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2014/05/08

O insustentável peso do medo


Bem sei, o medo combate-se. Mas o combate é muito difícil quando, como anedoticamente ilustrado neste vídeo, o opositor tem a faca e o queijo na mão. Então só pensas em sobreviver, na esperança de que a situação seja transitória, e engoles todos os sapos possíveis: aceitas um ordenado de merda, trabalhas as horas e os dias que o patrão mandar, obedeces a ordens absurdas sem ripostar, aturas as maiores faltas de respeito. Em breve usarás métodos de que não te sabias capaz porque és obrigado a competir com os teus colegas de trabalho e porque eles também os usam, justificas-te perante o grilo da tua consciência. Além disso, apesar de o emprego ser merdoso, sabes que estão lá fora a formar o salto mais uma data de outros desesperados. Isto não é ficção.
Escrevi que o medo segue dentro de momentos. De facto, depois do 25 de Abril, não foi preciso esperar muito para o medo regressar aos nossos corações. Ou melhor, nunca de lá saiu. Num ensaio que para mim funciona como referência, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, o filósofo José Gil defende que mantemos em nós um atavismo que nos leva à “não inscrição”; somos nós quem não se consegue inscrever num clube que nos aceita como sócios. Mais depressa acreditamos que um dia um qualquer D. Sebastião sairá da neblina para nos vir resolver os problemas. Porque temos inscrito nos nossos seres esse medo, mesmo os jovens que nunca tiveram a experiência de viver sob um regime repressivo. Porque estas coisas passam de geração em geração, sem que os próprios por vezes tenham consciência disso.




2014/04/24

25A40 - O medo segue dentro de momentos

Continuavam os dias de festa em Lisboa, e não era preciso ir à Internet, que ainda não havia, ver o menu das que estavam previstas para esse dia. Lisboa era bem mais “pequena” do que é hoje e todos sabíamos o que estava na ordem do dia. Sentada no passeio em frente da Rádio Renascença, ladeada por amigos, Quica assistia à “revolução”. Foi então que o Marinho se saiu com a tirada, que ela nunca mais esqueceu: «Já pensaste que se isto fosse pago não tinhas dinheiro pra cá estar?»
Vendo a coisa por este lado, o da sociedade do espectáculo, em que todos somos espectadores e por vezes também actores, vêm-me à memória, de entre os muitos espectáculos a que assisti, os poucos que aí ficaram indelevelmente gravados. Não posso esquecer as emoções daquela maravilhosa onda sonora que se propagava pelo ar e nos entrava nos ouvidos e nos cérebros, no Coliseu de Lisboa, da primeira vez que aí actuou Milton Nascimento; ou da reacção do público da festa do Avante, ainda no terreno do Monsanto onde depois foi construído o campus universitário, à inefável versão da «Geni», por Chico Buarque: muitos choravam comovidos, como, soube depois, o próprio Chico e Simone e os elementos do MPB4 choraram abraçados, nos bastidores, eles mesmos contagiados pelo público. Evoco ainda, também no Coliseu dos Recreios, a figura mítica de Léo Férré, todo de preto e com os cabelos brancos compridos de velha matrona, mas com uma força, de voz e de presença, implausível no septuagenário que já era, cantando «Les Anarchistes». Também fui dos felizardos que assistiram à actuação de Miles Davis (com o fabuloso Keith Jarrett ao piano) e de Ornette Coleman (com Charlie Haden no contrabaixo) no primeiro festival de jazz de Cascais, aquele em que Haden dedicou um dos temas aos movimentos de libertação de Angola e de Moçambique (sendo recambiado, ele e o resto da banda, para fora da fronteira no dia seguinte). No ambiente de proibição que vivíamos, atitudes destas desencadeavam o imediato saltar da rolha que nos oprimia, e, por momentos, perdíamos o medo, cometíamos a heresia de gritar palavras de ordem contra a guerra colonial, e saboreávamos uma brisa de liberdade, aquilo que nos fazia tanta falta no dia-a-dia. A mesma liberdade que senti, com o coração a bater mais depressa, os olhos húmidos e uma incapacidade de dizer palavra, ao ouvir Zeca Afonso cantar, no primeiro “canto livre”, pouco depois do 25 de Abril, «A Morte Saiu à Rua», essa homenagem ao escultor Dias Coelho e a todos os que foram assassinados pela PIDE. Já agora sempre vos digo que me bateu forte a forte e crua versão dos «Vampiros», de Zeca, do recente espectáculo «Liberdade», por Sérgio Godinho.
Mas nada disto se compara à saída do quartel, onde me obrigavam a passar três anos da minha jovem vida cumprindo o serviço militar, fardado de alferes, comandando um grupo de militares voluntários, todos armados mas sem a mínima intenção de usar as armas, montados num jipe. Fomos quase de seguida engolidos por um mar de gente que, sem amarras e esquecida do medo, celebrava o primeiro Primeiro de Maio em liberdade. O jipe parecia levitar, levado pela multidão, connosco e com mais umas dezenas de festejantes em cima, os quais conviviam alegre e destemidamente com a “autoridade” das nossas fardas, agora já não identificadas com a repressão; as pessoas aclamavam-nos como heróis, as mulheres de todas as idades beijavam-nos e punham cravos nos canos das nossas espingardas e eu sentia uma indizível alegria física, visceral, emocionada, única.
O medo parecia ter desaparecido do coração dos portugueses. Como acontecera durante esses dias, timidamente primeiro, mais afoitamente à medida que se percebia que aquilo tinha vindo para ficar.
Enfiado à força no quartel, a princípio não tive a certeza sobre se o golpe era pela liberdade ou pelo ainda maior arrocho que a face dura do regime gostaria de ver aplicar. Até porque da tropa só estávamos habituados a receber repressão. Então, na messe de oficiais do quartel, lado a lado com outros milicianos mas também com oficiais do quadro permanente, vários de patente superior, encostado a uma das paredes para lhes deixar ocupar os lugares sentados, assisti pela televisão à saída dos presos políticos, entre os quais vários amigos que comigo conspiraram (Luís e Xaxão Moita, Joaquim Osório, Fátima Fonseca Ribeiro, o grande Nuno Teotónio Pereira e outros); tive a certeza: era mesmo a liberdade! E, ainda com medo de expressar os sentimentos naquele ambiente, fiz das tripas coração para não se me verem as lágrimas de alegria.
A vida é um bolo maravilhoso do qual só temos direito a provar pequenas mas deliciosas fatias lá muito de vez em quando, nos intervalos das chatices. Mas comida uma, essa já cá canta: ninguém no-la pode tirar. E esta foi daquelas cujo sabor vai ser muito difícil de igualar, por mais anos que viva…

2014/01/27

As praxes, essa aberração

Seis semanas após as trágicas mortes do Meco, pouco se sabe de concreto sobre o que levou sete jovens estudantes, trajados a rigor, naquela noite e àquela hora, para a beira de um mar em fúria.
Também ninguém percebe porque, passado todo este tempo, a polícia não tenha sido mais lesta na procura das causas e das provas que possam estar por detrás de tão macabra encenação. Entretanto, o único sobrevivente, continua aparentemente em "estado de choque" e ninguém, para além dos familiares, parece estar muito interessado em esclarecer tal mistério. Porque as conclusões tardam, não faltam especulações.
As redacções, sempre ávidas de sangue, lá foram ao local do crime, tentar reconstituir o "puzzle". Tivemos de tudo, nas últimas semanas: os vizinhos que viram e não falam (?), os que viram e falam pelos cotovelos, a encarregada da limpeza com honras de "prime time", os psiquiatras de serviço para explicar os "bloqueios emocionais" do sobrevivente, os colegas do curso fechados numa estúpida "omertá" que a ninguém pode ajudar, os responsáveis da Lusófona cúmplices na impotência de instituições que nunca tiveram a coragem de proibir tais anormalidades e a opinião pública completamente atordoada perante esta nova realidade.
Alguma coisa está errada numa sociedade que, pesem algumas excepções, permite e estimula comportamentos indignos de relações e ritos de iniciação que se querem fraternos e colegiais.
Se o que aconteceu há seis semanas, não servir para mudar radicalmente a mentalidade dos responsáveis políticos, universitários e educadores (a elite!) por tal absurdo, receio bem que tenhamos entrado definitivamente na idade de trevas que a actual crise prenunciava. O que se seguirá, agora?