Quando, em finais de Junho, foi anunciada a XXI Bienal de Flamenco, provavelmente a mais representativa Mostra do "estado da arte" no Mundo, muita gente duvidou da sua realização. A Espanha acabava de sair de uma grave crise sanitária e os traumas (provocados por longos meses de confinamento) continuavam presentes na memória de todos que, directa ou indirectamente, foram atingidos pela pandemia.
Apesar das dúvidas e (justificados) receios, resolvemos arriscar. Consultado o programa, avançámos para a compra dos espectáculos que, à partida, mais garantias davam de uma qualidade testada em anteriores actuações. Acontece que, a pandemia, veio exigir regras mais apertadas, entre as quais a redução dos lugares disponíveis nas salas programadas. Rapidamente, os concertos mais badalados esgotaram e, quando tentámos reservar, era tarde. Perdemos, assim, a oportunidade de tornar a ver a "cantaora" Estrella Morente (filha do grande Enrique), o "bailaor" Israel Gálvan (provavelmente o melhor dançarino da actual geração) e "El Farruquito", neto do mítico Farruco, hoje um um nome maior do "baile". Mas, todos eles vão andar por aí, pelo que não faltarão oportunidades para rever a sua arte.
Porque a escolha é imensa e a qualidade uma garantia da Bienal, optámos por outros nomes conhecidos de anteriores actuações. Estão, neste caso, a excelente "bailaora" La Choni, cujo percurso acompanhamos desde 2008 e Antonio Canales, um dos maiores ícones do baile flamenco tradicional, que tivemos o privilégio de ver no CCB de Lisboa. Outras escolhas, foram os concertos de Berk Gurman, cantor de origem turca, residente em Córdoba e do "bailaor" Andrés Marin, outro nome consagrado da dança Flamenca, este programado para o próximo dia 3 de Outubro.
Algumas notas, necessariamente impressionistas, sobre os espectáculos já presenciados:
O concerto "Flamenco, tres culturas: da Anatólia a Andalucía", tinha um título promissor, pese embora o relativo desconhecimento do intérprete, um cantor e guitarrista turco que, há 20 anos, trocou Istambul por Córdoba onde, desde então, prossegue uma carreira artística dividida entre a aprendizagem da guitarra clássica espanhola, actuações ao vivo e gravações regulares do seu repertório, cujo "core", é constituido por textos de poetas turcos e música tradicional da Anatólia. A actuação de Gurman, que se acompanhou à guitarra, decorreu no pátio do pavilhão de Marrocos, oferecido a Sevilha, após a Expo'92. Ambiente de "mil e uma noites", onde não faltou a lua mediterrânica a iluminar um palco ao ar livre. Concerto algo estranho, já que a tentativa de fusão entre o tradicional "lamento" oriental e o "duende" flamenco, nem sempre funcionou, pese embora a excelente voz e o dramatismo inerente à tradição turca que, de tão belo, não necessita de tradução para comunicar. Ciente da importância da "mensagem", Gurman - um bom comunicador - teve o cuidado de resumir cada canção e, nesse sentido, não podia ter feito melhor. Já a parte musical, ainda que esforçada, nos pareceu algo repetitiva, quiçás devido à técnica que o cantor/instrumentista utiliza na guitarra flamenca, a lembrar o toque de instrumentos de tradição oriental como "oud" e o "bouzouki", menos melódicos e de toque mais rasgado que a guitarra espanhola.
Asunción Pérez, do seu nome artístico "La Choni", é hoje um nome estabelecido no exigente circuito flamenco de Sevilha, onde reside. Acompanhamos o seu percurso, desde 2008, quando a vimos dançar pela primeira vez no clube "Los Gallos", um das mais emblemáticos "tablaos" de Sevilha, onde era "bailaora" residente. Desde então, de Copenhaga (Womex 2009) a Sevilha (Casa da La Memoria, 2011), passando por uma memorável actuação num teatro da provincia andaluza, onde apresentava a "peça" teatral dançada, "Gloria de Mi Madre" (galardoada com inúmeros prémios, entre os quais o "Melhor Espectáculo Dançado" de 2010 e o "Compás de Espera" de 2015), "La Choni" não parou de coleccionar distinções e merecidos elogios. Para a Bienal deste ano, que esteve em risco até ao Verão, criou "Cuero / Cuerpo", uma aposta arriscada, algures entre a dança flamenca clássica, a dança moderna e o teatro, sua imagem de marca. Dividido em quatro "quadros" distintos, a peça procura ser um libelo pela emancipação artística e feminina da intérprete principal (La Choni). Uma peça feminista, no sentido literal do termo, onde a mensagem (por vezes, demasiada explícita) é sublinhada pelos excelentes acompanhantes masculinos da companhia: Manuel Cañadas (Professor da Tradição),Victor Bravo (Mefisto) e Raul Cantizano (Ambientes Musicais). Após um início, algo lento e titubeante, a peça ganha fôlego com a entrada de Cañadas (um príncipe da dança) no papel de professor exigente e castrador, contra o qual a "bailaora-aprendiz" se liberta ao conhecer "Mefisto", que a inicia na dança moderna ("Charleston" e "Swing", no 3ª quadro) e ganhar consciência da sua condição como mulher. O 4ª e último quadro, mostra-nos os três intérpretes em despique e luta, após o que a "bailaora"/mulher se liberta, seguindo o seu caminho, numa (re)interpretação final da tradição, agora inovada. Os ambientes musicais, criados por Raul Cantizano, pareceram-nos aqui e ali algo "deslocados" (uma estridente guitarra electrificada, por exemplo), assim como uma simbologia demasiado explícita (a "mensagem" podia ser mais "distanciada"). Trata-se, no entanto, de um bom espectáculo, onde a soma dos quatro intérpretes (todos magnifícos) parecem valer mais do que a (história da) peça, a necessitar de alguns afinações, que a rotina de actuações futuras, certamente, trará.
Finalmente, Antonio Canales, um "monstro" da dança flamenca, que não necessita de apresentações. Vimo-lo num espectáculo memorável, no CCB de Lisboa, vai para dez anos, à época ainda no apogeu da sua arte. Voltámos a revê-lo, numa homenagem prestada em Utrera, em 2019, onde se limitou a dançar uma "seguiriya", acompanhado pela mãe, no fim do espectáculo. Muito pouco para tanta arte. Sabíamos que dificilmente voltaríamos a vê-lo dançar e foi com surpresa que vimos o seu nome anunciado no programa da Bienal deste ano. O espectáculo, intitulado "Canales: Torero & Sevilla a Compás", afinal, eram "dois"...Uma primeira parte, onde um excelente corpo de "baile", acompanhados por "tocadores" e "palmeros", recriou o maior êxito de Canales, "Torero" (1994), num cenário de uma praça de touros; e uma segunda parte, onde o "maestro" foi a figura principal, dançando e citando o poeta Antonio Machado, fio-condutor da história sevilhana que Canales recriou. "Torero", dançada magnificamente por Pol Vaquero (no papel que celebrizou Canales) e por Mónica Fernandez (no papel de "touro"), é uma representação cronológica do ritual da tourada (desde a "extrema-unção" do "matador" nas catacumbas, até à lide na arena, terminando com o apoteótico "corte de orelha" e a saída em ombros do toureiro). O baile seria aclamado pelo público presente na sala do Lope de Vega, com "olés" significativos. Ficámos na dúvida se eram dirigidos ao bailarino ou ao toureiro...Em tempo de "politicamente correcto", um tema claramente datado, ainda que a Andaluzia seja, por definição, a região da "arte" do espeto. Resumindo: grandes dançarinos (solistas e corpo de baile), que honraram o nome de Canales, o "mestre" que, na segunda-parte, tomou conta do palco e, entre passos de dança e poemas de Machado, teve direito aos holofotes que continuam a iluminar uma carreira sem par.
Sim, o Flamenco está vivo e recomenda-se. Olé!