou de transtorno da personalidade.
(2010), inclui como fator ambiental mais importante para o O uso de amostras clínicas poderia apontar para o perfil
desenvolvimento do transtorno ter crescido em ambientes mais adequado do TPB, e algumas das relações encontradas
invalidantes. O histórico de abuso sexual e físico, embora poderiam ser controladas pela influência de valores extremos.
presente em muitos casos de TPB e em outros transtornos Em segundo lugar, o estudo é transversal e faz uso
mentais e da personalidade (Bornovalova et al., 2006; de medidas correlacionais para concluir sobre eventos da
Oquendo et al., 2013), não é essencial para o diagnóstico, e infância que poderiam predizer resultados na idade adulta.
tais experiências traumáticas parecem muito mais relacionadas Sendo assim, não é possível concluir que os preditores
ao perfil comportamental e à gravidade dos sintomas do que estudados são realmente a causa dos sintomas, já que a
propriamente ao diagnóstico (Kuo et al., 2015; Gratz et al., direção da relação foi arbitrariamente definida. Além disso,
2011). Além disso, a ausência de efeito independente do abuso o uso de dados retrospectivos é suscetível aos efeitos da
sexual e físico sobre os sintomas de TPB pode dever-se ao fato memória dos participantes, que, por sua vez, pode ser afetada
de que dificilmente abuso sexual e/ou abuso físico ocorrem por experiências na idade adulta e pelo estado afetivo atual.
na ausência de abuso emocional, embora o contrário – abuso Por exemplo, pessoas com maior dificuldade para regular as
emocional sem abuso físico ou sexual – seja mais provável emoções tendem também a apresentar viés atencional negativo,
de ocorrer. Assim, é provável que o efeito do abuso emocional o que leva a ênfase nas experiências traumáticas e recuperação
tenha se sobreposto aos efeitos dos demais tipos de abuso da informação de maneira enviesada (Maughan & Rutter, 1997).
(Kuo et al., 2015). Estudos longitudinais poderiam auxiliar no levantamento mais
A hipótese de um efeito de interação entre impulsividade preciso de informações e inferência mais adequada acerca dos
e histórico de abuso emocional não foi confirmada, tendo cada eventos preditores de sintomas de TPB.
variável apresentado apenas efeito independente sobre os Outra limitação importante diz respeito ao uso apenas
sintomas de TPB. Tais resultados são inconsistentes com uma da impulsividade como medida de vulnerabilidade individual.
parte da literatura, que aponta para importante efeito moderador Sabe-se que a desregulação emocional apresenta poder preditivo
de vulnerabilidades individuais (como a impulsividade) sobre a independente e complementar para explicação dos sintomas,
relação entre maus-tratos na infância e sintomas psiquiátricos sendo importante moderador da relação entre maus-tratos na
(Zanarini & Frankenburg, 1997; Linehan, 2010). Entretanto, infância e os sintomas de TPB (Gratz et al., 2011). Estudos futuros
tais resultados estão de acordo com estudos mais recentes podem considerar, além da desregulação emocional, outros
acerca do desenvolvimento do TPB, que enfatizam a influência fatores de personalidade, com o objetivo de construir um modelo
independente de fatores individuais e ambientais na gênese dos mais consistente e com maior poder explicativo do fenômeno
transtornos da personalidade (Crowell, 2009; Gratz et al., 2011). aqui investigado. Adicionalmente, o uso apenas de medidas de
Outra possível explicação pode estar relacionada ao fato de autorrelato e de questionários online aumenta as chances de viés
que, em muitos dos estudos, o histórico de traumas na infância de resposta e de seleção de amostra. Embora estudos acerca da
é avaliado a partir de medidas gerais de abuso, não divididas estrutura fatorial das escalas utilizadas tenham apontado para
por tipo (p. ex., abuso sexual, físico e emocional) (Thibodeau et modelo similar aos de autorrelato presenciais (p. ex., a estrutura
al., 2015). Adicionalmente, o histórico de abuso emocional pode fatorial encontrada para o QUESI foi a mesma encontrada
ter seu efeito sobre os sintomas moderado por outros aspectos no estudo de Brodski e colaboradores (2010), realizado por
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medida via lápis e papel), estudos futuros poderiam superar Beauchaine, T. P., Klein, D. N., Crowell, S. E., Derbidge, C. M., & Gatzke-
essas limitações ao levantar dados em entrevistas, relatos de Kopp, L. M. (2009). Multifinality in the development of personality
disorders: A Biology × Sex× Environment model of antisocial and bor-
terceiros e outras medidas comportamentais. Além disso, o uso
derline traits. Development and Psychopathology, 21(3), 735–770.
de questionário online pode ter contribuído para o surgimento de
um viés de idade e escolaridade da amostra (alta escolaridade e Benetti, S. P., Pizetta, A., Schwartz, C. B., Hass, R. A., & Melo, V. L. (2010).
Problemas de saúde mental na adolescência: características fami-
faixa etária mais jovem). Tal perfil pode ter trazido vantagens, no liares, eventos traumáticos e violência. Psico-USF, 15(3), 321-332.
sentido de que é uma população mais acostumada com medidas
Bornovalova, M. A., Gratz, K. L., Delany-Brumsey, A., Paulson, A., & Lejuez,
computadorizadas e com maior capacidade para compreender os
C. W. (2006). Temperamental and environmental risk factors for
itens. No entanto, seria interessante investigar amostras de baixo borderline personality disorder among inner-city substance users in
nível socioeconômico e baixa escolaridade, a fim de constatar a residential treatment. Journal of Personality Disorders, 20(3), 218–231.
capacidade de generalização dos resultados aqui apresentados. Bornovalova, M. A., Huibregtse, B. M., Hicks, B. M., Keyes, M., McGue,
Apesar das limitações e, dado seu caráter preliminar, M., & Iacono, W. (2013). Tests of a direct effect of childhood abuse
é importante considerar que o presente estudo lança luz a on adult borderline personality disorder traits: A longitudinal discor-
uma série de relações existentes entre eventos traumáticos dant twin design. Journal of Abnormal Psychology, 122(1), 180-194.
na infância e sintomas de TPB, e entre estes últimos e Brodski, S. K., Zanon, C. & Hutz, C. S. (2010). Adaptação e validação do
vulnerabilidades individuais, de forma conjunta, em busca Questionário sobre Traumas na Infância (QUESI) para uma amostra
de um modelo explicativo mais completo, conforme vem não-clínica. Avaliação Psicológica, 9(3), 499-501.
sendo apontado na literatura internacional (Bornovalova et Buchheim, A., Roth, G., Schiepek, G., Pogarell, O., & Karch, S. (2013).
al., 2006; Crowell et al., 2009; Linehan, 1993). As descobertas Neurobiology of borderline personality disorder (BPD) and anti-
social personality disorder (APD). Swiss Archives of Neurology and
preliminares deste estudo podem auxiliar na construção de
Psychiatry, 164(4), 115-122.
modelos estruturais mais complexos a serem testados em
Chapman, A. L., Turner, B. J., & Dixon-Gordon, K. L. (2013). Transtorno de
estudos futuros. Além disso, os resultados já identificados
personalidade Borderline e trauma. In L. F. Carvalho, R. Primi (Orgs.),
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