Continuavam os dias de festa em Lisboa, e não era preciso ir à Internet, que ainda não havia, ver o menu das que estavam previstas para esse dia. Lisboa era bem mais “pequena” do que é hoje e todos sabíamos o que estava na ordem do dia. Sentada no passeio em frente da Rádio Renascença, ladeada por amigos, Quica assistia à “revolução”. Foi então que o Marinho se saiu com a tirada, que ela nunca mais esqueceu: «Já pensaste que se isto fosse pago não tinhas dinheiro pra cá estar?»
Vendo a coisa por este lado, o da sociedade do espectáculo, em que todos somos espectadores e por vezes também actores, vêm-me à memória, de entre os muitos espectáculos a que assisti, os poucos que aí ficaram indelevelmente gravados. Não posso esquecer as emoções daquela maravilhosa onda sonora que se propagava pelo ar e nos entrava nos ouvidos e nos cérebros, no Coliseu de Lisboa, da primeira vez que aí actuou Milton Nascimento; ou da reacção do público da festa do Avante, ainda no terreno do Monsanto onde depois foi construído o campus universitário, à inefável versão da «Geni», por Chico Buarque: muitos choravam comovidos, como, soube depois, o próprio Chico e Simone e os elementos do MPB4 choraram abraçados, nos bastidores, eles mesmos contagiados pelo público. Evoco ainda, também no Coliseu dos Recreios, a figura mítica de Léo Férré, todo de preto e com os cabelos brancos compridos de velha matrona, mas com uma força, de voz e de presença, implausível no septuagenário que já era, cantando «Les Anarchistes». Também fui dos felizardos que assistiram à actuação de Miles Davis (com o fabuloso Keith Jarrett ao piano) e de Ornette Coleman (com Charlie Haden no contrabaixo) no primeiro festival de jazz de Cascais, aquele em que Haden dedicou um dos temas aos movimentos de libertação de Angola e de Moçambique (sendo recambiado, ele e o resto da banda, para fora da fronteira no dia seguinte). No ambiente de proibição que vivíamos, atitudes destas desencadeavam o imediato saltar da rolha que nos oprimia, e, por momentos, perdíamos o medo, cometíamos a heresia de gritar palavras de ordem contra a guerra colonial, e saboreávamos uma brisa de liberdade, aquilo que nos fazia tanta falta no dia-a-dia. A mesma liberdade que senti, com o coração a bater mais depressa, os olhos húmidos e uma incapacidade de dizer palavra, ao ouvir Zeca Afonso cantar, no primeiro “canto livre”, pouco depois do 25 de Abril, «A Morte Saiu à Rua», essa homenagem ao escultor Dias Coelho e a todos os que foram assassinados pela PIDE. Já agora sempre vos digo que me bateu forte a forte e crua versão dos «Vampiros», de Zeca, do recente espectáculo «Liberdade», por Sérgio Godinho.
Mas nada disto se compara à saída do quartel, onde me obrigavam a passar três anos da minha jovem vida cumprindo o serviço militar, fardado de alferes, comandando um grupo de militares voluntários, todos armados mas sem a mínima intenção de usar as armas, montados num jipe. Fomos quase de seguida engolidos por um mar de gente que, sem amarras e esquecida do medo, celebrava o primeiro Primeiro de Maio em liberdade. O jipe parecia levitar, levado pela multidão, connosco e com mais umas dezenas de festejantes em cima, os quais conviviam alegre e destemidamente com a “autoridade” das nossas fardas, agora já não identificadas com a repressão; as pessoas aclamavam-nos como heróis, as mulheres de todas as idades beijavam-nos e punham cravos nos canos das nossas espingardas e eu sentia uma indizível alegria física, visceral, emocionada, única.
O medo parecia ter desaparecido do coração dos portugueses. Como acontecera durante esses dias, timidamente primeiro, mais afoitamente à medida que se percebia que aquilo tinha vindo para ficar.
Enfiado à força no quartel, a princípio não tive a certeza sobre se o golpe era pela liberdade ou pelo ainda maior arrocho que a face dura do regime gostaria de ver aplicar. Até porque da tropa só estávamos habituados a receber repressão. Então, na messe de oficiais do quartel, lado a lado com outros milicianos mas também com oficiais do quadro permanente, vários de patente superior, encostado a uma das paredes para lhes deixar ocupar os lugares sentados, assisti pela televisão à saída dos presos políticos, entre os quais vários amigos que comigo conspiraram (Luís e Xaxão Moita, Joaquim Osório, Fátima Fonseca Ribeiro, o grande Nuno Teotónio Pereira e outros); tive a certeza: era mesmo a liberdade! E, ainda com medo de expressar os sentimentos naquele ambiente, fiz das tripas coração para não se me verem as lágrimas de alegria.
A vida é um bolo maravilhoso do qual só temos direito a provar pequenas mas deliciosas fatias lá muito de vez em quando, nos intervalos das chatices. Mas comida uma, essa já cá canta: ninguém no-la pode tirar. E esta foi daquelas cujo sabor vai ser muito difícil de igualar, por mais anos que viva…