terça-feira, dezembro 31, 2019

Dora Bruder, de Patrick Modiano


Dora Bruder
Patrick Modiano é um dos melhores escritores contemporâneos. O espírito de síntese nele é admirável, expurgando e limitando o adjetivo, a frase bombástica, o espírito doutoral de nos dar lições, a frase idiomática, o intrincado pensamento de uma situação ou de uma emoção que só quem escreveu conhece...daí, uma escrita límpida e limpa, escorreita, cujos factos falam por si e, se quisermos, vêmo-nos a pensar neles profundamente . Quase sempre o queremos, garanto. Dele ainda li muito pouco: «La Place d’Etoile» que foi o seu primeiro livro, «Dans le café de la Jeunesse Perdu», «Pour que tu ne perdes pas dans le Quartier» e, agora «Dora Bruder» que o escreveu em 1997, na Gallimard. É deste último que vos quero falar. Talvez um dia deixe registos dos outros. Ameaço, sim.

Dora Bruder, não está presente. Ou melhor, não existe fisicamente, mas toda a linha de narrativa a vai encontrar. No entanto, Patrick Modiano segue-lhe o rasto desde que, ocasionalmente, lê um anúncio no Le Soir de 1942. Alguém que procura uma menina, Dora Bruder, porque necessitam de saber o seu paradeiro urgentemente. O seu remetente é um pequeno hotel, em Paris, onde vivem os seus pais. O pai, 100% de incapacidade, gaseado na I Guerra Mundial, não se sabe a sua profissão. A mãe, costureira, é doente e francesa «ariana» tal como a polícia da ocupação a regista, por imposição alemã. Primeira interrogação: o que leva, em 1942, ano de terror total por parte das gendarmeries para com os judeus franceses que eram entregues no campo de Tourelles, depois na prisão de Drancy com destino a Auschewitz e Dachau, a publicar um anúncio desesperado por uma jovem judia de 18 anos, não reconhecendo o perigo de ser toda a família descoberta pela Brigada de Tratamento dos Judeus Franceses? Bom, o resultado foi a prisão do pai, o enfranquecimento físico e psicológico contínuo da sua mãe e, como «amiga» de judeus, deportada igualmente para Auschwitz mais tarde, quando as leis nazis começaram a apertar ainda mais. Mas ainda vê a filha em Paris.

Dora Bruder não aparece em fotos ou fisicamente como se disse atrás. Se Patrick Modiano o fizesse ou conseguisse entrevistá-la em 1997 teria ela 90 anos. Foi possível falar com algumas amigas que estiveram no campo de Tourelles, depois em Drancy e fim da viagem em Auschewitz. Foi este o roteiro. Antes, Dora Bruder passou por um reformatório de freiras, durante 8 anos, portanto, desde os dez. Pensaria o pai que assim a protegeria? Segundo a madre superiora ela era uma rapariga rebelde, independente, amada pelas colegas, agreste para com as freiras e registada a sua fuga definitiva em 1942 (houve várias anteriores). Esteve meses escondida. Onde? Quando foi apanhada sem a braçadeira amarela de judia foi imediatamente presa na casa dos pais, denunciada pelos vizinhos que ainda afirmaram aos gendarmes que era habitual Dora Bruder andar na rua sem a estrela de David (alguns judeus tentaram assim escapar sem sucesso). O nojo sobe-nos à boca! Com ela foram presas mais cinco judias, devidamente registadas nos arquivos de hoje, sendo a acusação mais comum não usarem a braçadeira identificadora. A seguir vinha a tentativa de fuga para a «zona livre» de França. Nunca mais sairam da prisão. É por aqui que Patrick Modiano sabe mais de Dora Bruder por depoimentos que ouviu de companheiras dela e nos registos encontrados nos campos e prisões. No fim da leitura do livro, sentimo-nos com emoções desencontradas. Não é só o genocídio nazi. É a submissão total aos totalitaristas alemães de alguns (muitos) franceses e insituições francesas que faziam o trabalho sujo de denúncia, prisão e entrega aos esbirros das SS. Também nos interrogamos que vida viveu Dora Bruder, esta jovem cuja liberdade foi refreada anos a fio desde Paris até à sua morte em Auschewitz. E nos outros países ocupados pelos alemães, como foi?

Mas houve quem se revoltasse para além da Resistência organizada. Pessoas que se solidarizaram com os judeus e contra a ocupação. Assumo toda a responsabilidade da rápida tradução de Modiano:

Sobre a solidariedade para com os judeus: «Entre as mulheres que Dora pôde conhecer em Tourelles encontravam-se aquelas a quem os alemães apelidavam ‘’amigas de judeus’’: uma dezena de Francesas ‘’arianas’’ que tiveram a coragem de, em junho [de 1942], no primeiro dia em que os judeus deveriam usar a estrela amarela, as trazerem no braço em sinal de solidariedade, mas de um modo fantasista e insolente para com as autoridades de ocupação. Uma delas colocou uma estrela no pescoço do seu cão. Uma outra, bordou por cima da estrela a palavra Papou. Outra: Jenny. Outra ainda coseu oito estrelas à cintura e em cada uma figurava a palavra Victoire. (...) Presas em Drancy, exerciam as seguintes profissões: dactilógrafa. Empregada de uma papelaria. Vendedora de jornais. Mulher de limpezas. Empregada dos PTT. Estudantes.»

Sobre a ação da Polícia Juciária e Polícia Municipal Francesas  nas leis antijudaicas: «I-Judeus - homens de 18 anos ou mais: Todo o judeu  em infração será enviado para a prisão sob a responsabilidade de um comissário municipal com a ordem de envio especial e individual estabelecida em dois exemplares (a cópia é destinada a M. Roux, comissário divisionário, chefe das companhias de circulação – secção prisão (...) 2 – Menores dos dois sexos entre 16 e 18 anos e mulheres judias: serão igualmente enviados para a prisão sob a responsabilidade dos comissários municipais seguindo os modelos já descritos [eram procedimentos administrativos pormenorizados sobre a situação pessoal, profissional, económica, etc. de cada judeu]. A permanência na prisão dependerá dos documentos registados e o envio dos originais à Direção de Estrangeiros e das Questões Judaicas, a quem, depois do parecer da autoridade alemã, decidirá sobre o seu caso. Nenhuma iniciativa será efetuada sem uma ordem escrita desta Direção». Para que fique registado o nome da Direção da Polícia Judiciária era um simples Tanguy, assim como da Direção da Polícia Municipal era um não menos ambíguo Hennequin!

Sobre os regimes de internato jovem, Modiano conta a sua própria experiência de fuga que transporta para o colégio interno onde esteve Dora Bruder perto de 10 anos: «Lembro-me a forte impressão que tive após a minha fuga de janeiro de 1960 – tão forte que creio nunca ter conhecido sensações semelhantes. Foi a bebedeira de cortar, de um só golpe, todos os laços: rutura brutal e voluntária com a disciplina que se nos impõe, o colégio, os professores, os companheiros de sala de aula. Decididamente, não conseguirão fazer nada com este tipo de gente; rutura com os pais que não souberam amar-nos e em que se afirma que nunca deverão esperar algum futuro de nós; sentimentos de revolta e solidão presentes na incandescência e que nos corta a respiração e nos coloca no vazio. Uma das raras ocasiões da minha vida, sem dúvida, onde fui verdadeiramente eu e onde caminhei com o meu próprio passo.
Este extâse não poderia durar muito tempo. Não teria nenhum futuro. Mais depressa do que julgamos somos quebrados pela nossa situação.

A fuga – parece-me – é um apelo de ajuda e muitas vezes em forma de suicídio. Provam, até, um breve sentimento de eternidade. Não cortaram somente as ligações com o mundo, mas igualmente com o tempo. Ele chega ao fim de uma manhã, o céu de um ligeiro azul e que niguém nos pesa com a sua presença. Os ponteiros do relógio do Jardim das Tulherias estão imóveis para sempre. Uma formiga não chega a atravessar a largura do sol.»

Dora Bruder, sentir-se-ia assim quando da última fuga. É possível, segundo Modiano, que estivesse na casa da mãe onde foi presa, na casa de amigos, na casa de «amigos de judeus» ou simplesmente na casa de 5 jovens judeus escondidos nas águas-furtadas de um prédio no próprio boulevard onde a mãe habitava. A questão não é contudo só essa. É que todos somos Dora Bruder, se a banalização desta frase hoje não tivesse o sentido que na França de 42 se dava num sentido mais vital. Lá, era a vida ou a morte. Com todos a contemplar e a trair. Provavelmente, cidadãos imaculados de qualquer crime e de não quererem interiorizar que os cometeram. Escondidos, atrás das cortinas.

António Luís Catarino
Delémont, Suiça, 31 de dezembro de 2019

domingo, dezembro 29, 2019

O Labirinto espanhol de Javier Cercas

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Javier Cercas é um «escritor de sucesso», seja lá o que for que isso signifique. Para esse epíteto é necessário que o autor seja reconhecido com mais de 30 prémios nacionais e internacionais (lá se encontram os jogos florais de escritores que dão pelo nome de Correntes d’Escrita), seja traduzido pelo menos por cinco línguas estrangeiras e seja considerado como possível Nobel. Ele tem tudo isso e até mais. A capa do livro que eu li «El Monarca de las Sombras» tem «Best Seller!» lá inscrito. Ainda tentei com a unha do polegar direito descolá-lo, mas não, era mesmo uma inscrição na capa. Certezas de editor, digo eu!




O autor escreveu antes, em 2001, «Os Soldados de Salamina» que descrevia o combate de um republicano que, com a sua coluna, combatia os fascistas, falangistas e destacamentos «mouros», sendo que o herói era aquele. Estava escrito, escrito estava. Nada a fazer perante uma sociedade ainda hoje dividida em dois e cujos direitistas o recriminaram por passar uma esponja sobre os crimes levados a cabo pelos voluntários da II República, destacando os massacres perpetrados pelos franquistas, exagerando-os. Javier Cercas prometeu a si próprio nunca escrever um livro que «anulasse», pela ambiguidade ou suposta imparcialidade, que aliás ele sempre recusou para com Franco, a mensagem de que a razão estava do lado da República, fossem eles socialistas, comunistas, republicanos radicais, anarquistas e os brigadistas internacionais abandonados mais tarde pelas democracias ocidentais e pela URSS.

Seja. Mas esta posição louvável do autor aconteceu em 2001 e num par de anos depois... estamos agora em 2017 (data da saída de «El Monarca de las Sombras») e muita água passou debaixo das pontes. Assim, ele que nunca escreveria nada que propusesse alguma condescendência para com o franquismo, viu-se no meio de uma enorme hesitação em escrever, afinal, o que nunca disse que escreveria. Tratava-se da sua família fascista e particularmente de um tio, Manuel Mena, cuja história era contada pela mãe dele, entre sombras e dúvidas, entre silêncios e contradições. Manuel Mena era falangista, um camisa azul (também por lá os havia), seguidor fanático de Primo de Rivera e que tinha as suas contas a tratar com Franco de quem não gostava. Morreu com 19 anos e quando, aos 17. se inscreveu no 3º Batalhão dos Tiradores de Ifni, ainda brincava com a sobrinha mais velha, mãe de Javier Cercas. Eu compreendo a sua necessidade em escrever esta história e lê-la com a atenção devida não indo atrás da porcaria do Best-seller com que os editores afastaram alguns leitores. O homem é mesmo bom escritor, e a história arrebatadora, mas adiante.

Manuel Mena morreu aos 19 anos na Batalha do Ebro que foi o corredor para a tomada final de Barcelona, sendo que Madrid resistia ainda. Essa outra grande batalha pela posse da capital aconteceu após a Batalha de Teruel, onde esteve Manuel Mena na linha da frente, tio-avô, portanto, de Javier Cercas. Foi ferido cinco vezes, três das quais foi hospitalizado por declaração do médico de campanha. As outras duas não se sabe como aguentou. Veio a casa aquando dos ferimentos graves por uma semana. Na última antes do funeral, mostrava-se já farto da guerra e custava-lhe ir outra vez para a frente de combate, sendo ele aos 19 anos um veteraníssimo da guerra e um jovem cansado. Não era por motivos ideológicos, mas familiares como se poderá antever pela leitura do romance.


O labirinto que travava Javier Cercas em busca de uma saída deu-se quando a bisavó de Manuel Mena entendeu queimar todo o espólio dele. Nada restava a não ser um velho retrato com farda de gala de alferes e medalhado com a mais alta condecoração do exército rebelde. É nesse labirinto que nos entranhamos nas sombras que ainda hoje existem em Espanha. Nos inquéritos a várias personagens o silêncio imperava até que na estrada sinuosa dos vários arquivos Javier Cercas foi deslindando, sem que, mesmo nesses documentos os erros de registos de acumulassem. Manuel Mena, falangista, não morreu na Batalha do Ebro como se pensava. Aliás, militares contemporâneos e generais de Franco não entendiam a sua estratégia. As duas Batalhas mais sangrentas de Espanha (Teruel e Ebro) podiam ter sido evitadas poupando a vida a 200 mil homens de ambos os lados, sendo que em Teruel perante um ataque republicano que dividiria o sul franquista em dois, preferiu-se o combate quase corpo a corpo, evitando-se uma retirada e posterior cerco pelo Norte. O mesmo em Ebro: as forças republicanas acantonadas nas margens do Ebro, não barravam o caminho para Barcelona. Bastava rondá-las e entrar por Aragão. Mas não, não era incompetência de Franco, era, antes, a sua política de extermínio total dos inimigos que durou até 1975.  

Javier Cercas quis saber da sua família. Ela aí está neste livro, na aldeia de Iberhando no Distrito de Badajoz, perto de Cáceres e com raízes conservadoras e direitistas profundas. Mas para um leitor comum não deixa de ser literariamente muito forçado para o tentar equiparar a Ulisses ou Aquiles ou mesmo Quixote, buscando citações aqui e ali que demonstram o que «é o Homem». Manuel Mena escolheu o seu lado numa extensa luta de classes, onde os menos pobres dos camponeses se aliaram aos grandes e os mais pobres do pobres viram na República (mesmo com as suas contradições e traições intestinas) uma porta aberta para a dignidade que os operários exigiam há muito. Sim, o Homem é capaz do melhor e do pior, é tão violento como promotor de solidariedades, a guerra é mesmo assim, a banalidade da morte faz-nos anestesiar perante o mal (Javier Cercas chega a nomear Harendt, Ortega y Gasset e Unamuno), mas tanto Humanismo chega! Até porque sabemos que os dois últimos têm telhados de vidro... Mesmo na emoção sentida da mãe de Manuel Mena que no seu funeral sem lágrimas, e com a saudação romana, brada «Arriba España! Querido Manolo. Arriba España!» Um dos amigos de Manuel Mena, que pertencia ao mesmo 3º Batalhão de Tiradores de Ifni desabafou com Javier Cercas: «Una mierda la guerra!». «Como morreu Manuel Mena? Com um tiro de espingarda que lhe entrou pelas costas e alojou-se no peito, num morro que nada tinha de estratégico. Morreu com dores terríveis e a gritar! Quando o levaram ao hospital de Bot, já na Catalunha, não foi logo atendido porque não havia lugar para ele. Os quartos do 1º andar estavam ocupados por majores, tenentes e coronéis, mais altos em graduação mas com ferimentos de menor gravidade do que ele! Manuel Mena não pertencia aos ricos! Esteve duas semanas abandonado, a agonizar, no rés-do-chão.»


Assim morreu Manuel Mena de Iberhando, aos dezanove anos, cinco ferimentos em numerosas batalhas levando possivelmente o fanatismo de Primo de Rivera com ele. Heróis? Há heróis nas guerras?

António Luís Catarino
Delémont, Suíça, 29 de dezembro de 2019

Nota: a edição portuguesa é da Assírio e Alvim.

quarta-feira, dezembro 18, 2019

Expurgar o revisionismo histórico: o Estado Novo foi fascista


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Depois de ler um autor revisionista da história do Estado Novo imposto pela Ditadura Militar em 1926, depois Ditadura Nacional já com Salazar ministro com plenos poderes e após a Constituição orgânica e corporativa do Estado Novo, em 1933, sendo Salazar presidente do conselho, tenho para mim que o que fiz melhor foi pegar e ler rapidamente o livro de Fernando Rosas «Salazar e os Fascistas». Poderia ter sido outro. Mas este é um livro que deveria ser de leitura obrigatória no Ensino Secundário. Aliás, não entendo como nas disciplinas de Português, Literatura, Inglês, Francês ou Espanhol e Alemão há livros de leitura obrigatória e/ou recomendada e não existem para a História, Filosofia, Física e Química, Artes e Design, etc. Sinceramente, custa-me a entender.

Fernando Rosas (FR) inicia o estudo a elencar as lutas revolucionárias da esquerda logo após a Revolução de Outubro de 1917, todas votadas ao fracasso: em janeiro de 1918, guerra civil na Finlândia, novembro de 1918, revolução conselhista na Alemanha; Greve geral em Portugal e na Suíça; Em 1919: em janeiro insurreição spartakista de Berlim (10 dias); março: nova greve spartakista em Berlim; Comuna da Hungria,com Bèla Kun (4 meses); abril: insurreição comunista na Áustria (1 semana) e República dos Conselhos em Munique (Baviera); junho, segunda insurreição na Áustria; julho: República dos Conselhos na Eslováquia. Ainda no ano de 1919 greves significativas na Catalunha (com ocupações de fábricas e terras), ofensiva grevista que durou até 1920 em Portugal, greves rurais e industriais com ocupações no Norte de Itália e agitação social aguda em França. 1921, tentativa de greve geral na Roménia e mais uma insurreição na Alemanha, agora em Bremen. 1923: insurreição comunista na Bulgária e no Saxe e Turíngia, na Alemanha. 1926: greve geral na Inglaterra e em 1927, choques armados contínuos em Viena de Áustria entre socialistas radicais e polícia com um rasto de 189 mortos.

É possível que todas estas revoltas fracassadas tenham sido da responsabilidade da Internacional Comunista (IC) com a sua visão rígida de exportar a revolução socialista para todo o mundo. Sabe-se, por exemplo, que Zinoviev esteve poucos dias antes na Alemanha a preparar a insurreição e que Rosa Luxemburgo não concordou que houvesse condições objetivas para a desencadear, mas, ainda assim tendo participado nela, o que lhe custou a vida e a Karl Liebneckt da Liga Spartakista. Houve de facto influência nalguns casos, mas a proliferação em toda a Europa em países onde nem sequer havia delegados da IC leva Fernando Rosas a considerar que os operários e trabalhadores se encontravam numa situação precária quer de condições de vida, quer de repressão ativa a qualquer ação associativa, sindical ou política por parte do demo-liberalismo republicano ou monárquico-constitucional. O que se passou na Rússia em 17 terá aumentado o otimismo no seio dos operários e ousarem a insurreições preparativas de revoluções. Depois, recuaram numa atitude defensiva, decapitadas que estavam as suas direções.

Se quisermos ver, cronologicamente, a derrota sangrenta (muitos milhares de mortos, deportados, presos e torturados) na repressão a estes acontecimentos, veremos que se dão antes da ascensão dos movimentos fascistas. Não durante, embora houvesse tentativas de combater o fascismo tranformadas em arruaças e manifestações sem grandes consequências. Portanto, o movimento fascista é epocal e tem traços comuns embora divirjam aqui e ali nos seus objetivos e propósitos, assim como no modo de ação com vista a tomar o poder. Excetuando a Itália que, em 1922, entregou o poder a Mussolini, o combate por este foi mais tarde.  As «leis fascistíssimas» datam de 1928. A época do totalitarismo ronda aos finais dos anos 20, princípios dos 30. O fascismo aliou-se claramente às direitas: integralistas, nacionalistas conservadoras, patronais, tradicionalistas, cristãs ou plebeias e foi dessa fusão, em que não está isento a extinção de movimentos internos «inconvenientes» que o fascismo se reforça. Nunca foi sozinho para o poder. Foi-o acompanhado e afastando sem qualquer rebuço os seus inimigos internos e externos, pretendendo confederar num partido único submetido ao Estado totalitário, regido por um chefe, um fuhrer, um capo, um conductore ou um duce.

Ou seja, o fascismo não chegou ao poder devido às insurreições fracassadas. A esquerda operária e trabalhista já estava derrotada antes pela social-democracia e socialismo reformista que a viam como inimigo a abater. Foi relativamente fácil aos fascistas e aos nazis derrotarem, agora, os democratas já em decadência.

E aqui Fernando Rosas avisa-nos para as taxonomias que limitam a definição de fascismo. Ora uns são autoritários, outros são conservadores católicos, outros tradicionalistas monárquicos, e por aí fora. Se formos utilizar este processo de negação, ou seja, se riscamos destes regimes um só item que classificamos como «fascista» poderemos chegar à conclusão óbvia que só há um: o nazismo antissemita! Os regimes fascistas apresentam diferenças óbvias produzidas pelas condições de acesso ao poder.  Não encontramos milícias em todos, nem sistemas corporativos (aliás, também os houve no demo-liberalismo), tradicionalistas ou católicos, com constituições ou sem elas (Hitler, por exemplo, nunca revogou a constituição de Weimar de 1919. Não necessitava dela para nada!).

Sublinha Fernando Rosas que é esta diversidade que confere exatamente a identidade comum aos regimes fascistas. Não a identificação rígida de cada um como um «caso» externo à extrema-direita.
Pensemos nas vítimas e na política de extermínio lavada a cabo pelos regimes fascistas e nazis, principalmente na Alemanha. Fernando Rosas dá-nos uma visão interessante: a prática do extermínio já vinha de antes do nazismo sem que se tenha levantado um dedo. Vinha dos impérios e das políticas coloniais levadas a cabo, nos finais do século XIX e antes, pelas potências ocidentais. Fernando Rosas lembra-nos, num quadro, em que consistiu esse extermínio tomado como normal nas mentes das elites e populares do ocidente: Sri Lanka, 4 a 10 milhões de pessoas, em 1920 era somente de 1 milhão; Argélia: 3 milhões de pessoas entre 1830 e 70, depois da colonização, 2,3 milhões; Congo: 20 milhões entre 1820 e 1920, no século XX 10 milhões; Costa do Marfim, entre 1900 e 1910 passou de 1,5 milhões para 160 mil pessoas; Sudão: de 9 milhões entre 1882 e 1903 passou para 273 mil. São números brutais. É fácil perceber que, cultural e politicamente, a população europeia e ocidental, no seu conjunto, transporia com alguma facilidade esta ação de extermínio nas colónias para os «diferentes» judeus, negros, ciganos, homossexuais, doentes mentais e físicos na Europa, juntando os opositores políticos elevados a associais.

Diz Fernando Rosas: «O Estado Novo configurou um fascismo conservador, resultante da unificação das direitas autoritárias e antiliberais e das direitas liberais civis e militares, rendidas à fascistização progressiva desse campo político e ideológico que integra subordinadamente o pujante movimento fascista plebeu dos ‘’camisas azuis´´, expurgando este das suas lideranças críticas do «conservadorismo» salazarista. Essa unificação e homogeneização realiza-se em torno da particular e indiscutível chefia carismática de Oliveira Salazar, no quadro de uma ''ditadura de chefe de Governo'' que constrói um regime nacionalista, corporativo, antidemocrático, policial, de características essencialmente fascistas».

O capítulo V «Os desafios do presente» é obrigatório ler. O tom um pouco pessimista de Fernando Rosas perante a vaga de populismos de direita que aí vêm é exposta sob o ponto de vista económico, social e político da época atual  em que a esquerda está nitidamente na defensiva, apesar das enormes manifestações que se podem verificar em todo o mundo. Saibamos aprender com a História.

António Luís Catarino
18 de dezembro de 2019

sexta-feira, dezembro 13, 2019

O estranho caso do Dr. Salazar nos ter salvo do não menos brutal Rolão Preto


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Por incrível que pareça ao ler este «Os Camisas Azuis e Salazar» de António Costa Pinto (ACP), lembrei-me da última endoscopia que me fizeram. Foi tramado. Descobri que na taxonomia do fascismo do autor não cabe a definição do Estado Novo português. Li, repetidamente, «republicanos conservadores» arrependidos, claro, da manhosa e violenta I República que foram o esteio do Salazarismo. Mas atenção. Ter-se-á de ler com muito pormenor o Dr. Costa Pinto: para chegar à Constituição de 1933, «orgânica» e «corporativa», evidentemente, o Dr. Salazar salvou-nos de um caos brutal liderado pelo não menos maléfico Rolão Preto e seus sequazes, fardados a camisa azul e que se autoproclamavam Nacional-Sindicalistas, afinal os verdadeiros fascistas portugueses imbuídos do espírito nacional e imperial e que odiavam o capitalismo especulativo, a burguesia obesa e parasitária, que advogavam a criação de milícias que lutassem contra o comunismo, o socialismo e o republicanismo democrático. Tinham um jornal que titulavam de «Revolução». Segundo ACP, os operários eram maioritários na organização seguido de estudantes universitários. Mas estes dados ter-se-iam de corrigir numa futura investigação, tal como o número de filiados que variavam entre 50 mil a 10 mil. ACP afirma que é melhor ficar pelos 20 mil que seria o número gémeo da recém-criada e balofa União Nacional. Que rigor! De 1931 a 1938 os NS tentaram as suas conspirações anuais através do exército ancorado nos «tenentes» da Liga 28 de Maio. Todos eles vieram do Integralismo Lusitano do famosíssimo António Sardinha que chegou a defender que éramos uma «raça» diferente da dos espanhóis!! Também havia os monárquicos do Paiva Couceiro, um grande militar que falhou todos os golpes em que se meteu. O último, antes de ser desterrado para os Açores fê-lo com Rolão Preto que se safou para Espanha. A PVDE chamava à ideologia NS de «comunismo branco».

António Costa Pinto, afirma em toda a sua obra que se tratava de uma rivalidade furiosa entre os fascistas da NS e do conservador autoritário, Salazar, que, entretanto, se travestiu de Ditador nos anos anteriores e que agora, com o apoio da Igreja insultada com os estatutos do Nacional-Sindicalismo que preconizava um futuro governo revolucionário nacionalista com «ateus e católicos» entre outros. «Balha-nos Deus!», se teria transformado outra vez em conservador mais cauto, mesmo com as instituições de cariz fascista.

A rede de influência de Rolão Preto não era de desdenhar e Salazar foi-se a eles com a UN e a possibilidade de quem se increvesse ter um empregozito. Foi, pois, a primeira cisão. A segunda deu-se quando de dentro do NS houve quem propusesse a integração plena no salazarismo, não na UN que era para os parolos e pessoal da administração local. Quem propôs? Nada mais do que o «Grupo dos lentes», de Coimbra, claro está. Chegaram a sondar Cabral Moncada para o Chefe, substituindo o bigodinho hitleriano de Preto. Até 1938 os arruaceiros e violentos NS definharam com os fiéis Dutra Faria, Barradas d’Oliveira, António Ferro, Manuel Múrias e outros que entretanto se passaram individualmente para o Estado Novo. Salazar, contudo, enquanto prendia e desterrava alguns da elite da NS  (ACP fica horrorizado quando não consta no «Livro Negro da Fascismo» os nomes da elite que então foram presos) como Alberto de Monsarraz que penou um único dia na prisão, enquanto outros sofriam horrores de duas semanas encarcerados.

Agora, destruídos os inimigos de Salazar e chamados ao «conservadorismo autoritário» foi criada a AEV (Ação de Estudantes Vanguarda) que teve vida efémera tal a quantidade de ex-NS que lá andavam à pancada principalmente com a FJCP, organização de juventude do PCP, e com os anarco-sindicalistas que, pelo que li deram mais porrada do que receberam. Aliás, o episódio da pancadaria de Coimbra em que 300 camisas azuis marcharam com estandartes pela Baixa, fez vários feridos entre os NS e o resto teve de refugiar-se no Hotel Avenida. Já os tiros que foram disparados contra o comboio que os levava a Braga para comemorarem o 28 de Maio foi reivindicado pela FJCP enquanto ferroviários anarco-sindicalistas tentaram descarrilar o comboio. A chegada a Braga foi um balbúrrio de chapadaria com mais feridos por parte dos «pretistas».

António Ferro, como se sabe, tornou-se o ministro da Propaganda de Salazar e por ele foram criadas as estruturas corporativas do Estado Novo e as organizações totalitárias de enquadramento da população como a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa (plena de lumpen dos NS), as Casas do Povo e festa, muita festa... e muitas prisões, torturas e mortes por parte da polícia política. Em nome do conservadorismo autoritário do Chefe (Quem manda? Salazar, Salazar, Salazar!). «Não se discute Deus, A Família e a Pátria». A Autoridade vinha a seguir a estas palavras do discurso, mas não vingou na História. Isto não é fascismo, quiçá, baseado no mussolinismo que Salazar nunca condenou?

Nos anos 90 era assim: devemos a António Costa Pinto, a Rui Ramos e a um tal Filipe Menezes, o revisionismo histórico de não chamarem de fascista a quem o foi. Ao menos conservem o respeito que têm pelo homem, caramba! Mas em relação a «Os camisas Azuis e Salazar» lê-se um pouco demais para um livro de estudo «será necessário, no futuro, uma investigação mais profunda» em quase todos os capítulos. E os acrónimos, Dr.? Nós não somos bruxos, que eu saiba. Se não começo a inventá-los, para meu prazer. A revisão do livro é muito má.

António Luís Catarino
Dezembro, 13 de dezembro de 2019

segunda-feira, dezembro 02, 2019

O estado morreu, o cristianismo também, a ciência finge e Onfray não se sente lá muito bem.


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O estado morreu, o cristianismo também, a ciência finge e Onfray não se sente lá muito bem.

«Decadência – O declínio do Ocidente», de Michel Onfray

Que têm a ver as matérias fecais elevadas a arte de Piero Manzoni, farto de ser desconhecido, e que em 1961 as colocou à venda em latas de conserva numeradas e assinadas, que repentinamente tiveram um êxito absoluto e sendo hoje vendidas por colecionadores particulares a centenas de milhar de euros, com a possível beatização de S. Cirilo proposta por Bento XVI? E com a decapitação de Luís XVI e Maria Antonieta?

Aparentemente, nada. Mas na perspetiva da decadência ocidental de Onfray, tem. Arte, Filosofia e Política. Manzoni, após as declarações de morte da Arte nos finais do século XIX e inícios do século XX e mesmo que excreções humanas já tivessem sido usadas em quadros, arrisca-se a vender a sua merda por uns trocos (e que trocos!), S. Cirilo, bispo de Alexandria manda assassinar Hipatia em março de 415, destruindo uma biblioteca plena de textos clássicos e é em 2015 que Bento XVI propõe a beatificação desse grande bispo. A decapitação de Luís XVI inicia a descristianização e a degenerescência do próprio estado ocidental. A partir daí, tudo será possível em termos de autoritarismo legitimado pelo Iluminismo e pelo Humanismo. Hoje, nada nos dizem os conceitos de Liberdade, Fraternidade e Igualdade. Portanto, advém igualmente a morte das Luzes. Hoje impera o vazio, o consumismo capitalista, o hedonismo serôdio, o egoísmo, as catedrais do dinheiro a criação propositada de crises sucessivas, a economia do desperdício. Mas nunca o fim da História segundo Fukuyama. A História é real, não a significação nem a simbologia do real. As ideias, porque inócuas hoje a Ocidente, submetem-se a outras realidades bem visíveis. A vitalidade ocidental está numa crise sem solução. Outras civilizações (Huntigton) estão num processo de grande vitalidade, nomeadamente os islâmicos, os chineses e os hindus. Substituir-nos, provavelmente sem darmos por isso, é exatamente o que fizemos ao longo dos tempos em que os Estados de Constantino e Teodósio se abraçaram ao Cristianismo de S. Paulo (que efetivamente se afasta dos Evangelhos e constrói uma igreja dominadora, inquisitorial e assexuada) a 3 séculos de distância da morte de Jesus. Foram dois mil anos de imperialismo, de submissão de povos, de massacres e guerras sem fim que culminam num século XX de horror nunca antes visto.

Não pensem que Onfray cai na ratoeira do alemão Oswald Spengler autor que, nos anos vinte, nos brindou com «O Declínio do Ocidente», embora o nosso autor nos consiga dar uma perspetiva clara e quase asfixiante dessa mesma decadência. Aliás, a sua tese de doutoramento foi exatamente sobre Spengler, mas recusa-o, obviamente, por este ser uma das bases filosóficas de sustentação do nacional-socialismo alemão. Declara o seu interesse por Samuel Huntigton em «O Choque das Civilizações» e em outras obras citadas abundantemente desde há mais de 2000 anos, não escondendo a sua simpatia por Epicuro e Lucrécio. Embora haja mais. Mesmo de livros clássicos que nunca tínhamos pensado existir.

As 624 páginas do livro não devem demover-vos de o ler. Aliás, se se começa não se consegue travar a fluidez do discurso e do pensamento de Onfray. Estejamos ou não de acordo com ele e várias vezes estive em desacordo. Onfray não é um filósofo no sentido clássico do termo (aliás, a filosofia ocidental morreu com o estruturalismo, segundo ele). É, antes demais, um pensador, mas um pensador rigoroso, um historiador genealógico, que demonstra o seu pessimismo através de factos e do estudo de leituras. O fim próximo que ele vê é o transhumanismo, purgante para uma visão não condizente com o otimismo ainda reinante que leva os tolos a dizerem que tudo se resolve com a Ciência, por futuros radiosos em que só se morre por acidente e em que não há trabalho, mas riqueza distribuída igualitariamente.

Palavras de Michel Onfray: «A Europa está para oferta ou para venda.Nem eu nem o meu leitor contemporâneo veremos quem a tomará e a quem esta velha coisa será vendida. No entanto, vários pretendentes parecem hoje notáveis. O judaico-cristianismo está esgotado; é um poder cujo tempo já passou. A estrela cadente volta a cair, faz parte da ordem do seu ser. A demografia testemunha o movimento das coisas, mas é uma disciplina de que os navegadores do real não querem ouvir falar: com efeito, é a atividade que produz imagens fiéis da realidade, mas é uma ofensa intelectual aos olhos dos que pensam que a realidade não existe e que, sobretudo, não querem que exista.  Contraria demasiado as suas ideias e preferem as ficções que os tranquilizam nas verdades que os inquietam.»

Mas isto lê-se na pág. 558. Terão de ler as anteriores se querem fruir este livro efetivamente bom.

António Luís Catarino
Coimbra, 2 de dezembro de 2019