Mostrar mensagens com a etiqueta Facebook. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Facebook. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, dezembro 06, 2024

Gaza, Palestina. Dezembro de 2024

 

Público, 5 de Dezembro de 2024 (pormenor)

Ontem, a abrir o Público, fiquei a olhar longamente a primeira página, cuja foto edito aqui um pormenor. No chão, jaz um cadáver que presumo ser de um familiar desta mulher. Este desespero terrível tenta ser consolado por uma sua companheira que não sei o que lhe poderá dizer. Em Gaza. Todos os dias estas imagens invadem a nossa sensibilidade, a nossa revolta, a impotência que sentimos perante um governo de genocidas, cuja prática hedionda, inumana, é de uma crueldade sem nome.
A Europa vai pagar caro estas lágrimas. Desta mulher e dos milhares de crianças e velhos que todos os dias, todos os dias, repito, são mortos às dezenas, às centenas em Gaza, no Líbano e na Cisjordânia. E a Europa, hoje rica e confortável, vai pagar mais cedo do que tarde. O Ocidente não quer ver, não percebe, finge, dissimula, apoia os fortes, calca os fracos. Humilha um povo, assinalando a sua vontade hipócrita de uma paz impossível, porque sabe bem que quem está no governo de Israel não a quer. Prefere a morte programada, a vingança bíblica. Os árabes de todo o mundo sentem-se assediados e humilhados perante os europeus. Imagina-se a sede que nos têm, tal como os africanos, tal como os chineses, tal como os indianos e os americanos do sul. Tal como os ameríndios. Escrevo, misturando as coisas? Não creio. Faço-o propositadamente. Não se perde o sentido, porque estas lágrimas, as desta mulher, juntam-se a muitas outras que a História nos atira à cara. Aos europeus que, desde sempre, utilizaram a violência e a discricionaridade contra os povos. Os americanos do norte? Fizemo-los igualmente nós. Se aqueles ainda não demonstraram totalmente a raiva, hoje ainda algo contida, estes últimos estão ciosos de nos deixarem sozinhos, resguardados por um chapéu nuclear que julgam protegê-los. Na onda de pagar as humilhações e violências perpetradas não existirá qualquer protecção que nos valha. Estas lágrimas doem a alguns de nós, mas eles, os que sofrem o horror, saberão disso?

alc

quinta-feira, maio 06, 2021

Uma história «sem álibis nem omissões», um artigo de Manuel Loff


Manuel Loff

Só agora (tarde, portanto) li este artigo de Manuel Loff. Pois é, a necessidade de quebrar consensos políticos perante a História deste país é uma obrigação bem mais honesta do que procurar a paz artificial. Todo o artigo aqui:

Uma história "sem álibis nem omissões"
Manuel Loff, PÚBLICO, 27.4.2021
Lamento mas, se chegou a haver alguma unanimidade quanto ao discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no 25 de Abril, eu não me junto a ela. Por mais corajosa que possa ter parecido a atitude do homem que nos falou como filho de "governante na ditadura e no Império", e que entende ser "prioritário assumir tudo, todo o passado, sem auto-justificações ou auto-contemplações globais indevidas", deveria, ele que me desculpe, começar por si próprio. É compreensível que o filho de Baltazar Rebelo de Sousa, cuja carreira política esteve associada até à medula à gestão colonial nos anos da guerra, nos recorde que, como "constituinte, [viveu] o arranque do novo tempo democrático (...) como milhões de portugueses [situado] entre duas histórias da mesma história" - mas já não é aceitável ser quem nos peça que, ao "revisitarmos a história", não a julguemos com os valores do presente. Porque é isso mesmo que ele faz, como fizeram os anteriores presidentes da República todos os dias 10 de Junho, 1º de Dezembro, 5 de Outubro e, claro está, 25 de Abril. Chama-se a isso o uso político do passado, que Marcelo usa como usam representantes de Estados que queiram dar lições aos cidadãos do presente a propósito dos atos dos cidadãos de ontem, e que, em nome da honestidade, não deveria pretender ser coisa apenas daqueles que discutem o passado nos termos que lhe não agradam.
Quando Marcelo nos pede para não "[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...) agora tidos por evidentes, intemporais e universais", persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse. Marcelo, que em 2017 foi a Gorée (Senegal) elogiar a precocidade portuguesa na história da abolição da escravatura, pretendendo que Pombal a teria abolido em 1761, não só sabia que o Estado português o não fez antes de passados mais de cem anos - eis o (ab)uso político do passado - como sabia também que a condenação da escravatura, do papel pioneiro e persistente que portugueses tiveram no tráfico, ou a denúncia do trabalho forçado que se manteve até aos anos 1960 nas colónias portuguesas, foi contemporânea dos próprios fenómenos e não é um "juízo do passado com os olhos de hoje". Como o anticolonialismo foi contemporâneo do colonialismo, e contemporânea da guerra foi a recusa em fazê-la (sobre a qual Marcelo não pronunciou uma palavra) e foi a contestação da resistência antifascista portuguesa à escolha de Salazar em fazê-la. Nenhuma destas batalhas é recente, pelo que é inaceitável qualquer insinuação de que estas podem ser "campanhas de certos instantes".
Com toda a razão, o presidente diz que "o 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder". Deveria, contudo, lembrar-se como o seu partido e todo o universo conservador da sociedade portuguesa, que, logo desde 1974, amaldiçoaram a Revolução e descreveram a descolonização como uma traição, não simplesmente procuraram "esconder", mas pura e simplesmente negaram a natureza intrínseca da dominação colonial e toda a violência que ela significou. Se hoje, como Presidente da República, pretende que se faça uma História "sem álibis nem omissões", pode desde já ajudar à desclassificação de muita documentação militar que continua inacessível.
Pela minha parte, eu e muitos investigadores estamos disponíveis para "estudar o passado e nele dissecar tudo". Mas "tudo" é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, atos inaceitáveis à luz da moral e do Direito (não apenas os de hoje, mas também os do momento em que foram praticados), o Estado e a maioria da sociedade nunca quis assumir e não quer que se investigue. Era bom que o Presidente esclarecesse se "dissecar tudo" abriria, afinal, essas discussões que ele entende não serem "prioritárias para os portugueses", e que é "duvidoso que o sejam alguma vez". Se assim fosse, teríamos de duvidar da sinceridade do discurso. É que só esclarecendo essas "omissões" seria verdade que, enquanto sociedade, "nos responsabilizamos" pelos nossos "fracassos" históricos da mesma forma como "assumimos as glórias que nos honram".

No bicentenário de Marx, lembrar igualmente a sua situação de migrante.


https://marx200.org/en/marx-als-migrant?fbclid=IwAR0zaSCzEMxiSBdvBK-OLb-AcLuhnOnqLOXDUC8fkiFnYriNOqWak5NL-Fk



David Priestland: sobre o trabalho e a distribuição capitalista e socialista na «estagnação»

David Priestland

«Michael Burawoy encontrou decerto uma ira para com as desigualdades muito mais forte entre os trabalhadores do mundo comunista do que nos países capitalistas. Os operários da Fundição de Aço Lenine em Miskolc, na Hungria, e os da fábrica Allied em Chicago queixaram-se ambos do encerramento das antigas fornalhas de aço. Porém, embora os trabalhadores americanos se confrontassem com a perda dos seus empregos, ''continuavam a não ver grande defeito no capitalismo''. Ao mesmo tempo, ''paradoxalmente, os operadores de fornalha da Brigada Revolução de Outubro, embora mais ou menos isolados da ação destrutiva do mercado mundial e incapazes de compreender o que significa ficar sem emprego, sabem muitíssimo bem criticar o seu sistema'', e passam muito tempo a condenar as hipocrisias do socialismo. A solução para este paradoxo reside num outro paradoxo: não obstante o secretismo político e a propaganda distorcida que envolvia os regimes comunistas, o sistema era na verdade muito mais transparente do que o capitalismo. (...) o Estado [socialista] investia numa fábrica e os trabalhadores produziam um «excedente» que era depois arrecadado pelo Estado, que pretendia distribuí-lo com justiça para o bem da sociedade. Assim, quando os operários viam os chefes a conceder privilégios a si mesmos, aparentemente imerecidos, sentiam-se zangados e explorados. Sob o capitalismo, é muito difícil ver para onde vai o lucro ou com que justiça está a ser distribuído. Não surpreende que os trabalhadores criticassem normalmente os sistemas socialistas por não serem suficientemente socialistas.»

David Priestland, «A Bandeira Vermelha - A História do Comunismo», Cap. 10 ''Estagnação''. pp 530, 531.

quinta-feira, dezembro 10, 2020

A ignorância ao serviço do nazismo



Eu sei que o texto é longo, mas por vezes é necessário desconstruir o negócio em torno de Auschwitz. Porque não é só o negócio. É também a ideologia que lhe está subjacente. O horror pode ser banalizado por um idiota útil do nazismo. É o caso, não único, de José Rodrigues dos Santos. Percam cinco minutos a ler esta denúncia. Talvez seja importante.

Começo por agradecer o alerta à Irene Pimentel – com quem continuo a aprender - e junto-me ao seu protesto.
A verdade é que perdi a conta aos livros que li, desde os já longínquos tempos da faculdade, sobre a perseguição aos judeus na Europa durante o séc. XX. Entre eles, apenas um romance – As Benevolentes, com que Jonathan Littell ganhou o Goncourt e o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Esta minha aversão pela ficção em torno de uma matéria tão sensível raia o paradoxo, já que foi o género que escolhi para falar do assunto nos três livros que escrevi. A explicação é simples: sempre receei a falta de rigor, mesmo tendo sido injusto com alguns ficcionistas que sabiam o que diziam. Até os livros académicos foram escolhidos a dedo, uma obsessão que se afirmava cada vez que conversava com algum sobrevivente. Quando me falavam da sua vida no campo, contavam que, ao acordarem – às 4h30, no verão; uma hora mais tarde, no inverno –, deparavam muitas vezes com mortos e quase mortos prostrados nos beliches, pois nem todos resistiam às noites geladas de Auschwitz em barracões com lareiras que nunca eram acesas. Se fossem a tempo, ainda se aproximavam do companheiro que agonizava, ajoelhavam-se e davam-lhe a mão para que não morresse só. Sobrassem forças para dizer alguma coisa, o moribundo despedia-se da vida com um pedido: as últimas palavras reservadas para implorar a sobrevivência de quem lhe segurava a mão. Para quê? Para que contasse o que se passava ali. Ninguém suportava morrer, permitindo que a mentira lhe sobrevivesse.
Eu disse pedido? Era mais do que isso: era uma sentença de testemunho. Então, e só então, soube o que me faltava para escrever sobre Auschwitz, Jedwabne ou qualquer aldeia toscana devassada pelos nazis. Alguém imagina que valor dá à Verdade quem ouve uma história destas?
E é também por isso que vos falo do Rodrigues dos Santos. Não dos livros – que não li -, mas da entrevista recentemente dada à RTP.
Cito-o:
«A minha ideia era transportar o leitor de Portugal, em 2020, para Auschwitz, em 1944. De tal maneira que as pessoas estão a ler o romance e a certa altura já não estão aqui, estão lá, naquele tempo. Estão a sentir os cheiros, as cores, a visão, as emoções, como se estivessem lá.»
Uma proeza para qualquer autor, mais ainda nunca lá tendo estado. Censuro-o por isso? Essa agora! Mas estranho como suportou não fazer essa visita.
Já eu não sosseguei enquanto não fiz a viagem. E mesmo tendo lá ido quatro vezes, de ter passado dias a fio a trabalhar nos antigos campos, de atravessar sem pressas a mata de bétulas de Birkenau, ou de caminhar, por vezes à noite e quase sempre sozinho, entre os barracões do Stammlager, nunca concebi os cheiros ou as emoções de quem lá sobreviveu ou fez tudo por isso. Muito menos tentei descrevê-los. Mas cada um faz o que pode e, sobre isso, nada a dizer.
Igualmente não censuro JRS por dizer que nenhum autor português escreveu sobre o assunto, muito menos que se esqueça das perguntas que me fez quando me entrevistou num Telejornal em outubro de 2017 - pelo que vejo agora, apenas quatro dias antes da epifania que o levou a escrever os dois romances sobre Auschwitz. Também não o critico pelas gafes – logo eu, que me espalho tantas vezes-, mesmo quando nos diz:
«Os nazis tinham 50 campos de concentração, que é uma coisa gigantesca, e os comunistas, na Rússia, tinham 500! Eram dez vezes mais.”
Classificar Auschwitz como um campo de concentração é uma imprecisão muito mais comum do que afirmar que os nazis tinham 50 campos. Infelizmente o número foi superior, dolorosamente superior: mais de 44.000, somados os campos de concentração e guetos, campos de trabalho, de trânsito, de extermínio, etc.
De regresso à entrevista, ouvimo-lo dizer o seguinte:
«A certa altura, há alguém que diz: - Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?»
Não sei até que ponto JRS está a par do debate académico sobre as origens do genocídio nazi, nem se conhece os conceitos de Funcionalismo e Intencionalismo que têm dividido os historiadores nas últimas décadas. De uma coisa tenho a certeza: não vai encontrar nenhum académico respeitado que alegue razões humanitárias para justificar os gaseamentos. A não ser, claro, que essas razões recaiam sobre os próprios alemães, membros dos einzatsgruppen que fuzilaram multidões de judeus durante a invasão da União Soviética e que apresentaram sinais compreensíveis de fadiga e distúrbio psicológico, após dispararem a eito sobre milhares de mulheres e crianças indefesas. Andava eu convencido de que os primeiros camiões de gás tinham surgido para agilizar as mortes e torná-las mais “limpas”; oiço agora que foi por piedade pelas vítimas.
Aberrante? Há mais e há pior. Atente-se:
«Nós vemos no livro que há ali uma máquina que está montada e que é quase como quem vai para o trabalho. Aquilo é um trabalho, portanto, eles vão lá fazer um trabalho. (…) Chegou ao ponto de terem um bordel no campo para os prisioneiros (…) tinham uma piscina para os prisioneiros, (…) tinham uma escola para as crianças judias no Familienlager, em Birkenau. Por outro lado, o ser humano tem uma enorme capacidade de se adaptar às situações.»
Adaptar a quê? A Auschwitz? Terá JRS lido Primo Levi? No lager, a única adaptação possível é a abreviatura da morte, os Muselmänner.
Não. Eles não vão lá fazer um trabalho, vão lá para morrer. Por cada transporte que chegava a Birkenau, a maior parte era imediatamente conduzida para as câmaras de gás. Os que ficavam trabalhavam como escravos até morrerem também. Não iam para a piscina e mesmo os bordéis criados nalguns campos para “premiar” os mais produtivos não passavam de um embuste, um lugar de humilhação para os prisioneiros, ou mais um exemplo do cinismo e crueldade dos nazis. Oiçam-se as vítimas, pela voz de uma de muitas - Jozef Szajna: «Os bordéis eram apenas mais uma forma de os SS atormentarem os prisioneiros. Todos os que pensam que o bloco 24 era uma espécie de prenda para os prisioneiros, não fazem a mínima ideia do que foi Auschwitz.»
O exemplo descontextualizado da escola do Familienlager, a extensão propagandística do campo/gueto de Theresienstadt situada em Birkenau, também é pernicioso. Essa escola destinava-se às crianças vindas de Terezin e, assim como as condições dadas aos restantes prisioneiros desse setor do campo – ligeiramente mais favoráveis do que as concedidas aos demais – mantinha o propósito ardiloso do campo de origem. É uma ilha irrisória nos 150 hectares de Auschwitz II e, sem ser o facto de menos de 1 em cada dez deportados ter sobrevivido, não representa o que se passou ao redor.
É esse o problema do discurso de JRS. Desdenha as obras de ficção que falam da Shoah por «suavizarem a realidade», mas doura a pílula e confunde tudo. Pior: sobram-lhe certezas onde falta a perplexidade; e só ficciona sobre Auschwitz quem desistir das respostas – sempre pequenas para tão grandes perguntas, como lembrou Raul Hilberg. Sem querer, cai naquilo que Deborah Lipstadt apelida de «soft core denial». Exagero? Então leiam:
«Os nazis acreditavam que faziam isto para um bem superior, que eles iam salvar a humanidade. Nós encontramos este raciocínio na Inquisição, quando está a queimar as bruxas, a matar os judeus, a torturar as pessoas, acreditando que aquilo é para as salvar, para que encontrem o caminho de Deus.»
Não comento. Apenas lamento esta entrevista. Lamento que JRS não usasse melhor os 23 minutos que o canal PÚBLICO onde trabalha lhe ofereceu para publicitar o romance. Mas também me lembro das horas que passei a falar destas coisas a muitos jovens deste país, mais de 100 sessões escolares em que pesei cada palavra para não dizer asneiras, ou mesmo dos 20 anos que esperei para me atrever a escrever sobre Auschwitz e o grande desastre humano.

Lenine e Nós, de Boaventura de Sousa Santos



O facto de Boaventura de Sousa Santos escrever sobre Lenine, já por si, é uma notícia. Mais notícia será se nos ativermos às posições políticas do sociólogo que está longe de estar em consonância com o PCP. Tal como disse há uns tempos por aqui, o BE irá ser penalizado pela posição que tomou relativamente ao fim da negociação na especialidade do Orçamento para 2021 com o Governo, votando contra. Sei que alguns companheiros do BE estão zangados com as medidas do PS e do Governo no campo do trabalho, da precariedade e da saúde que não são uma novidade, nem apontam para uma flexão (mais) à direita. Porque já estariam nos orçamentos anteriores que foram votados com abstenções da esquerda parlamentar. Qual, então, a importância deste artigo de BSS? É que a sua análise à posição do Bloco vem de encontro ao que já aqui dissemos repetidamente sobre o seu vazio ideológico muito mais permeável a incompreensões sociológicas e erros políticos, que o impedem de uma compreensão global sobre o querer e a sensibilidade políticas do «povo de esquerda». Apresentar um artigo desta importância tendo como base «O Esquerdismo doença infantil do Comunismo», de Lenine, nem em sonhos eu era capaz de o pensar e muito menos de o fazer (então aqui, no FB!). Mas Boaventura fá-lo com a elegância e a síntese que lhe são atribuídas por muitos. Outros, também muitos, nunca o diriam assim. Não tenho para mim que o BE seja esquerdista e, segundo compreendo, nem BSS o acha, senão entraria em contradição com a acusação de vazio ideológico do BE. A análise recai sobre a estratégia do BE e do PCP que apoiaram a Geringonça. Estratégias díspares, mas valorizando a do PCP. A análise vale por isso mesmo. O ataque concertado ao PCP também é visto como parte integrante da estratégia da direita que absorve as críticas ao Governo pela esquerda. A direita sabe muito bem o que faz. E, prova disso mesmo é que logo após a publicação deste artigo, o ataque de toda a direita se faz a BSS por causa da chamada de Lenine à colação. Compreende-se a proscrição do revolucionário russo por antinomia, mas é inegável o apoio implícito ou explícito de largas franjas da esquerda a esta figura que Boaventura corajosamente foi chamar. Um texto a ler e a (re)pensar. Antes que a direita e a extrema-direita toquem as trombetas do triunfo.

O artigo de Boaventura de Sousa Santos é este:

https://www.publico.pt/2020/12/07/opiniao/opiniao/lenine-1941149?fbclid=IwAR10lSJtdmscoOUXd0csPWUwz5elHQ_MNnu9RRVQKyG46dj10S-0PRk0Lfw

António Luís Catarino

7 de Dezembro de 2020

domingo, outubro 18, 2020

Auschwitz «in progress». O horror como mercadoria barata

Atualização em outubro:

O sabotador de Auschwitz
O bebé de Auschwitz
O violino de Auschwitz
A bibliotecária de Auschwitz
As cartas perdidas de Auschwitz
O carteiro de Auschwitz
O tatuador de Auschwitz
As irmãs de Auschwitz
O fotógrafo de Auschwitz
O mágico de Auschwitz, de Santos
Holocausto sei lá de quem e
Holocausto, de Irene Fluncher Pimentel

ALC
Setembro/Outubro de 2020

«á carga!»

Um dos livros mais interessantes de Luísa Costa Gomes é o premiado «Ilusão - (ou o que quiserem)». Se o leram saberão porque me lembrei dele, numa aula em vídeo, com a seguinte mensagem que a abria: «já estou onlin, quando é que cumeça o meu tele está á carga»!!!

ALC

Coimbra, 15 de outubro de 2020

Samuel Paty


Samuel Paty era um professor de História parisiense e foi decapitado anteontem por um tchetcheno de 18 anos com a cumplicidade dos pais de alguns alunos entretanto detidos para averiguações. Crime: o de, numa aula sobre a liberdade de expressão, esse grande crime de cidadania que (ainda) se aprende nas escolas públicas, ter mostrado algumas imagens de Maomé a partir da Charlie Hebdo cujas caricaturas vitimaram 12 pessoas reunidas no jornal e cujo julgamento dos assassinos decorre em França. Tenho publicado, aqui no Facebook, algumas considerações sobre o que aconteceu então. Mas o que me leva a uma grande revolta pessoal não é tanto Paty ser um colega meu. É a instituição do medo como norma para o pensamento livre. E não se pense, nesta hora de raiva sentida onde o populismo poderia medrar, que a «culpa» vem só dos muçulmanos radicais. Vem igualmente dos conservadores radicais de todas as cores que veem o ensino da cidadania uma disciplina a abater. 
Ainda na sexta-feira, numa aula de História, debatendo com os meus alunos a presença muçulmana na Península Ibérica, analisámos esta miniatura do século XV que mostra Maomé a pregar em Meca. Está, ao que penso e se não me engano, na Turquia. Existem mais três imagens, de origem muçulmana, do profeta. Muitas outras estão apagadas, mutiladas até, por indivíduos que nada têm na cabeça, mas que não se coíbem de apagar as outras! Mas isto é assim. Qualquer dia, um parvo qualquer (aqui a palavra «parvo» tem todo o seu sentido literal) atentará contra a imagem de Deus de Miguel Ângelo. Com os mesmos argumentos de quem assassinou um professor de História. Tempos perigosos estes mas que, por isso mesmo, devemos arredar o medo que nos querem impor e ocupar os lugares dos populismos e da extrema-direita. Na rua, se preciso for, espaço matricial grego da liberdade.

António Luís Catarino
Coimbra, 18 de outubro de 2020