Falar sobre concertos é coisa que não faz parte do meu conjunto de competências. Mas, esta história dos blogs permite-nos a expressão do nosso pensamento de forma tão fácil que eu não resisto a registar as minhas impressões sobre um em particular, que teve lugar aqui em Lisboa.
Trata-se do concerto que ontem foi dado no Coliseu por um duo constituído pelo vibrafonista Gary Burton e o pianista Chick Corea. Embora este duo já tenha mais de 35 anos de actividade --o seu disco "Crystal Silence" foi alegadamente gravado em 1972-- só agora passaram por Lisboa (hoje 06-09-23, tocam no Porto).
Chick Corea começou por anunciar do palco do Coliseu: "Hoje não vai haver aqui circo." O que se seguiu foi uma experiência sobre a qual só poderemos dizer: melhor é quase impossível! O jazz é o único género de improvisação estruturada da música ocidental. Existem outras formas de improvisação musical, mais antigas, com estruturas bem mais complexas, que produzem, seguramente, resultados mutíssimo mais refinados que muito do jazz que se ouve habitualmente. Mas, o jazz é o contributo mais sólido da cultura ocidental para o universo da improvisação musical, embora se trate de um género sustentado, curiosamente, num primeiro momento, nos escravos africanos que foram levados para a América... A fórmula da sua estrutura de funcionamento evoluiu e o seu léxico tornou-se mais abrangente. O concerto do duo Burton-Corea constitui um exemplo do melhor que o jazz, na sua expressão actual mais elevada, nos pode oferecer. Difícil será superá-lo...
Um concerto desta natureza é como uma longa sessão de corda bamba. O artista tem de ir do ponto A ao ponto B, corre perigo de vida e conta para concretizar este objectivo apenas com o seu corpo e o seu sentido de equilíbrio. Nú perante o público, sem truques, partiu de A mas conseguirá ou não chegar a B...?
Ora, num concerto como o do duo Burton-Corea de ontem, os artistas vão de A a B em situação de risco permanente. Dão cambalhotas no ar, fazem piruetas, dão passos para a frente, voltam para trás, baloiçam-se no arame e prosseguem o seu caminho, tranquilos, perante a expectativa da plateia ansiosa. Esta metáfora circense vem, claro, a propósito do comentário inicial de Corea. O Coliseu que a inspirou é uma sala que dificilmente acolhe um concerto desta natureza e que, já agora acrescento, me irrita particularmente desde há mais de quarenta anos...
A propósito de expectativa, a classe do duo Burton-Corea e a sensação de situação de risco sucessivamente ultrapassado com sucesso, foram suficientes para, apesar da inadequabilidade da sala, manter uma plateia razoavelmente bem composta em estado de alerta máximo. Facto, aliás, que me surpreendeu. A falta de cultura "jazzística" deste público é manifesta, o arsenal cénico é desoladoramente exíguo quando comparado com o dos artistas da moda e, portanto, a atenção e o explícito agrado com os quais o duo foi distinguido não se podem explicar senão pela superior excelência da sua arte.
Conheço a música destes dois cavalheiros já lá vão anos suficientes e vi-os a tocar ao vivo por diversas vezes, em diversas formações. Chick Corea tem um percurso muito diversificado que incluiu passagens pelo grupo de Miles Davies --que visitou o Festival de Jazz de Cascais, na sua primeira edição, tocando ao lado de, entre outros, Keith Jarrett-- e um sem número de colaborações com outros músicos e bandas de referência como o Return to Forever. Mas, conheço bem e aprecio, sobretudo, a música de Gary Burton desde o final dos anos sessenta. É um músico de exepção. Burton estreou-se com o pianista George Sharing com apenas 19 anos. Mais tarde juntou-se a Stan Getz e com ele tocou até iniciar um percurso autónomo baseado nas suas famosos e inesquecíveis quartetos que incluiam músicos, que com ele se estrearam ou que com ele adquiriram a fama, como Larry Coryell, Steve Swallow, Makoto Ozone e, sobretudo, Pat Metheny. Colaborações com outros músicos não têm fim. Assinalo apenas o seu trabalho com Piazzola, seguramente, um dos muitos pontos altos do seu rico percurso musical.
Nesta altura das suas carreiras (Corea tem 65 anos e Burton 63) a música e o trabalho destes músicos estão depurados ao ponto de não restar senão a essência última da estrutura musical e o jogo subtil da improvisação, feito muitas vezes apenas de insinuações. Assistir a tudo isto é um prazer que desafia as palavras.
Para aqueles, que eventualmente me estejam a ler e tenham estado no Coliseu, mandem-nos, peço-vos, as vossas impressões. Para os que não foram ontem ao Coliseu (ainda podem ver este duo na Casa da Música hoje 06-09-23) aconselho-vos a dirigirem-se o mais rapidamente possível a uma qualquer loja de discos e a comprar tudo (cd's e dvd's) o que inclua estes músicos!!